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Resenha: Campo geral, de João Guimarães Rosa

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

A infância é o tempo de descobertas. É a fase da vida em que o ser humano recebe e retribui os sentimentos à sua volta com maior vigor e integridade. Com Miguilim, menino que protagoniza esta novela de João Guimarães Rosa, não é diferente. Contudo, a visão de mundo repleta de sensibilidade que vinca a personalidade da criança transforma o conjunto de situações que ela experimenta num redemoinho sem precedentes de sensações. Os leitores de Campo Geral naturalmente se envolvem e se emocionam ao tomar contato com as impressões e conclusões do menino sobre o mundo que o cerca. Tanto os medos mais profundos de Miguilim quanto seus sonhos mais intensos são concebidos pelo pincel multicor de Guimarães Rosa.

O convívio familiar, o cultivo das amizades, a dura vida no sertão e a necessidade incontornável de encarar os desafios que a condição humana apresenta são elementos centrais desta narrativa. Neste livro, tem-se o privilégio de captar o âmago da vida no sertão através do olhar de uma criança, uma escolha que revela a grandeza literária de Guimarães Rosa.

Foto: Arte digital

RESENHA

O livro “Campo Geral”, escrito por João Guimarães Rosa, é uma obra que nos transporta para o sertão mineiro, onde a vida se desenrola em meio à simplicidade e à complexidade das relações humanas. Através da história de Miguilim, um menino de oito anos, somos convidados a explorar os sentimentos, as memórias e os conflitos que permeiam sua existência.

O cenário é o remoto lugar chamado Mutúm, nos Campos Gerais. A mãe de Miguilim, apesar de bela, vive entristecida pela distância de tudo e pelo tempo sempre sombrio. O morro que separa o Mutúm do mundo exterior é uma barreira que ela não consegue transpor. A mata próxima causa medo em Miguilim, que tenta compreender o inexplicável.

Um certo Miguelin, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d’Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em ponto remoto, no Mutúm. No meio dos Campos Gerais. (p.7)

A narrativa nos leva a passeios pela fazenda dos Barbóz, momentos de brincadeira, comida e interações com animais. Miguilim nutre um carinho especial pelos cachorros e, principalmente, pela cachorra Pingo-de-Ouro. Quando ela é levada por tropeiros, Miguilim chora e espera seu retorno, mesmo sabendo que ela está quase cega. A história triste do Menino que perdeu sua cuca no mato ecoa em sua mente, e ele passa a chamá-la de Cuca, nunca a esquecendo. No entanto, a vida de Miguilim não é apenas marcada por momentos felizes. Ele presencia a briga violenta entre seus pais, o pai agredindo fisicamente a mãe. Vovó Izidra é a única a defendê-lo, mas os irmãos estão acostumados com as brigas. Miguilim, em castigo, reflete sobre a natureza e o vaqueiro que prevê chuva. Seu sorriso para Dito, seu irmão, é um gesto de apoio silencioso.

Miguilim presencia uma briga entre seus pais, em que o pai agride fisicamente a mãe. O irmão mais novo, Dito, tenta distraí-lo e levá-lo para longe da situação, mas Miguilim entende o que está acontecendo. O pai bate em Miguilim, que chora e é colocado de castigo, enquanto a mãe chora no quarto. Vovó Izidra defende Miguilim, mas ninguém mais o protege. Os irmãos estão acostumados com as brigas, mas Dito espiava de longe, preocupado. Miguilim fica pensando enquanto está de castigo, até que o cachorro Gigão entra e ele brinca com suas verônicas, misturando suas lágrimas. Miguilim estava sob castigo, com sede, mas não queria pedir água para não ouvir reprimendas. 

— Pai está brigando com Mãe. Está xingando ofensa, muito, muito. Estou com medo, ele queira dar em Mamãe…(Pág. 14)

O Dito era considerado a melhor pessoa, mas não devia conversar com Mãitina, que bebia cachaça e falava bobagens. Mãitina era uma mulher velha, negra fugida do cativeiro, que acharam há muito tempo. A casa envelhecida durante a tempestade é um microcosmo de crenças e superstições. Miguilim, apesar de sua pouca idade, absorve as nuances do mundo adulto e busca compreender os mistérios que o cercam.

Miguilim passa seu último dia de vida deitado na cama, cercado pelo ambiente da fazenda e pelos cuidados de sua família. Ele reflete sobre a vida e a morte, sentindo saudades de todos que ama. Enquanto Drelina o consola, ele teme a morte iminente. Seo Aristeu chega para ajudar, mas Miguilim sente que está morrendo e chama pela mãe. Um dia triste chegou quando o Patorí foi encontrado morto. O pai precisou fazer uma visita ao Cocho, enquanto a mãe levou a família em um passeio noturno, sob a lua cheia. A morte de Dito abala profundamente Miguilim. Ele se sente desorientado e diferente dos outros, alternando entre tristeza e raiva. As lembranças da Mãe abraçando o corpo de Dito o atormentam, e ele busca desesperadamente guardar cada detalhe desse momento crucial de sua vida. No entanto, Miguilim ainda se sente perdido e confuso, buscando respostas em meio às conversas triviais dos outros.

[...] veio uma notícia meia triste: tinham achado o Patorí morto, parece que morreu mesmo de fome, tornadiço vagando por aquelas chapadas. Pai largou de mão o serviço todo que tinha, montou a cavalo, então carecia de ir no Cocho, visitar seo Deográcias, visita de tristezas. (pág.78)

Miguilim estava desorientado e entristecido com a morte do Dito e a presença de tantas pessoas em seu velório. Ele se sentia diferente de todos e tinha dificuldade em lidar com suas emoções, alternando entre tristeza e raiva. Lembranças da Mãe abraçando o corpo do Dito o atormentavam e ele se perguntava o que teria sido se o irmão não tivesse morrido. No meio de sua dor, Miguilim buscava desesperadamente guardar cada detalhe desse momento. Miguilim precisava de respostas sobre o Dito, havia falecido, mas todos ao seu redor só falavam de assuntos triviais. A única pessoa que parecia compreender seu sofrimento era a Rosa, que descrevia o Dito como uma alma especial. Miguilim e Mãitina decidiram fazer um enterro simbólico para o Dito, e Miguilim se emocionou ao ver as lembranças dele sendo enterradas. 

