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Resenha: A sociedade perfeita, de João Fragoso



APRESENTAÇÃO

Economistas, sociólogos, antropólogos e historiadores, cada um do seu jeito, vêm tentando explicar o Brasil. Eles nos desnudam, querendo nos mostrar quem somos e por que somos assim, com nossa riqueza e nossa pobreza. Cada autor tenta explicar como é que um país no qual “em se plantando tudo dá” conseguiu chegar ao grau de desigualdade e de pobreza que hoje nos acomete.

Nesta obra, escrita com competência e paixão, o historiador João Fragoso apresenta um panorama bastante diferente daquele que enxerga o capitalismo comercial atuando em terras brasileiras. Ele registra a origem da desigualdade exatamente na sobrevivência de relações feudais no mundo ibérico.

A sociedade perfeita já nasce como um candidato a livro de referência, de leitura obrigatória, tanto pela farta documentação utilizada quanto pela riqueza de análise. Leitura fascinante e obrigatória.

RESENHA

O livro aborda os traços marcantes da sociedade brasileira dos séculos XVII e XVIII, focando na concentração de riqueza e distinções sociais. O autor examina a maneira como as desigualdades eram vistas como fenômenos naturais, aceitas e até desejadas pela população, influenciadas por um pensamento cristão medieval que entendia a hierarquia social como uma ordem divina.  Na análise, a sociedade é apresentada como uma “sociedade perfeita” baseada na desigualdade, com a autoridade dos senhores sobre homens e mulheres, refletindo visões familiares de obediência. O livro destaca a formação de uma elite agrária no Brasil colonial, onde a escravidão e a concentração de terras eram fundamentais para a economia, e onde a miséria e a opressão eram aceitas como partes do destino social.

Os capítulos exploram a transição da Europa feudal para uma sociedade dominada por uma nova ordem econômica e social, a expressão do Antigo Regime no Brasil através da exploração das culturas e do comércio de escravos, e a constituição da hierarquia social local, com elites neoterritoriais que negociavam e controlavam a população e a economia. 

Com um olhar para as transformações do século XVIII, o autor discute a descoberta de metais preciosos e a formação de um complexo mercado interno. O livro propõe que essa desigualdade e a noção de sociedade perfeita foram (re)criados pelos próprios brasileiros, um processo que, segundo o autor, pode contribuir para a compreensão e a redução das desigualdades sociais atuais.


O autor oferece uma análise da estrutura social e das relações de poder na Europa do século XVI, destacando a interdependência entre camponeses e aristocratas. Através das falas de personagens de peças teatrais de Thomas Middleton e William Shakespeare, a discussão se centra na dinâmica de servidão e na hierarquia social, onde a ideia de um homem sem senhor provoca estranhamento e questionamentos sobre a ordem social vigente. Os pensadores da época, tanto cristãos quanto seculares, percebiam a necessidade de uma hierarquia para a manutenção da ordem social. Mesmo os defensores de conceitos democráticos perseguiam uma estrutura que não incluía todos os cidadãos, como mulheres e lavradores, demonstrando um consenso sobre a desigualdade.

A cultura da época, ainda predominantemente rural, via a terra como um bem associado ao poder aristocrático, e a relação entre senhores e camponeses era legitimada pela tradição e pela crença religiosa. Os camponeses aceitavam a superioridade dos nobres, que eram vistos como figuras quase divinas, baseando-se na concepção de um mundo hierárquico instituído por Deus. Essa relação de dependência era caracterizada por um pacto desigual, onde os camponeses sustentavam os senhores em troca de proteção e acesso à terra. A fé cristã desempenhava um papel crucial em justificar esta hierarquia, levando os homens a interpretar sua realidade social como uma ordem natural e desejada.

