APRESENTAÇÃO
Economistas, sociólogos, antropólogos e historiadores, cada um do seu jeito, vêm tentando explicar o Brasil. Eles nos desnudam, querendo nos mostrar quem somos e por que somos assim, com nossa riqueza e nossa pobreza. Cada autor tenta explicar como é que um país no qual “em se plantando tudo dá” conseguiu chegar ao grau de desigualdade e de pobreza que hoje nos acomete.
Nesta obra, escrita com competência e paixão, o historiador João Fragoso apresenta um panorama bastante diferente daquele que enxerga o capitalismo comercial atuando em terras brasileiras. Ele registra a origem da desigualdade exatamente na sobrevivência de relações feudais no mundo ibérico.
A sociedade perfeita já nasce como um candidato a livro de referência, de leitura obrigatória, tanto pela farta documentação utilizada quanto pela riqueza de análise. Leitura fascinante e obrigatória.
RESENHA
O livro aborda os traços marcantes da sociedade brasileira dos séculos XVII e XVIII, focando na concentração de riqueza e distinções sociais. O autor examina a maneira como as desigualdades eram vistas como fenômenos naturais, aceitas e até desejadas pela população, influenciadas por um pensamento cristão medieval que entendia a hierarquia social como uma ordem divina. Na análise, a sociedade é apresentada como uma “sociedade perfeita” baseada na desigualdade, com a autoridade dos senhores sobre homens e mulheres, refletindo visões familiares de obediência. O livro destaca a formação de uma elite agrária no Brasil colonial, onde a escravidão e a concentração de terras eram fundamentais para a economia, e onde a miséria e a opressão eram aceitas como partes do destino social.
Os capítulos exploram a transição da Europa feudal para uma sociedade dominada por uma nova ordem econômica e social, a expressão do Antigo Regime no Brasil através da exploração das culturas e do comércio de escravos, e a constituição da hierarquia social local, com elites neoterritoriais que negociavam e controlavam a população e a economia.
Com um olhar para as transformações do século XVIII, o autor discute a descoberta de metais preciosos e a formação de um complexo mercado interno. O livro propõe que essa desigualdade e a noção de sociedade perfeita foram (re)criados pelos próprios brasileiros, um processo que, segundo o autor, pode contribuir para a compreensão e a redução das desigualdades sociais atuais.
O autor oferece uma análise da estrutura social e das relações de poder na Europa do século XVI, destacando a interdependência entre camponeses e aristocratas. Através das falas de personagens de peças teatrais de Thomas Middleton e William Shakespeare, a discussão se centra na dinâmica de servidão e na hierarquia social, onde a ideia de um homem sem senhor provoca estranhamento e questionamentos sobre a ordem social vigente. Os pensadores da época, tanto cristãos quanto seculares, percebiam a necessidade de uma hierarquia para a manutenção da ordem social. Mesmo os defensores de conceitos democráticos perseguiam uma estrutura que não incluía todos os cidadãos, como mulheres e lavradores, demonstrando um consenso sobre a desigualdade.
A cultura da época, ainda predominantemente rural, via a terra como um bem associado ao poder aristocrático, e a relação entre senhores e camponeses era legitimada pela tradição e pela crença religiosa. Os camponeses aceitavam a superioridade dos nobres, que eram vistos como figuras quase divinas, baseando-se na concepção de um mundo hierárquico instituído por Deus. Essa relação de dependência era caracterizada por um pacto desigual, onde os camponeses sustentavam os senhores em troca de proteção e acesso à terra. A fé cristã desempenhava um papel crucial em justificar esta hierarquia, levando os homens a interpretar sua realidade social como uma ordem natural e desejada.
Além disso, o conceito de corporações sociais aparece como fundamental para a compreensão da vida comunitária. As aldeias foram apresentadas como corporações que regulavam a vida cotidiana, organizando atividades como coletas de impostos e festas, e mediando as relações de dependência entre senhores e lavradores. Portanto, essa visão da sociedade europeia renascentista é marcada por um entendimento de hierarquia e desigualdade sustentado por estruturas religiosas e sociais profundamente enraizadas. No final do século XIII, a sociedade feudal entrou em crise devido a uma combinação de fatores, como a dificuldade de sustentar a população crescente, o aumento da fome e a mortalidade provocada pela peste bubônica, que exterminou cerca de 25 milhões de pessoas entre 1348 e 1350. O despreparo da aristocracia para lidar com essa mortalidade aprofundou a crise agrícola e a miséria urbana. O renascimento das monarquias territoriais se deu em meio a revoltas camponesas e à crise de legitimidade da Igreja Romana, gerando espaço para o surgimento de novas ideias religiosas e políticas. A centralização do poder nas mãos da Coroa se evidenciou em países como França e Espanha. A Monarquia Espanhola, formada através de alianças matrimoniais, tornou-se um império em expansão sob Carlos V. O autor também aborda as novas paisagens agrárias e a economia-mundo emergente na Europa moderna, como a protoindústria nos Países Baixos e o impacto da crescente demanda por lã na Inglaterra, que levou ao cercamento de campos e à transição gradual para um sistema capitalista. Na França, os camponeses conseguiram maior autonomia em comparação com a aristocracia.