O Pai o obrigava a realizar tarefas na roça, mesmo quando ele não estava bem. Miguilim sentia raiva do Pai, que o tratava com desdém. Seu único amigo era o gato Sossõe, que o fazia se lembrar do falecido amigo Patorí. Seu pai expressava descontentamento com ele, comparando-o sempre ao falecido irmão Dito, que era considerado um bom menino. Mesmo se sentindo mal, ele pensou em cumprir uma promessa de rezar três terços e ficar um mês sem comer doces, frutas e café. Mesmo com o apoio de seu irmão, ele começou a se sentir fraco e com dor de cabeça. No entanto, ao sentir o cheiro da terra sombreada e lembrar de momentos felizes na fazenda dos Barboz, ele encontrou um pouco de conforto. 

Miguilim estava capinando quando de repente começou a sentir mal-estar, tonteira e tremores de frio, vomitando e sendo levado para casa carregado por Luisaltino. Ele estava com uma dor forte na nuca e acabou ficando prostrado e doente, perdendo a força e sendo cuidado por sua família. Enquanto estava doente, Miguilim viu seu Pai chorar desesperadamente, preocupado com a doença dos filhos. Ele também recebeu um presente do Grivo e viu seu pai trazer frutas para tentar melhorar sua saúde. Ele queria sonhar com seu irmão Dito, mas não conseguia. Quando Miguilim finalmente melhorou, descobriu que seu pai havia matado Luisaltino e se enforcado no mato. Vovó Izidra cuidou dele e contou sobre a morte do Pai, mas também falou sobre a eternidade de Deus e Jesus Cristo. Miguilim rezou e dormiu, buscando paz em meio à tragédia que envolveu sua família.

Seu Pai também está morto. Ele perdeu a cabeça depois do que fez, foi achado morto no meio do cerrado, se enforcou com um cipó, ficou pendurado numa môita grande de miroró… Mas Deus não morre, Miguilim, e Nosso Senhor Jesus Cristo também não morre mais, que está no Céu, assentado à mão direita!… Reza, Miguilim. Reza e dorme!” (pag. 116)

Miguilim após a morte de seu pai, com a chegada de parentes e vizinhos para prestar condolências. Miguilim está doente e se recupera aos poucos, recebendo visitas de Seo Aristeu e de um homem de fora. Aos poucos, Miguilim melhora e começa a apreciar a comida e a natureza ao seu redor. Ele sorriu para o tio que se parecia com o pai. Todos estavam chorando, inclusive o doutor. Miguilim entregou os óculos ao doutor e sentiu um soluço. Todos se despediam com tristeza, exceto Miguilim, que sempre foi alegre. Ele não sabia o que era alegria e tristeza. Sua mãe o beijava e sua irmã preparava doces para ele levar na viagem. 

Através de uma narrativa rica em detalhes e sentimentos, João Guimarães Rosa nos presenteia com uma obra poética e cheia de simbolismos. A história de Miguilim nos convida a refletir sobre a vida, a morte, o amor e a solidão, explorando de forma sensível as complexidades da existência humana. Com uma linguagem cuidadosamente elaborada, o autor nos transporta para o sertão mineiro e nos faz sentir a poesia e a melancolia que permeiam cada página. “Campo Geral” é uma obra que nos emociona e nos faz refletir sobre a nossa própria jornada, destacando a importância do amor e da memória na construção de nossas experiências. Uma leitura imperdível para quem busca se conectar com as profundezas da alma humana.

Entrevista com Raquel Lopes, autora de 'Leveza do efêmero'

 

Foto: Arte digital

Nesta coluna, teremos o prazer de mergulhar ainda mais fundo na poesia e na sensibilidade da autora Raquel Lopes, que nos presenteia com seu livro "Leveza do Efêmero". Através de seus poemas, somos convidados a refletir sobre a beleza da vida, a importância de apreciar cada momento e a esperança que nunca deve se apagar dentro de nós. Com uma escrita delicada e inspiradora, Raquel Lopes nos guia por um universo de emoções e reflexões, nos lembrando da efemeridade da vida e da importância de vivermos de forma plena. Conheceremos mais sobre a trajetória e inspirações da autora, além de nos encantarmos com alguns dos belos poemas que compõem esta obra. Prepare-se para se emocionar e se encantar com a leveza e a profundidade das palavras de Raquel Lopes.


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Confira a entrevista na íntegra:

1. Qual foi sua inspiração para escrever o livro "Leveza do Efêmero"?

A inspiração surgiu quando li um certo livro de contos da escritora portuguesa Maria João Cantinho e me deparei com essa frase. Passei então alguns dias interiorizando o sentido da Leveza do Efêmero.


2. Como você escolheu o título do livro? Qual é o significado por trás dele?

A escolha foi imediata. Acredito que foi o título que me escolheu e toda a sua significância constante e singela.


3. Quais são os temas principais abordados em sua obra?

A vida é como uma árvore e todos os frutos que podemos obter, sejam bons ou maus.



4. Você se identifica com algum poema do livro em especial? Por quê?

Todos são especiais, cada um à sua maneira e sua visão.


5. Como foi o processo de pesquisa e escrita do livro? Quanto tempo levou para concluí-lo?

Levei três anos desde a elaboração dos poemas até a publicação.


6. Quais foram os principais desafios enfrentados durante a produção do livro?

Foi tranquilo. Todo o processo ocorreu de forma satisfatória. Parabenizo a editora Tomaaiumpoema pela compreensão e respeito à entidade do meu livro.


7. Qual é a mensagem que você espera transmitir aos leitores através da história?

Quando leio algum livro de poesia, e o mesmo me passa uma sensação inexplicável, contudo boa, quando me faz refletir sobre certos temas que eu antes não tinha visto. Bom, é isso que também quero transmitir com meu livro.


8. Existe alguma obra ou autor que tenha influenciado sua escrita?

Alguns autores que gosto são Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Maria João Cantinho e Ezra Pound.


9. Como você definiria o estilo literário presente em " Leveza do Efêmero"?

Os versos têm sua própria liberdade, portanto, são livres.



10. O livro aborda algum aspecto da sociedade contemporânea? De que maneira?

O ser em tudo. A desarmonia que se harmoniza para conhecer o seu lugar.