Além disso, o conceito de corporações sociais aparece como fundamental para a compreensão da vida comunitária. As aldeias foram apresentadas como corporações que regulavam a vida cotidiana, organizando atividades como coletas de impostos e festas, e mediando as relações de dependência entre senhores e lavradores. Portanto, essa visão da sociedade europeia renascentista é marcada por um entendimento de hierarquia e desigualdade sustentado por estruturas religiosas e sociais profundamente enraizadas. No final do século XIII, a sociedade feudal entrou em crise devido a uma combinação de fatores, como a dificuldade de sustentar a população crescente, o aumento da fome e a mortalidade provocada pela peste bubônica, que exterminou cerca de 25 milhões de pessoas entre 1348 e 1350. O despreparo da aristocracia para lidar com essa mortalidade aprofundou a crise agrícola e a miséria urbana. O renascimento das monarquias territoriais se deu em meio a revoltas camponesas e à crise de legitimidade da Igreja Romana, gerando espaço para o surgimento de novas ideias religiosas e políticas. A centralização do poder nas mãos da Coroa se evidenciou em países como França e Espanha. A Monarquia Espanhola, formada através de alianças matrimoniais, tornou-se um império em expansão sob Carlos V. O autor também aborda as novas paisagens agrárias e a economia-mundo emergente na Europa moderna, como a protoindústria nos Países Baixos e o impacto da crescente demanda por lã na Inglaterra, que levou ao cercamento de campos e à transição gradual para um sistema capitalista. Na França, os camponeses conseguiram maior autonomia em comparação com a aristocracia.

O autor aborda os processos de constituição da sociedade aristocrática em Portugal, traçando um panorama histórico desde o final do século X até as mudanças que ocorreram ao longo da Reconquista e na transição para uma monarquia pluricontinental. Inicialmente, o Condado Portucalense, como parte da estrutura feudal do norte da península ibérica, servia de barreira contra as investidas islâmicas. Com a Reconquista no século XI, liderada por Afonso Henriques e impulsionada por alianças com cidades e a pequena nobreza, Portugal começou sua formação como reino, culminando na aclamação de Afonso como rei em 1139. A sociedade lusa se estruturou sob uma hierarquia aristocrática e católica, onde a Coroa exercia poder distribuindo privilégios e recompensas por serviços militares, posicionando-se como a "cabeça" do sistema social. A nobreza gerada era mais dependente dos favores reais do que de propriedades fundiárias, o que a diferenciava de nobrezas em outros países. Após o término da Reconquista em 1249, a escassez de recursos agrários gerou tensões sociais, pois a aristocracia desempregada e o déficit alimentar ameaçaram a estabilidade política.

O autor também descreve a evolução da Coroa e do sistema econômico, que se tornaram insustentáveis após a Reconquista. Com o reinado de D. João I, Portugal buscou alternativas econômicas através da exploração ultramarina, iniciando a conquista de Ceuta e expandindo seu comércio com a África. A aristocracia lusa passou a se envolver com o comércio, com figuras como D. Henrique liderando expedições e estabelecendo um domínio marítimo. Além disso, salienta-se que o sistema de erva aristocrático se perpetuou com a Lei Mental, que consolidou a herança em terras nobres, e a criação de morgados para garantir a continuidade das casas aristocráticas. Já no século XV, as expedições exploratórias e de comércio escravista nos arquipélagos da Madeira e Açores começaram a moldar a economia portuguesa, que se alicerçou em práticas que se refletiriam nas futuras colônias.

O autor aborda a interseção entre o comércio atlântico de escravos e o catolicismo durante a monarquia portuguesa nos séculos XVI a XIX, destacando que, mais do que um sistema de comércio, o tráfico de cativos era legitimado por uma visão religiosa que os transformava em escravos cristãos. Esse processo envolvia a conversão dos cativos por meio do batismo, que os integrava ao sistema cristão, ao mesmo tempo em que justificava a escravidão. Embora o cristianismo tivesse também começado a condenar a escravidão moralmente a partir do século XVIII, ainda assim forneceram apoio teológico e moral ao escravismo durante muito tempo.

A Igreja Católica, em particular, participou ativamente desse fenômeno, legitimando a escravidão como um meio de evangelização e impondo normas que promoviam a obediência dos cativos. Os batismos registrados nas colônias, que adotavam a prática de nomear os cativos como cristãos, simbolizavam a passagem de cativos a escravos. Assim, a produção e o comércio de cativos eram vistos como naturalizados, tanto em contextos africanos como nas Américas, e o batismo era uma formalidade essencial na conversão de cativos.

A narrativa também aponta para o papel ativo das sociedades africanas no comércio de escravos, enfatizando que estas não eram apenas passivas em relação à exploração européia, mas desenvolviam seus próprios interesses econômicos e sociais, moldando o sistema de escravidão dentro de suas culturas e contextos históricos.

