Resenha: Crianças de Hiroshima (1952)

A atriz Nobuko Otowa e o ator mirim Takashi Itō em cena do filme

Crianças de Hiroshima (no original, Genbaku no Ko, ou “Crianças da Bomba Atômica”) segue Takako Ishikawa (Nobuko Otowa), uma jovem professora que retorna a Hiroshima em 1950, cinco anos após o bombardeio atômico que matou sua família. Trabalhando em uma escola, Takako reencontra Iwakichi (Osamu Takizawa), um ex-funcionário de seu pai, agora cego e desfigurado pela radiação, e encontra crianças órfãs, conhecidas como hibakusha (sobreviventes da bomba), que lutam para sobreviver em meio à pobreza e ao estigma social.

A narrativa é episódica, acompanhando Takako enquanto ela visita sobreviventes, confronta memórias do bombardeio e tenta ajudar as crianças, incluindo um menino doente, Taro, que sonha em se tornar médico. Flashbacks do dia do ataque, mostrados em imagens devastadoras, contrastam com a luta pela reconstrução no presente. A trama culmina em uma reflexão agridoce sobre a resiliência dos hibakusha e a necessidade de preservar a memória para evitar futuros horrores. Baseado em contos de sobreviventes compilados por Arata Osada, o filme é um testemunho coletivo, usando Takako como uma lente para explorar o impacto humano da bomba.

O enredo é estruturado como uma elegia, com um tom que mistura luto e esperança. A perspectiva de Takako, uma sobrevivente que busca sentido na tragédia, torna o filme acessível, enquanto a ênfase nas crianças sublinha a perda da inocência e a força para seguir em frente.

Kaneto Shindo, um pioneiro do cinema japonês, dirige Crianças de Hiroshima com uma abordagem neorrealista, inspirada por diretores como Vittorio De Sica. Filmado em locações reais em Hiroshima, incluindo áreas ainda marcadas pelos escombros, o filme captura a cidade em reconstrução com uma autenticidade crua. A cinematografia de Takeo Itō, em preto e branco, é austera, usando luz natural e sombras para refletir a desolação e a esperança. Planos abertos mostram a paisagem devastada, enquanto closes capturam as cicatrizes físicas e emocionais dos hibakusha.

A trilha sonora de Akira Ifukube é minimalista, com temas de cordas que evocam luto e resiliência, usados esparsamente para dar espaço aos sons ambientais — vento, passos, vozes infantis. A edição de Zenju Imaizumi mantém um ritmo contemplativo, alternando entre o presente e flashbacks do bombardeio, que são breves, mas impactantes, com imagens de corpos carbonizados e destroços. A escolha de evitar efeitos sensacionalistas reforça o respeito às vítimas.

A produção, com um orçamento modesto, enfrentou desafios significativos, incluindo a censura inicial no Japão, onde o tema da bomba era sensível, e a resistência de estúdios que temiam reabrir feridas. Shindo, trabalhando com a produtora independente Kindai Eiga Kyokai, colaborou com sobreviventes reais, muitos atuando como figurantes, para garantir autenticidade. A inclusão de não atores, especialmente crianças, adiciona uma camada de realismo emocional.

Nobuko Otowa, colaboradora frequente de Shindo, entrega uma performance comovente como Takako, retratando-a com uma mistura de tristeza e determinação. Sua atuação, marcada por silêncios e olhares expressivos, transmite o peso do trauma e a esperança de ajudar os outros. Osamu Takizawa, como Iwakichi, é profundamente humano, usando gestos sutis para mostrar a dignidade de um homem quebrado pela radiação.

As crianças, muitas delas não atrizes e sobreviventes reais, são o coração do filme. Seus rostos, marcados por cicatrizes e fome, transmitem uma autenticidade que transcende a atuação, especialmente nas cenas de Taro, cuja doença reflete o sofrimento de muitos hibakusha. Atores secundários, como Chikako Hosokawa, como a avó de Takako, adicionam camadas à narrativa, representando a geração mais velha que carrega memórias da Hiroshima pré-guerra. A ausência de estrelas reforça o foco coletivo, com cada personagem representando uma faceta da experiência dos sobreviventes.


FOTO: Collectie / Archief : Fotocollectie Anefo Reportage / Serie : [ onbekend ] Beschrijving : Reprodukties Hiroschima (Royal Film) Datum : 4 maart 1954 Locatie : Hiroshima Trefwoorden : FILM, Reprodukties Persoonsnaam : ROYAL Fotograaf : Doka / Anefo Auteursrechthebbende : Nationaal Archief Materiaalsoort : Glasnegatief Nummer archiefinventaris : bekijk toegang 2.24.01.09 Bestanddeelnummer : 906-3248

Crianças de Hiroshima é historicamente preciso em sua representação do impacto do bombardeio atômico, que matou cerca de 140.000 pessoas até o final de 1945, com muitos outros sofrendo de doenças relacionadas à radiação, como leucemia. A recreação do ataque, com flashes de luz e imagens de destruição, é baseada em relatos de hibakusha, enquanto a vida pós-guerra, com pobreza, estigma e esforços de reconstrução, reflete a realidade de Hiroshima nos anos 1950. A discriminação contra os hibakusha, mostrada na dificuldade das crianças em encontrar trabalho ou aceitação, é fiel aos registros históricos.

Algumas liberdades narrativas são tomadas, como a figura de Takako, uma personagem composta que representa várias experiências. A ausência de uma perspectiva mais ampla, como os debates políticos sobre a bomba ou a ocupação americana, reflete o foco na experiência local. A representação do campo de concentração é mínima, mas a ênfase nas consequências humanas é precisa, capturando o trauma físico e psicológico.