11. Como você escolheu os nomes dos poemas? Eles possuem algum significado oculto?

Os nomes dos poemas são a porta de entrada para o mundo que cada poema carrega.


12. Existe algum trecho do livro que seja particularmente significativo para você? Por quê?

Há o poema "Guardei o sol", porque fala sobre o significado do sol na minha vida com sua força, claridade e alegria.


13. Você acredita que "Leveza do Efêmero" pode deixar um legado duradouro na literatura? Por quê?

Sim, acredito naquilo que escrevo. É a herança que deixo para as próximas gerações.


14. Quais são seus próximos projetos como autor? Podemos esperar uma continuação de "Leveza do Efêmero" ou outros livros em breve dentro do mesmo estilo?

Há alguns livros de poesia e contos nos quais venho trabalhando. Futuramente teremos mais publicações.

Resenha: Escreva muito e sem medo, de Albert Camus e Maria Casarès

Foto: Arte digital


APRESENTAÇÃO


Em 19 de março de 1944, Albert Camus e Maria Casarès se conhecem na casa de Michel Leiris. A ex-aluna do Conservatório de Arte Dramática de Paris, nascida em Corunha e filha de um político espanhol forçado ao exílio, tem apenas 21 anos. Ela havia começado a carreira em 1942, no Théâtre des Mathurins, mesmo ano em que Camus publicara O estrangeiro pela Gallimard. Na época, o escritor morava sozinho em Paris. Por causa da guerra, acabou afastado da esposa, Francine, que havia ficado em Orã, na Argélia.

Sensível ao talento da atriz, confiou-lhe o papel de Martha na estreia de O mal-entendido, peça de sua autoria, em junho de 1944. Em 6 de junho do mesmo ano, na noite do Dia D, Albert Camus e Maria Casarès tornaram-se amantes. Esse era só o preâmbulo de uma grande história de amor que só deslancharia de fato em 1948.

Tendo como pano de fundo a vida e as atividades criativas dos amantes (livros e congressos no caso do escritor; a Comédie-Française, turnês e o Teatro Nacional Popular no caso da atriz), a troca de correspondências revela a intensidade do relacionamento, vivida não só na ausência e na privação como também na compreensão da necessidade dessa separação, no ardor do desejo, na felicidade dos dias compartilhados, nos trabalhos em comum e na busca pelo verdadeiro amor, com sua perfeita formulação e plena realização.

Sabe-se que a obra de Albert Camus é atravessada pela ideia e pela experiência do amor. A publicação desta enorme troca de correspondências revela uma pedra angular de uma preocupação constante em seu trabalho. “Quando se ama alguém, ama-se para sempre”, confidenciou Maria Casarès muito depois da morte de Albert Camus; “quando não se esteve mais sozinho uma vez, nunca mais se estará”.



Foto: Arte digital



RESENHA



Maria Casarés e Albert Camus se encontraram em Paris em um momento turbulento da história, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela, uma jovem de vinte e um anos, e ele, um homem de trinta, estavam vivendo em meio às incertezas e perigos da ocupação alemã. Ambos tinham em comum a experiência do exílio, Maria por conta do regime de Franco e Camus por ser originário da Argélia. Em meio a esse contexto conturbado, os dois se apaixonaram e viveram um intenso romance. A resistência fazia parte da vida de Camus, enquanto Maria mostrava coragem e determinação em seus atos. Mesmo com a volta de Francine Faure, a esposa de Camus, em outubro de 1944, Maria e Albert não conseguiram se manter afastados e voltaram a se unir.



Foto: konyvesmagazin / reprodução



Albert Camus e Maria Casarés se conheceram na casa de Michel e Zette na representação-leitura de Le Désir attrapépar la queue, de Pablo Picasso, em 19 de março de 1944. O escritor oferece à jovem atriz, o papel de Martha em O mal entendido. Iniciado os ensaios, ele se encanta por ela. Na noite de 6 de junho de 1944, depois de uma reunião na casa do diretor Charles Dullin, no exato dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, eles se tornaram amantes. A atriz então se separa de Jean Bleynie, de uma família de viticultores de Bordeaux, amante que sucedera no início de 1947 ao tempestuoso ator belga Jean Servais (191001976). Nesta mesma época, Camus assina como Michel as cartas enviadas à Maria.


Maria foi fruto do relacionamento de Gloria Pérez Corrales com o advogado galego Santiago Casarès Queiroga, em 25 de outubro de 1920, dando luz à Maria no dia 21 de novembro de 1922. Sua mãe, Glória Casarès, morre então em 10 de janeiro de 1946, no Hospital de Curie de Paris, aos cinquenta anos. As cartas de Maria nos colocam de frente a uma atriz de talento imensurável, descrevendo através de suas palavras sua força, coragem e suas fraquezas. Ela atuava no Comedie-Française e do Teatro Nacional Popular (TNP), atuando ao lado de Michel Bouquet, Gérard Philipe, Marcel Herrand, Serge Reggiani, Jean Villar e ama todos eles.


Já Camus escreve de forma mais concisa e direta, suas cartas revelam uma saudade latente sempre presente de Maria, ele descreve rua escrita, projetos, reuniões, sua paixão pela escrita, pelo teatro e a constante atenção dada aos atores e ao compromissos. Ele militava na resistência. De ascendência espanhola pela mãe, tuberculoso como Santiago Casarès Queiroga e também exilado, já que originário da Argélia. (ps. 53 - versão digital, kindle)


Durante doze anos, eles viveram um amor intenso e cheio de emoções. Maria, com seu talento de grande atriz, revelava sua intensidade em cartas e em suas atuações no rádio e no cinema. Os imprevistos da vida não conseguiram separá-los, e mesmo com a morte de Camus em janeiro de 1960, o amor que viveram permaneceu vivo na memória de todos que os conheceram. A história de Maria Casarés e Albert Camus é um testemunho de amor intenso e verdadeiro, que resistiu aos desafios e às adversidades da vida. Seu encontro em Paris, em meio à guerra, marcou o início de uma história de amor que transcendeu o tempo e as dificuldades, mostrando que o amor verdadeiro é capaz de superar qualquer obstáculo.


As correspondências de escreva muito e sem medo, datam dos anos 1944 - 1946 - 1948 - 1949 - 1950 - 1951 - 1952 - 1953 - 1954 - 1955 - 1956 - 1957 - 1958 e 1959, em um total de 1.288 páginas. 