O autor discute a complexidade das relações envolvendo o tráfico, argumentando que este não se resumia apenas a interesses europeus, mas que as comunidades africanas tinham papéis significativos e estruturas próprias de poder que influenciaram o fluxo do comércio atlântico.

Finalmente, conclui que a história do tráfico de escravos é uma narrativa compartilhada entre as experiências africanas e americanas, e que a deslegitimação do escravismo na atualidade não deve obscurecer as compreensões históricas sobre a combinação de fatores sociais, culturais, políticos e económicos que permitiram a perpetuação desse sistema.

O autor aborda a dinâmica das capitanias hereditárias no Brasil em relação às populações indígenas, especialmente os tupinambás, destacando os conflitos entre essas sociedades e os portugueses durante a colonização. Inicialmente, descreve a organização social e política dos tupinambás, que eram estruturadas em aldeias, com laços familiares e alianças intercomunitárias fortemente influenciadas pelo cunhadismo, formando a base de sua identidade e resistência às invasões europeias.

A implantação do sistema de capitanias hereditárias, inspirado na experiência da Coroa portuguesa durante a Reconquista, buscava criar feudos políticos e econômicos em que os donatários exerceriam autoridade e controle sobre a justiça e a economia local. No entanto, a maioria das capitanias falhou devido a constantes ataques indígenas, com exceção de São Vicente e Pernambuco, onde os donatários souberam negociar e aliar-se aos indígenas, utilizando a guerra e o cunhadismo como ferramentas para consolidar seu poder.

Ao longo do tempo, a relação entre os portugueses e os tupinambás se tornou marcada por conflitos, mas também acordos, levando à resistência e à realocação de comunidades indígenas em aldeamentos. A chegada do Governo-Geral em 1549, sob Tomé de Souza, buscou implementar uma administração mais centralizada e robusta, essencial para enfrentar a pequena população europeia e a resistência indígena. A estratégia envolveu a formação de alianças políticas e ofereceu proteção a líderes indígenas, enquanto procurava enraizar a fé católica e a disciplina social entre os nativos.

O autor examina a evolução dessa relação até a consolidação da economia baseada na escravidão indígena, destacando a dependência dos portugueses em relação a essa mão de obra. A exploração dos indígenas e o subsequente tráfico de africanos configuraram uma complexa rede de controle social e econômico que caracterizou o desenvolvimento do Antigo Regime nas colônias, culminando na formação de uma elite mameluca que expandiu sua influência em busca de terras e riquezas.

O autor aborda a realidade da escravidão e os circuitos regionais de mercado interno durante o século XVIII na Monarquia pluricontinental portuguesa. Entre 1700 e 1709, houve um fluxo significativo de escravos africanos para as principais cidades brasileiras, como Salvador, Rio de Janeiro e Recife, que se transformaram em centros de comércio e populações multiculturais. Esse movimento de cativos não levou ao colapso social, mas à consolidação de uma sociedade marcada por hierarquias sociais.

O "achamento" das minas em Minas Gerais, impulsionado pela demanda de ouro, intensificou a escravidão e as tensões de poder entre as elites locais e a Coroa portuguesa, levando a negociações complexas sobre a governança e o controle das riquezas mineradoras. As elites locais buscavam mercês da Coroa para obter privilégios, enquanto a Coroa, por sua vez, procurava estabelecer um controle econômico e político sobre a região.

O autor também destaca a evolução econômica que a exploração mineral trouxe, refletindo uma rede de lógicas sociais e econômicas baseada na escravidão, no trabalho compulsório e na produção interna voltada para o abastecimento de populações. As tensões entre diferentes localidades, como as de São Paulo e do Rio de Janeiro, foram marcadas por disputas de poder e uma política de patronagem que moldou o Antigo Regime nas Américas.

A análise Gabriel do autor revela que, apesar das complexidades sociais e do sofrimento inerente à escravidão, o sistema e as estruturas de poder presentes se mostraram resilientes, resultando em uma sociedade que, apesar de suas contradições, se desenvolveu e se estruturou em bases sólidas ao longo do tempo.