Lançado em 6 de agosto de 1952, no sétimo aniversário do bombardeio, Crianças de Hiroshima reflete o contexto do Japão pós-guerra, sob ocupação americana e com uma sociedade dividida entre silêncio e a necessidade de confrontar o trauma. O filme foi um dos primeiros a abordar a bomba abertamente, desafiando a censura e contribuindo para o movimento antinuclear japonês.

O impacto narrativo de Crianças de Hiroshima reside em sua abordagem neorrealista, que combina autenticidade e emoção para retratar a vida dos hibakusha. A jornada de Takako, revisitando sua cidade destruída, serve como uma metáfora para o Japão confrontando seu passado, enquanto a presença das crianças órfãs sublinha a perda de uma geração e a esperança de reconstrução. A narrativa evita o sensacionalismo, usando flashbacks breves para evocar o horror sem explorá-lo, e foca na resiliência cotidiana dos sobreviventes.

Os temas centrais — trauma, resiliência, a infância roubada e a necessidade de paz — são explorados com profundidade. Takako representa a culpa do sobrevivente, enquanto Iwakichi e as crianças encarnam a dignidade em meio à adversidade. O filme critica implicitamente a guerra nuclear, mostrando suas consequências humanas, e celebra a comunidade, como nas cenas de apoio mútuo entre os hibakusha. A ausência de vilões explícitos reflete a escolha de focar nas vítimas, não nos responsáveis.

Cenas como o flashback do bombardeio, o reencontro de Takako com Iwakichi e a luta de Taro contra a doença são emocionalmente devastadoras, reforçadas por silêncios que amplificam o peso do trauma. A escolha de terminar com um apelo à paz, através da esperança das crianças, conecta a narrativa ao movimento antinuclear, ressoando como um chamado à ação.

Crianças de Hiroshima foi aclamado no Japão e internacionalmente, embora sua bilheteria tenha sido limitada devido ao tema sensível. Exibido no Festival de Cannes de 1953, o filme foi elogiado por sua autenticidade, com críticos como André Bazin destacando seu neorrealismo. No Japão, ele enfrentou resistência inicial, mas tornou-se um símbolo do movimento antinuclear, influenciando a conscientização global sobre os hibakusha.

O legado do filme é profundo. Ele abriu caminho para obras japonesas sobre a bomba, como Hiroshima, Meu Amor (1959) e Barefoot Gen (1983), e influenciou o cinema neorrealista global. Sua ênfase nos sobreviventes inspirou narrativas sobre resiliência, enquanto seu apelo pela paz ressoa em movimentos antinucleares. Em 2024, postagens no X durante o aniversário do bombardeio de Hiroshima (6 de agosto) destacaram o filme como um lembrete dos horrores nucleares, com ativistas elogiando sua relevância em debates sobre desarmamento.

No Brasil, Crianças de Hiroshima é usado em aulas de história para discutir o bombardeio atômico e em estudos de cinema para analisar o neorrealismo japonês. A teoria da história de Jörn Rüsen, discutida no país, enfatiza a relevância de narrativas como esta, que conectam o passado às reflexões sobre paz e humanidade.

Crianças de Hiroshima é historicamente preciso em sua representação do impacto do bombardeio, com detalhes baseados em relatos de hibakusha. A reconstrução de Hiroshima, a discriminação contra sobreviventes e as doenças relacionadas à radiação são fiéis à realidade. No entanto, a narrativa centrada em Takako e a ausência de contexto político, como a decisão americana de usar a bomba, limitam a visão mais ampla do evento.

Críticos modernos elogiam o filme por sua autenticidade e coragem, mas observam que sua abordagem neorrealista pode parecer datada para públicos acostumados a narrativas mais dramáticas. A ausência de uma perspectiva americana ou militar reflete o foco japonês, mas pode minimizar o debate sobre responsabilidade. Ainda assim, sua capacidade de humanizar as vítimas o torna uma referência essencial, especialmente em um mundo onde a ameaça nuclear persiste.

Crianças de Hiroshima é uma obra-prima neorrealista que captura o trauma e a resiliência dos sobreviventes do bombardeio atômico com uma sensibilidade comovente. A direção de Shindo, as atuações de Otowa e das crianças, e uma narrativa que equilibra luto e esperança fazem do filme um marco do cinema japonês. Como uma reflexão sobre a Segunda Guerra Mundial, ele denuncia os horrores da guerra nuclear enquanto celebra a humanidade, oferecendo lições sobre memória e paz.

Mais de 70 anos após sua estreia, Crianças de Hiroshima permanece uma força cinematográfica e educativa, lembrando-nos do custo da guerra e da necessidade de desarmamento. Que seu legado inspire a reflexão sobre a resiliência humana e o compromisso com um futuro sem armas nucleares.


Fontes:

  • Osada, Arata. Children of the A-Bomb, 1951.

  • Enciclopédia Britânica, “Children of Hiroshima”, 2025.

  • Brasil Escola, “Segunda Guerra Mundial”, 2025.

  • Postagens no X sobre o aniversário do bombardeio de Hiroshima, 2024.

  • Rüsen, Jörn. História e Narrativa, 2006.

Nota: Esta resenha foi escrita com o objetivo de oferecer uma análise detalhada e fiel de Crianças de Hiroshima, respeitando seu contexto histórico e impacto cultural.

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