As cartas de Camus são mais frequentes e mais concisas com um desenvolvimento mais trabalhado, reflexos de seu hábil trabalho como escritor, porém, traduziam em igual intensidade o amor e os sentimentos que correspondia, bem como suas dúvidas de escrita, o ofício e o trabalho, apesar da tuberculose.



Confira algumas das correspondências apaixonadas entre Albert Camus e Maria Casarès:



Em junho de 1944, Camus escreve à Maria Casarès:


Uma hora [da manhã] [junho de 1944] 


Ma pequena Maria, Acabei de voltar para casa, não quero dormir de jeito nenhum, e tenho uma vontade tão grande de ter você perto de mim que tenho que sentar na minha mesa para conversar com você da única maneira que posso. Não ousei dizer ao Marcel [Herrand] que não queria ir beber o champanhe dele. E você estava com tanta gente! Mas depois de meia hora, eu estava farto, só precisava de você. Eu te amei muito, Maria, essa noite toda, vendo você, ouvindo sua voz que se tornou para mim insubstituível enquanto ia até Marcel, encontrei um trecho de texto para a peça. Não consigo mais ler sem te ouvir, é a minha maneira de ser feliz com você. Tento imaginar o que você faz e me pergunto por que você não está aqui. Digo a mim mesmo que o que estaria na regra, na única regra que conheço, que é a da paixão e da vida, é que você volte para casa amanhã e terminemos juntos uma noite que teríamos começado juntos. Mas também sei que isso é vão e existe todo o resto. Mas pelo menos não se esqueça de mim quando me deixar. Não se esqueça também do que lhe contei extensivamente em minha casa, um dia, antes que tudo corresse. Naquele dia eu te disse do fundo do coração e gostaria, gostaria muito que fôssemos um para o outro como eu disse que deveríamos ser. Não me deixe, não posso imaginar nada pior do que perder você. O que eu faria agora sem aquele rosto onde tudo me sacode, essa voz e também esse corpo pressionado contra mim? Além disso, não é isso que eu queria te contar hoje. Mas apenas a sua presença aqui, a necessidade que tenho de você, o meu pensamento desta noite. Boa noite meu querido. Espero que amanhã chegue rápido e todos os outros dias em que você será mais meu do que essa peça maldita. Eu te beijo com todas as minhas forças. 


(AC)

María Casares y Albert Camus en una imagen de 1948.
(Album / Rue des Archives / Bridgeman Images / Rene Saint Paul) Otras Agencias



43. Maria Casares para Albert Camus  Natal [1948]


Você se foi, meu amor, e eu fiquei aqui cheio de você, coberto, todo embrulhado em você. E como tive medo desse encontro de Natal! E agora, amanhã, você terá ido embora, muito, muito longe, e onde quer que eu vá, ainda posso sentir o calor do seu corpo.  Não entendo por que sua presença constante em meu coração não é suficiente para me fazer feliz, e às vezes fico com raiva de mim mesma por querer mais. Mas o que você esperava?! Se estou sentado em casa em frente à lareira, como estou agora, por que não sentiria a necessidade de você estar comigo e vigiar o fogo juntos? 


Se eu saio do meu apartamento e vejo algo na rua ou em qualquer lugar que me ofende, me ofende ou me faz rir, por que não deveria buscar o seu olhar? Quando vou para a cama, como posso não sentir que você não está comigo? Se alguém fala comigo, como posso não pensar na sua boca? Se alguém olhar para mim, para os seus olhos? E o seu nariz, as suas mãos, a sua testa, os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, as rugas do seu rosto, o seu sorriso?

Oh, o temperamento está pegando! Mas porque não? Encontrei o Maravilhoso, mas só pode ser meu com autorização e em horários pré-combinados! Como posso não me rebelar?

Quero você em todos os lugares, em tudo e em todos, e sempre. Sim, sempre, e só não me diga coisas como "se..." ou "talvez..." ou "desde que...". Eu quero você, eu sei, você se tornou minha necessidade básica e usarei meu coração, minha alma, toda minha vontade e até minha crueldade se for preciso para te tornar minha.

Se você discorda, se escolhe manter a calma, se tem medo, diga isso e fique de lado.

Eu irei até o fim. Posso perder o seu amor. Sinto muito também! Eu assumo o risco. Talvez a vida que escolho para mim seja cheia de ansiedade e tristeza. Sinto muito também!

A escolha é sua. Ainda temos tempo, diga-nos o que você escolhe. Isso é tudo que peço. O resto depende de mim.

Estou falando fora de contexto?... Não, sinto que o cachorro está enterrado aqui. Até agora não fiz nada, nem pensei em fazer nada para mudar a nossa vida. Mas acredite, mesmo a minha única determinação pode mudar muitas coisas.

Casado?

Tenho certeza do meu amor por você e me sinto capaz de superar qualquer coisa. Chegou a hora de escolher: devo escolher a vitória ou devo continuar a me render ao lindo sentimento de piedade e generosidade, como tenho feito até agora? O poder da fraqueza é enorme, mas não vejo por que não deveria ser comparável ao poder do meu amor talvez atraente, mas proibido. Alguém tem que estar infeliz, e nesses casos escolhemos sempre a solução que nos deixa infelizes, porque assim nos sentimos menos culpados. É por isso que nunca te pedi nada.

Mas não nasci para uma vida de sacrifício; o sacrifício é uma grande honra e até felicidade para alguns, mas não para mim (a fada que não foi convidada para a festa). Está drenando minha alma e me matando. Devo agir e ganhar ou perder.


Foto: seminci / Maria Casarès, a mulher que viveu mil vidas


María Casarès, de uma carta à Albert Camus, junho de 1950:

“Nos conhecemos, nos reconhecemos, nos abandonamos um ao outro. Vivemos um amor pelo cristal puro e ardente. Você percebe a felicidade que temos e o que nos foi dado?”




Em sexta-feira à noite, 11 horas [7 de junho de 1944]

Esta noite tenho vontade de me voltar para você porque estou de coração pesado e tudo me parece difícil de viver.