O autor analisa a complexidade da formação da sociedade na América lusa entre os séculos XVI e XVIII, destacando a transformação demográfica e social ocorrida nesse período. A população brasileira cresceu significativamente, principalmente devido ao aumento do tráfico atlântico de escravos africanos, que resultou em uma população majoritariamente negra e mestiça em diversas regiões. As capitanias de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará apresentaram uma alta percentagem de negros e pardos, com Salvador do Bahia se tornando a segunda maior cidade da América na época.

A análise aponta que, à medida que a população de forros (escravos libertos) cresceu, a hierarquia social também começou a mudar, levando à formação de novos grupos sociais, como comerciantes e senhores de escravos. A economia do Antigo Regime se expandiu, sustentada pelo trabalho escravo e pela intensa comercialização de produtos agrícolas em mercados interligados na colônia, enquanto muitos caixeiros se tornaram poderosos negociantes.

O autor destaca que a sociedade lusa era marcada por desigualdades sociais, onde privilégios eram concentrados em poucas famílias, e existiam tensões entre as classes sociais. Apesar do sistema opressivo, o período foi também de mudanças e resistências, com a crescente importância dos forros e a crítica à escravidão e suas práticas.

Documentos e relatos históricos usados pelo autor revelam que, naquele contexto, as relações sociais eram moldadas por práticas culturais baseadas no catolicismo e na concepção de uma sociedade hierárquica. Por fim, o autor convida futuros pesquisadores a explorar mais sobre as interações sociais e contextos históricos do Brasil, sugerindo que muitas outras dimensões ainda precisam ser estudadas.

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Resenha: 200 crônicas escolhidas, de Rubem Braga

 

SINOPSE

Rubem Braga conquistou os corações dos leitores com sua habilidade singular de tecer narrativas envolventes sobre o cotidiano brasileiro. Não à toa, seu nome é hoje sinônimo de crônica, estilo que o consagrou e que foi consagrado pelo autor. Com uma sensibilidade aguçada, ele explorou uma variedade de temas, desde questões políticas até a beleza da natureza, cativando uma legião de fãs ao longo das décadas.

Neste volume de 528 páginas, os leitores encontrarão uma coleção diversificada que reflete a multifacetada habilidade de Braga como cronista. Desde relatos do cotidiano até reflexões profundas sobre a condição humana, 200 Crônicas escolhidas proporciona uma jornada inesquecível pelos escritos de um dos mestres da crônica brasileira.

O crítico literário André Seffrin, responsável pela organização deste volume, mergulhou fundo no vasto repertório de Braga para oferecer aos leitores uma experiência literária abrangente e emocionante. Desde as crônicas mais antigas até aquelas publicadas postumamente, a seleção foi cuidadosamente concebida para representar o melhor do legado do escritor.

200 Crônicas escolhidas é, assim, mais do que uma antologia; é uma homenagem vibrante a um dos grandes mestres da literatura brasileira, apresentada de forma magistral pela Global Editora.

O livro faz parte de um amplo projeto da editora em renovar as publicações de Rubem Braga. Este novo volume é a culminância de uma iniciativa iniciada em outubro de 2021 com o lançamento de 50 Crônicas escolhidas; seguido, em setembro de 2022, por 100 Crônicas escolhidas; e, em março de 2023, com o livro 150 Crônicas escolhidas. A ideia é que os leitores possam ter à sua disposição antologias concebidas com extensões várias e pressupostos também distintos entre si. Um percurso irrecusável para todo aquele que deseja passear pelas mais sublimes manifestações literárias da perspicaz sensibilidade do cronista.

RESENHA

200 Crônicas Escolhidas, de Rubem Braga, é uma antologia que celebra a genialidade de um dos maiores cronistas da literatura brasileira. Com uma prosa leve e ao mesmo tempo profunda, Braga é capaz de capturar a essência do cotidiano de forma singular, transformando pequenas situações em reflexões sobre a vida, a sociedade e a condição humana. Nesta coletânea, o leitor é convidado a embarcar em uma jornada literária que abrange uma vasta gama de temas, desde a beleza da natureza até os desafios da vida urbana, passando por questões políticas e sociais que permanecem relevantes.