O autor aborda os processos de constituição da sociedade aristocrática em Portugal, traçando um panorama histórico desde o final do século X até as mudanças que ocorreram ao longo da Reconquista e na transição para uma monarquia pluricontinental. Inicialmente, o Condado Portucalense, como parte da estrutura feudal do norte da península ibérica, servia de barreira contra as investidas islâmicas. Com a Reconquista no século XI, liderada por Afonso Henriques e impulsionada por alianças com cidades e a pequena nobreza, Portugal começou sua formação como reino, culminando na aclamação de Afonso como rei em 1139. A sociedade lusa se estruturou sob uma hierarquia aristocrática e católica, onde a Coroa exercia poder distribuindo privilégios e recompensas por serviços militares, posicionando-se como a "cabeça" do sistema social. A nobreza gerada era mais dependente dos favores reais do que de propriedades fundiárias, o que a diferenciava de nobrezas em outros países. Após o término da Reconquista em 1249, a escassez de recursos agrários gerou tensões sociais, pois a aristocracia desempregada e o déficit alimentar ameaçaram a estabilidade política.
O autor também descreve a evolução da Coroa e do sistema econômico, que se tornaram insustentáveis após a Reconquista. Com o reinado de D. João I, Portugal buscou alternativas econômicas através da exploração ultramarina, iniciando a conquista de Ceuta e expandindo seu comércio com a África. A aristocracia lusa passou a se envolver com o comércio, com figuras como D. Henrique liderando expedições e estabelecendo um domínio marítimo. Além disso, salienta-se que o sistema de erva aristocrático se perpetuou com a Lei Mental, que consolidou a herança em terras nobres, e a criação de morgados para garantir a continuidade das casas aristocráticas. Já no século XV, as expedições exploratórias e de comércio escravista nos arquipélagos da Madeira e Açores começaram a moldar a economia portuguesa, que se alicerçou em práticas que se refletiriam nas futuras colônias.
O autor aborda a interseção entre o comércio atlântico de escravos e o catolicismo durante a monarquia portuguesa nos séculos XVI a XIX, destacando que, mais do que um sistema de comércio, o tráfico de cativos era legitimado por uma visão religiosa que os transformava em escravos cristãos. Esse processo envolvia a conversão dos cativos por meio do batismo, que os integrava ao sistema cristão, ao mesmo tempo em que justificava a escravidão. Embora o cristianismo tivesse também começado a condenar a escravidão moralmente a partir do século XVIII, ainda assim forneceram apoio teológico e moral ao escravismo durante muito tempo.
A Igreja Católica, em particular, participou ativamente desse fenômeno, legitimando a escravidão como um meio de evangelização e impondo normas que promoviam a obediência dos cativos. Os batismos registrados nas colônias, que adotavam a prática de nomear os cativos como cristãos, simbolizavam a passagem de cativos a escravos. Assim, a produção e o comércio de cativos eram vistos como naturalizados, tanto em contextos africanos como nas Américas, e o batismo era uma formalidade essencial na conversão de cativos.
A narrativa também aponta para o papel ativo das sociedades africanas no comércio de escravos, enfatizando que estas não eram apenas passivas em relação à exploração européia, mas desenvolviam seus próprios interesses econômicos e sociais, moldando o sistema de escravidão dentro de suas culturas e contextos históricos.
O autor discute a complexidade das relações envolvendo o tráfico, argumentando que este não se resumia apenas a interesses europeus, mas que as comunidades africanas tinham papéis significativos e estruturas próprias de poder que influenciaram o fluxo do comércio atlântico.
Finalmente, conclui que a história do tráfico de escravos é uma narrativa compartilhada entre as experiências africanas e americanas, e que a deslegitimação do escravismo na atualidade não deve obscurecer as compreensões históricas sobre a combinação de fatores sociais, culturais, políticos e económicos que permitiram a perpetuação desse sistema.
O autor aborda a dinâmica das capitanias hereditárias no Brasil em relação às populações indígenas, especialmente os tupinambás, destacando os conflitos entre essas sociedades e os portugueses durante a colonização. Inicialmente, descreve a organização social e política dos tupinambás, que eram estruturadas em aldeias, com laços familiares e alianças intercomunitárias fortemente influenciadas pelo cunhadismo, formando a base de sua identidade e resistência às invasões europeias.