Um dos trechos mais fortes e impactantes [para mim] são de uma carta escrita em uma sexta-feira, 11 horas no dia 7 de junho de 1944 de Camus à Casarès:



[...] Até o momento você amou em mim o que eu tinha de melhor. Talvez ainda não seja amar. E talvez só me ame realmente quando me amar com minhas fraquezas e meus defeitos. Mas quando e dentro de quanto tempo? Que coisa magnífica e terrível ter de se amar também no perigo, na incerteza, num mundo que está desmoronando e numa história em que a vida de um homem pesa tão pouco. Não terei mais paz enquanto estiver privado do seu rosto. Se você não vier, terei paciência, mas paciência no sofrimento e na secura do coração.



44. Albert Camus para Maria Casarès
Domingo, 22h [1948 26 de dezembro]

Dia ruim. Cheguei esta manhã e não consegui dormir à noite. O avião flutuou lentamente entre as estrelas. O mar acima das Ilhas Baleares estava cheio de estrelas. Pensando em você. E depois um dia inteiro numa clínica, com uma senhora idosa que nem sabe o quão perto estava da morte. Felizmente, a minha mãe estava lá e, graças à sua bondade e total indiferença, todos os pensamentos perturbadores são evitados. . (Aprendi com o exemplo dele que os dois se dão bem.) À noite tive vontade de passear pela cidade, que estava completamente vazia, como sempre fica depois das 9. E depois há a chuva forte, mas sempre de curta duração. Na cidade deserta me senti no fim do mundo. Mas esta é a minha cidade. Voltando ao meu quarto (moro em um hotel) senti que iria te encontrar ali e que algo colossal finalmente começaria. Mas a sala estava vazia, então resolvi escrever para você.

Você está comigo desde ontem, nunca te amei com tanta paixão como lá em cima, voando no céu noturno, de madrugada no aeroporto, nesta cidade onde agora sou um estranho, na chuva do porto. ... Se eu perder você, vou me perder - esta é a minha resposta à sua pergunta, que estou gritando com você agora.

Mas tenho que dormir, mal consigo ficar de pé. Eu só queria contar a história de um dia que foi repleto de você em todos os sentidos. Vou ficar aqui até minha próxima cirurgia em duas semanas. Escreva, não me deixe sozinho. Fui dominado por pensamentos deprimentes, algum tipo de sentimento ruim. Oh querida eu preciso de você. Mas também há algo de belo na maneira como me arrasto, como foi esta noite, quando o cansaço e a ternura me derrubaram. Eu te beijo, meu amor, demoradamente, mas com cuidado para recuperar o fôlego.

- A

45. Albert Camus para Maria Casarès
Segunda-feira, 10h [1948 27 de dezembro]

Acho melhor não ler o que escrevi ontem, entorpecido pelo sono, tão sombrio quanto as ruas de Argel debaixo de chuva. A luz do sol inundou meu quarto esta manhã. Dormi dez horas, mas não sonhei, foi como um sono depois de fazer amor. Um lindo dia nos cumprimentou. Já esqueci que Argel é a cidade das manhãs.

Hoje estou almoçando na casa da minha mãe, no subúrbio, onde passei toda a minha juventude.

Como foi seu almoço ontem? Eu daria metade do meu braço (estou exagerando, claro) para passear com você na praia esta manhã e fazer você se apaixonar pelo que eu amo, sua eterna cânfora garota feia. Olha, o sol está brilhando no papel e estou escrevendo essas linhas no meio de uma poça dourada. (Ontem li num livro a seguinte definição do sol: o cruel olho dourado da eternidade. Mas Rimbaud tem mais razão: a eternidade é o abraço do mar e do sol.  Veja, as manhãs de Argel fazem de mim um letrista .)

Escrevo cada vez mais feio e em letras cada vez menores. Isso deve significar alguma coisa. Estou esperando pacientemente. Tenho certeza de que me sentirei diferente esta noite. Mas enquanto espero, tenho a maior e mais teimosa confiança. Gustave Doré dizia que a arte exige a paciência de um boi. Esta manhã, no campo do amor, tenho a paciência de um boi (um boi é um exagero...).

Você pelo menos escreveu? Por mais paciente que eu seja, o veneno me corrói por causa das horas e dos dias perdidos. Meu coração aperta quando penso nas noites que passamos em frente à lareira. Você certamente não conseguirá manter o fogo aceso na minha ausência. Mas pelo menos tente, preserve-o o máximo que puder. O papel Vesta-Virgo combina bem com você. Irei em uma semana e sequestrarei você. Depois de uma semana... não sou mais tão paciente. Escreva longamente, envie-me um pouco de você para esta cidade que o espera, recorra sempre a mim, ame-me como me amou à meia-noite do dia 24, e se você está muito deprimido neste momento, perdoe-me por estar tão entusiasmado com isso manhã . Mas a luz do sol e você...

Estou beijando você o mais forte que posso, meu amor.

-A

Na carta abaixo, Albert Camus descreve sua viagem a Londres para assistir a uma peça de teatro de vanguarda, na qual ele aponta várias peculiaridades e absurdos no cenário e nas atuações dos atores. Ele relata sua experiência desagradável no restaurante grego, onde a comida era ruim, e sua dificuldade para dormir após a experiência traumática no teatro. Camus expressa seu desejo de estar perto de sua amada Maria Casarès e compartilha sentimentos de angústia e saudades enquanto está longe dela. Ele termina a carta com um tom de carinho e ansiedade para retornar à sua amada. Ao longo da carta, Camus mistura humor, ironia e sentimentos profundos, refletindo sobre a vida e os desafios que enfrenta.



59 — ALBERT CAMUS A MARIA CASARÈS

Segunda-feira, 10 horas [7 de março de 1949]


Meu querido amor,


Desde a noite de sábado estou aqui às voltas com ideias ruins e imagens ainda piores. Ontem de manhã pensei em te telefonar de Le Bourget.

Mas eram dez horas e achei que poderia acordá-la. Ontem à noite, pensei em te escrever ao voltar para casa. Mas já era tarde, eu estava cansado e fiquei com receio de abrir espaço demais para lamentações. Desejo que você esteja perto de mim, de coração, neste momento, no fim das contas é a única coisa que vale a pena dizer.


E o melhor é fazer um relato da minha pequena viagem. Uma carta que vai ficar sem resposta e que felizmente pode se eximir de ser pessoal. Pois bem, aí vai! Encontrei Londres debaixo de neve e absolutamente deserta, era domingo. Eu estava sendo esperado por Dadelsen, um velho amigo, e pelo diretor acompanhado de dois intérpretes, uma Cesônia passável e um Calígula que por sinal constatei se parecer com um sorveteiro (você sabe, desses das carrocinhas). Em seguida, restaurante grego, onde nos atiramos na cozinha grega, que é ruim, preparada à maneira inglesa, o que é pior ainda. Vou para o hotel, razoável, para repousar meu estômago torturado. Me lembrava com saudade do Granada, que tem um chef virtuose, em comparação com os envenenadores de Londres. Depois, ensaio. O teatro, mais parece que estamos em La Villette. Mas é de vanguarda, o que salva tudo.


E aí tive algumas surpresas. Cipião tinha uma deformidade na coluna vertebral que lhe dava um ar de retardado. O velho senador tinha uma das mãos paralisada. Quereia usava uma toga cereja. Cesônia um vestido Folies Bergère com uma transparência que lhe mostrava as pernas até o delta das delícias (dizem as Mil e uma noites). Havia no palco uma estátua em pé de Péricles, chegando a dois ou três metros, e um espelho oval, encomendado em Barbès, no estilo metrô. E muita cortina. A Roma dos Césares mobiliada e vestida ao estilo Porte de Saint Ouen. Começa a função e eu começo a entender que as coisas se encaixavam. Calígula, se não vendesse sorvetes na vida comum, devia ser vendedor de espetinhos no boulevard des Chasseurs em Orã, representante de vassouras no boulevard Voltaire ou guia especial no Barrio Chino. O imperador byroniano bate no meu ombro, tem uma cabeleira encaracolada e espessa, a pele visivelmente suada e um ventre avantajado. Ou seja, Nero depois de uma refeição à antiga. Muito ardor, mas sem estilo. Ele representa instintivamente, como se diz, o que significa que não entende uma palavra do texto. Ainda por cima, como é grego, um sotaque segundo Dadelsen surpreendente.


A partir daí, eu já me achava conformado com tudo. Que ingenuidade! Não estava contando com os balés. Pois também há balés. Quando Calígula leva a mulher de Múcio, compelido pela natureza, três dançarinos, meio abissínios, meio francisca-nos, fazem no palco a mímica do amor, escolhem trinta e duas posições, se agarram pelas coxas e, de costas, esfregam a bunda uns nos outros. No segundo ato, Calígula vestido de Vênus dança um balé com os mesmos soldados (imagine o vendedor de bolinhos dançando com seios falsos) e é agarrado pelas nádegas pela respeitável companhia. Como essa acabou comigo, fui tomar um uísque. Mas já tinha passado da hora e só havia café, que tomei para esquecer e que me impediu de dormir boa parte da noite. Para acabarem comigo de vez, me arrastaram de novo para o restaurante grego, o que me impediu de dormir o resto da noite. Dormi uma hora, sonhando com balés monstruosos nos quais eu aparecia com o rei Jorge VI. O mais forte é que na terça-feira à noite uma plateia de embaixadores e mulheres do mundo está convocada para assistir a essas audácias bem francesas e ter uma ideia do teatro de Paris. E eu estarei lá, sonhando apenas com uma coisa, desaparecer, até na hora do avião.



Estou sonhando com outra coisa, naturalmente, mas espero retornar para te dizer: meu relacionamento acabou. Toda vez que te deixo, sinto uma angústia e um tremor no fundo do coração. Onde você está? Onde você está, meu amor? Está me espe-rando, não é, como eu te espero, com a mesma forte e longa fidelidade, com temor e certeza. Desde domingo há um mar entre nós. Mas realmente é como se a tivesse trazido comigo, você não me deixou.

Até quarta-feira, minha querida. Até breve, porto, pasto, pradaria, pão, piroga... Te beijo, te aperto contra mim... Estou no Basil Street Hotel. Knightsbridge London. Mas, você não terá tempo de me escrever. Estou chegando.


(AC)


© Foto de Jean-Jacques Lévy/AP. O acidente que matou Albert Camus. França, 1960.



No dia 30 de dezembro de 1959, Camus escreve sua última carta à Maria Casarès, quando por fim, acaba falecendo à caminho de sua amada em um trágico acidente de carro em Villeblevin, juntamente com Michel Gallimard e Anne Galimard. Camus morre na hora, enquanto Michel Galimard morre no hospital, cinco dias depois.



Bem. Última carta. Só para te dizer que chego na terça-feira, pela estrada, voltando com os Gallimard na segunda (eles passam aqui na sexta-feira). Vou te telefonar ao chegar, mas talvez já possamos combinar de jantarmos juntos na terça-feira. Digamos que em princípio, levando em conta os imprevistos da estrada - e te confirmarei o jantar pelo telefone. Já estou mandando uma carga de votos afetuosos, e que a vida ressurja em você durante todo o ano, te dando o querido rosto que eu amo há tantos anos (mas o amo preocupado também, e de todas as maneiras). Dobro o seu impermeável no envelope e junto todos os sóis do coração.

Até logo, minha esplêndida. Estou tão contente com a ideia de te rever que um rio enquanto escrevo. Fechei meus arquivos e não trabalho mais (famílias demais e amigos demais!).

De modo que não tenho mais motivos para me privar do seu riso e das nossas noites, nem da minha pátria. Te beijo, te aperto contra mim até terça-feira, quando recomeçarei.


- A



A intensidade do amor entre Maria Casarés e Albert Camus transcendeu os desafios de suas vidas e resistiu ao tempo. Suas cartas revelam o profundo amor e a conexão única que compartilhavam, mostrando que o verdadeiro amor é capaz de superar qualquer obstáculo. A história de Maria e Albert é um testemunho da força do amor e da coragem de enfrentar as adversidades da vida juntos. Sua paixão e devoção um pelo outro são inspiradoras e continuam a tocar os corações daqueles que conhecem sua história. Um romance intenso e verdadeiro que permanece vivo na memória e no coração de todos que conhecem sua jornada de amor.

Resenha: A cor púrpura, de Alice Walker

Imagem: Arte digital

APRESENTAÇÃO

A cor púrpura, ambientado no Sul dos Estados Unidos, entre os anos 1900 e 1940, conta a história de Celie, mulher negra, pobre e semianalfabeta. Brutalizada desde a infância, a jovem foi estuprada pelo padrasto e forçada a se casar com Albert, um viúvo violento, pai de quatro filhos, que enxergava a esposa como uma serviçal e fazia dos sofrimentos físicos e morais sua rotina.