A implantação do sistema de capitanias hereditárias, inspirado na experiência da Coroa portuguesa durante a Reconquista, buscava criar feudos políticos e econômicos em que os donatários exerceriam autoridade e controle sobre a justiça e a economia local. No entanto, a maioria das capitanias falhou devido a constantes ataques indígenas, com exceção de São Vicente e Pernambuco, onde os donatários souberam negociar e aliar-se aos indígenas, utilizando a guerra e o cunhadismo como ferramentas para consolidar seu poder.
Ao longo do tempo, a relação entre os portugueses e os tupinambás se tornou marcada por conflitos, mas também acordos, levando à resistência e à realocação de comunidades indígenas em aldeamentos. A chegada do Governo-Geral em 1549, sob Tomé de Souza, buscou implementar uma administração mais centralizada e robusta, essencial para enfrentar a pequena população europeia e a resistência indígena. A estratégia envolveu a formação de alianças políticas e ofereceu proteção a líderes indígenas, enquanto procurava enraizar a fé católica e a disciplina social entre os nativos.
O autor examina a evolução dessa relação até a consolidação da economia baseada na escravidão indígena, destacando a dependência dos portugueses em relação a essa mão de obra. A exploração dos indígenas e o subsequente tráfico de africanos configuraram uma complexa rede de controle social e econômico que caracterizou o desenvolvimento do Antigo Regime nas colônias, culminando na formação de uma elite mameluca que expandiu sua influência em busca de terras e riquezas.
O autor aborda a realidade da escravidão e os circuitos regionais de mercado interno durante o século XVIII na Monarquia pluricontinental portuguesa. Entre 1700 e 1709, houve um fluxo significativo de escravos africanos para as principais cidades brasileiras, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife, que se transformaram em centros de comércio e populações multiculturais. Esse movimento de cativos não levou ao colapso social, mas à consolidação de uma sociedade marcada por hierarquias sociais.
O "achamento" das minas em Minas Gerais, impulsionado pela demanda de ouro, intensificou a escravidão e as tensões de poder entre as elites locais e a Coroa portuguesa, levando a negociações complexas sobre a governança e o controle das riquezas mineradoras. As elites locais buscavam mercês da Coroa para obter privilégios, enquanto a Coroa, por sua vez, procurava estabelecer um controle econômico e político sobre a região.
O autor também destaca a evolução econômica que a exploração mineral trouxe, refletindo uma rede de lógicas sociais e econômicas baseada na escravidão, no trabalho compulsório e na produção interna voltada para o abastecimento de populações. As tensões entre diferentes localidades, como as de São Paulo e do Rio de Janeiro, foram marcadas por disputas de poder e uma política de patronagem que moldou o Antigo Regime nas Américas.
A análise Gabriel do autor revela que, apesar das complexidades sociais e do sofrimento inerente à escravidão, o sistema e as estruturas de poder presentes se mostraram resilientes, resultando em uma sociedade que, apesar de suas contradições, se desenvolveu e se estruturou em bases sólidas ao longo do tempo.
O autor analisa a complexidade da formação da sociedade na América lusa entre os séculos XVI e XVIII, destacando a transformação demográfica e social ocorrida nesse período. A população brasileira cresceu significativamente, principalmente devido ao aumento do tráfico atlântico de escravos africanos, que resultou em uma população majoritariamente negra e mestiça em diversas regiões. As capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará apresentaram uma alta percentagem de negros e pardos, com Salvador do Bahia se tornando a segunda maior cidade da América na época.
A análise aponta que, à medida que a população de forros (escravos libertos) cresceu, a hierarquia social também começou a mudar, levando à formação de novos grupos sociais, como comerciantes e senhores de escravos. A economia do Antigo Regime se expandiu, sustentada pelo trabalho escravo e pela intensa comercialização de produtos agrícolas em mercados interligados na colônia, enquanto muitos caixeiros se tornaram poderosos negociantes.
O autor destaca que a sociedade lusa era marcada por desigualdades sociais, onde privilégios eram concentrados em poucas famílias, e existiam tensões entre as classes sociais. Apesar do sistema opressivo, o período foi também de mudanças e resistências, com a crescente importância dos forros e a crítica à escravidão e suas práticas.
Documentos e relatos históricos usados pelo autor revelam que, naquele contexto, as relações sociais eram moldadas por práticas culturais baseadas no catolicismo e na concepção de uma sociedade hierárquica. Por fim, o autor convida futuros pesquisadores a explorar mais sobre as interações sociais e contextos históricos do Brasil, sugerindo que muitas outras dimensões ainda precisam ser estudadas.
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