Durante trinta anos, Celie escreve cartas para Deus e para a irmã Nettie, missionária na África. Os textos têm uma linguagem peculiar, que assume cadência e ritmo próprios à medida que Celie cresce e passa a reunir experiências, amores e amigos. Entre eles está a inesquecível Shug Avery, cantora de jazz e amante de Albert.

Apesar da dramaticidade do enredo, A cor púrpura é uma história sobre mudanças, redenção e amor. A partir da vida de Celie, a aclamada escritora Alice Walker tece críticas ao poder dado aos homens em uma sociedade que ainda hoje luta por igualdade entre gêneros, raças e classes sociais. Eleito pela BBC um dos 100 romances que definem o mundo, A cor púrpura é um retrato da vivência da mulher negra na época da segregação racial, cujos reflexos ainda estão presentes na nossa sociedade.


RESENHA


A cor púrpura é um romance escrito pela renomada autora americana Alice Walker, editado no Brasil pela editora José Olympio, selo do Grupo editorial Record. A obra relata a vida de Celie, uma adolescente de 14 anos que vive um inferno pessoal: abusada pelo pai, forçada a se casar com um homem que a trata como propriedade e, posteriormente, separada de sua irmã Nettie, com quem tinha uma conexão profunda. Celie escreve cartas para Deus, revelando-nos a história. A cada poucas páginas, novas cartas sobre sua vida são o seu refúgio diante dos acontecimentos. Grávida antes de entender sobre sexo e bebês, Celie sabe que é por causa das violações de seu pai. Com o tempo, Celie é obrigada a ter dois filhos, com os quais não convive, pois eles lhe foram tirados, causando uma tristeza inconsolável em Celie, que passa a observar cada vez mais o desenrolar dos dias. Com o tempo, ela é vendida para se casar com um homem mais velho, Albert, que aos poucos, mostra-se um homem nojento e sem nenhum grau de piedade ou amor à ela.

Imagem: Detalhes da diagramação / Divulgação


A trama se desenrola em meio ao racismo e machismo enraizados no sul dos Estados Unidos, onde Celie luta para manter sua identidade e sua vida. O livro aborda questões como a opressão das mulheres, a falta de acesso à educação e a força da amizade e do amor, mesmo diante das adversidades. Acompanhamos sua jornada, desde a separação de sua irmã Nettie até o reencontro, que se torna missionária na África. Ela perde seus filhos logo após o nascimento e casa-se com um homem abusivo. É ao conhecer Shug Avery que Celie encontra o amor e é amada em retorno, pela primeira vez em sua vida.


A obra se inicia com uma carta escrita por Celie à Deus, nela ela menciona como era a sua relação conturbada com seu pai e a frequência dos abusos sexuais sofridos no decorrer dos dias, fazendo-a, fazer, o que, como ele disse 'o que sua mãe num quis': Ele nunca teve uma palavra boa pra falar pra mim. Só falava Você vai fazer o que sua mãe num quis. Primeiro ele botou a coisa dele na minha coxa e cumeçou a mexer. Depois ele agarrou meus peitinho. Depois ele impurrou a coisa dele pra dentro da minha xoxota. Quando aquilo dueu, eu gritei. Ele cumeçou a me sufocar, dizendo É melhor você calar a boca e acustumar (p.7). A mãe de Celie morreu pouco tempo depois de ficar muito tempo doente, desta forma, ela começou a ficar responsável por todos os afazeres da casa: 


Minha mamãe morreu. Ela morreu gritando e praguejando. Ela gritou comigo. Ela praguejou comigo. Eu tô de barriga. Eu num posso andar muito depressa. Na hora queu volto do poço, a agua tá morna. Na hora queu arrumo a bandeja, a cumida já tá fria. Na hora queu arrumo todas as criança pra escola, já tá na hora do jantar (pg.8)


Celie então teve dois filhos, um foi morto pelo pai, o outro doado: Ele levou meu outro nenê também, um minino dessa vez. Mas eu num acho que ele matou não. Acho que ele vendeu prum homem e a esposa dele, lá em Monticello. Eu fiquei com os peito cheio de leite iscorrendo encima de mim (p.9)


Alice Walker utiliza a escrita de forma única, retratando a realidade de Celie por meio de cartas escritas para Deus e Nettie, nunca enviadas. A linguagem simplória, repleta de erros gramaticais e regionalismos, aproxima o leitor da vivência da protagonista, tornando a narrativa ainda mais intensa e emocionante.


A narrativa começa a delinear seus contornos mais emocionantes, quando Abert (marido de Celie) traz para morar consigo, Shug Avery, uma paixão de anos, que, em primeira instância, maltrata Celie, porém, o tempo passa e ela percebe o quanto ela é especial, dando-lhe conselhos e encorajando-a, tornando-se muito mais que amigas confidentes, o que claro, desagrada Albert que se encontra cada vez mais propenso à agredir e desfazer de Celie, o que, em alguns momentos, é repreendido por Shug.


Shug Avery sentou um pouquinho na cama hoje. Eu lavei e pintiei o cabelo dela. Ela tem o cabelo mais pincha, curto, e enroscado queu já vi, e eu amo cada fio dele. O cabelo que ficou no meu pente, eu guardei. Quem sabe um dia eu faço uma rede. uma malha pra botar no meu próprio cabelo. (p.57)


A primeira vez queu vi inteiro o longo corpo negro da Shug Avery com os bico do peito que nem ameixa preta, parecendo a boca dela, eu pensei queu tinha virado homem (p.53)


A narrativa de A Cor Púrpura é impactante, transmitindo a realidade de Celie de maneira direta. Ela relata com detalhes o que passa, sem rodeios, diferente da maioria dos romances. A vida de Celie é como é, sem adorno. O sofrimento causado à Celie pelo destino é algo que não se mensura em palavras. Ela foi abusada pelo próprio pai tendo dois filhos dele, aos quais foram tirados dela e doados; posteriormente, ela e sua irmã foram vendidas separadamente. Celie foi vendida para se casar com um homem abusivo, Albert, que além de humilhá-la, deixava claro que nutria sentimentos apenas por Shug Avery. Ela foi privada de manter qualquer tipo de contato com sua irmã Néttie por anos a fio.

Imagem: Detalhes da diagramação / Divulgação



Walker habilmente aborda questões como violência doméstica, misoginia, preconceito racial e marginalização social, oferecendo uma visão autêntica e poderosa das experiências vividas pelas personagens principais, especialmente a protagonista Celie. Ao longo do livro, vemos como essas mulheres enfrentam adversidades e injustiças de cabeça erguida, encontrando forças umas nas outras e em suas próprias habilidades.


Além disso, a cor púrpura é uma ode à autoaceitação, ao amor próprio e à importância da solidariedade feminina. O livro nos mostra como a união e o apoio mútuo entre mulheres podem ser transformadores e empoderadores, e como a busca por identidade e autonomia é uma jornada contínua e significativa.


Em resumo, a cor púrpura é uma obra fundamental que merece ser lida e apreciada por sua narrativa envolvente, sua profundidade temática e sua capacidade de inspirar reflexões e diálogos sobre questões sociais e humanas essenciais. É um testemunho da resiliência e da beleza que podem ser encontradas mesmo nas situações mais difíceis, e um lembrete da importância de ouvir e valorizar as vozes das mulheres negras.


A AUTORA

Walker nasceu em 9 de fevereiro de 1944 na pequena comunidade rural de Eatonton, no estado da Geórgia, região sul dos Estados Unidos. Foi a mais jovem de oito irmãos, prole de um casal que ganhava seu sustento por meio da parceria rural (ou sharecropping), que, no contexto pós-guerra civil para os americanos negros, era na prática uma continuação da escravidão. Apesar das dificuldades, a mãe de Alice, que para ajudar a aumentar o salário miserável era também costureira, vislumbrava um futuro melhor para a filha. Por isso, impediu a caçula de seguir os trabalhos rurais dos mais velhos, inscrevendo-a em uma escola aos quatro anos de idade.

Resenha: O preço do amanhã (2011)

Imagem: Will ganha mil horas em um cassino, reprodução


Em um futuro próximo, o envelhecimento passou a ser controlado para evitar a superpopulação, tornando o tempo a principal moeda de troca para sobreviver e também obter luxos. Assim, os ricos vivem mais que os pobres, que precisam negociar sua existência, normalmente limitada aos 25 anos de vida. Quando Will Salas (Justin Timberlake) recebe uma misteriosa doação, passa a ser perseguido pelos guardiões do tempo por um crime que não cometeu, mas ele sequestra Sylvia (Amanda Seyfried), filha de um magnata, e do novo relacionamento entre vítima e algoz surge uma poderosa arma com o sistema e organização que comanda o futuro das pessoas.


Imagem: Sylvia, personagem de Amanda Seyfried, reprodução


RESENHA

O filme, "O Preço do Amanhã", de 2011, narra a vida de Will Salas, um trabalhador comum que vive nos guetos de uma cidade rica e recebe como pagamento o tempo referente a um dia de vida. Desta forma, todos os pobres retratados no filme ficam submetidos a sempre trabalharem e receberem seus pagamentos em relação ao dia trabalhado, com jornadas exaustivas e enfrentando o juro abusivo cobrado pelos ricos, o que diminui consideravelmente o tempo de vida dos menos afortunados, que dependem do tempo ganho em jogos, lutas, cassinos e trabalhos para sobreviver e pagar todas as suas despesas, como energia, aluguel, transporte, assistência médica e contas básicas de luz, água e telefone. Isso os coloca sempre em uma luta desigual, buscando ter o mínimo para aproveitar as poucas horas do dia. Os habitantes retratados procuram dormir o menor tempo possível para aproveitar as horas de vida restantes, enquanto os ricos, especialmente os proprietários de comércios locais e do tempo (locais de venda e empréstimo de tempo de vida com juros abusivos), desfrutam de luxos e gastos sem precedentes de forma despreocupada, enquanto os pobres morrem aos montes nas ruas devido ao tempo excedido.

Imagem: Capsúlas responsáveis pelo reabastecimento de tempo no relógio das pessoas, reprodução

O filme começa com Will salvando um homem rico de uma gangue responsável por controlar o tempo abusivo adquirido pelos pobres em um bar. Este homem decide doar gratuitamente todos os seus cento e dezesseis anos a Will enquanto ele dorme em uma cadeira, deixando apenas uma mensagem em uma janela: "Não desperdice o meu tempo". Em seguida, ele se senta à beira de uma ponte, esgotando seu tempo e falecendo sobre as águas que correm abaixo. Will então decide ajudar a todos ao seu redor, principalmente sua família, mas no dia seguinte, após pagar todas as contas, sua esposa fica sem condições de voltar para casa, possuindo apenas uma hora de vida restante e uma passagem de ônibus de duas horas. Ela morre minutos depois nos braços de Will, que corria à sua frente para salvá-la.


Imagem: momento em que Will e Sylvia roubam um banco de tempo, reprodução


Após a morte de sua esposa, Will decide gastar o dinheiro com todas as coisas que sempre sonhara, porém, ele não sabia que estava sendo vigiado pela gangue, que começa a persegui-lo pela cidade para recuperar o tempo que acreditam que ele roubou de um homem rico e indefeso. Will comparece a um evento da alta sociedade e conhece Sylvia, filha de um dos magnatas que controlam as empresas de empréstimo de tempo. Ele a faz refém, mas ela acaba ajudando Will e se apaixona por ele ao perceber os juros abusivos cobrados pelos ricos em detrimento do trabalho árduo dos mais pobres. Ela então se junta a ele para percorrer a cidade cometendo diversos crimes, roubando tempo e distribuindo entre as pessoas menos afortunadas pelas ruas. O clímax do filme ocorre quando Will e Sylvia roubam um milhão de horas do pai de Sylvia e distribuem entre os pobres, o que acaba com as empresas que regulam o tempo e leva os pobres a tomarem as ruas e os setores mais ricos sem nenhuma cobrança devida, como era feito anteriormente.

O filme é uma reflexão sobre o tempo que gastamos com coisas fúteis, ensinando a valorizar as horas e os dias de forma constante, utilizando o tempo como uma moeda de troca. A ideia central é fazer as pessoas perceberem que a vida passa rapidamente diante de nossos olhos e que devemos aproveitar cada segundo nos importando com o que realmente importa.

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