Entre as crônicas selecionadas, destacam-se textos como "As Meninas e Eu", onde o autor evoca um momento de simplicidade e beleza na praia, refletindo sobre a alegria pura e efêmera da infância. "A Menina Silvana" traz uma cena impactante da guerra, onde a fragilidade de uma menina se contrasta com a brutalidade do conflito, revelando a sensibilidade de Braga diante da dor e do sofrimento. Em "A equipe", ele revisita memórias de um time de futebol, onde a camaradagem e a nostalgia permeiam as recordações. "As Luvas" ilustra a busca pelo significado nas pequenas coisas, como um par de luvas que evoca a presença de uma mulher enigmática em sua vida. Por fim, "O telefone" apresenta uma crítica bem-humorada e mordaz à burocracia, mostrando o cotidiano do jornalista que precisa lidar com as absurdidades do seu ofício.

A seleção organizada pelo crítico literário André Seffrin é uma verdadeira homenagem ao legado de Braga. As crônicas escolhidas são cuidadosamente dispostas de maneira a mostrar a evolução do autor ao longo de sua carreira, permitindo que o leitor aprecie não apenas a maestria de sua escrita, mas também a profundidade de suas observações. A obra abrange desde textos clássicos até crônicas menos conhecidas, oferecendo um panorama abrangente da sensibilidade e da perspicácia do autor.

Um dos pontos altos de "200 Crônicas Escolhidas" é a capacidade de Braga de fazer o leitor refletir sobre a simplicidade das coisas. Suas palavras têm o poder de evocar emoções e despertar memórias, fazendo com que cada crônica ressoe de maneira pessoal. Braga consegue, com sua escrita delicada e humorística, transformar o banal em algo digno de nota, revelando as nuances da experiência humana.

Além disso, a obra demonstra a habilidade de Braga em conectar-se com seus leitores de forma íntima, utilizando uma linguagem acessível, mas rica em significado. Ele é um observador atento da vida ao seu redor, e suas crônicas transmitem essa visão aguçada, tornando-as atemporais.

A editora Global apresenta esta antologia de forma primorosa, contribuindo para a renovação das publicações de Rubem Braga. "200 Crônicas Escolhidas" é um convite irresistível para todos que desejam se aprofundar na obra deste mestre da crônica, proporcionando uma leitura prazerosa e enriquecedora. É uma chance de revisitar as sublimes manifestações literárias de Braga, que, mesmo décadas após sua publicação, continuam a ecoar na mente e no coração dos leitores.

Em suma, "200 Crônicas Escolhidas" não é apenas uma antologia; é uma celebração da vida e da arte de escrever. A obra reafirma a importância de Rubem Braga na literatura brasileira e convida novos leitores a descobrir a beleza e a profundidade de suas crônicas, que permanecem tão relevantes e impactantes quanto no momento de sua escrita. Esta coletânea é uma leitura obrigatória para aqueles que buscam inspiração e reflexão através da literatura.

Resenha: O feijão e o sonho, de Orígenes Lessa



SINOPSE: O feijão e o sonho narra o relacionamento conflitante entre Campos Lara e sua esposa Maria Rosa, dois seres antagônicos, mas incrivelmente unidos. Ele, professor, escritor com seis livros publicados e intelectual, porém um alienado incapaz de ser um pai e marido comprometido em assumir as mínimas obrigações do dia a dia – moradia, alimentação, vestuário.

Maria Rosa, ao contrário, representa o senso prático da vida, o esteio para a família não desmoronar. Um inadaptado. Homem como ele não nascera para o casamento, para a vida do lar. Maria Rosa tinha razão, quase sempre. Ela era o Bom-Senso. Maria Rosa não era uma inimiga. Maria Rosa era o outro lado da vida. O lado em que não daria coisa nenhuma, em que ele sempre fracassaria. O duro. O difícil. O sem cadência nem rima. O do seu permanente naufrágio. Uma história humana e envolvente sobre a difícil arte de conviver.

RESENHA

"O Feijão e o Sonho" é um romance do autor brasileiro Orígenes Lessa, lançado em 1938. A história acompanha Campos Lara, um poeta imerso em seus sonhos literários, desconsiderando as realidades práticas da luta pela sobrevivência. Casado com Maria Rosa, o casal enfrenta um desajuste constante. A família depende de Chico Matraca, o chefe de Lara, que recebe um salário mensal bastante modesto.

"O Feijão e o Sonho", de Orígenes Lessa, é uma obra que retrata de forma sensível e profunda a complexidade das relações familiares e as dificuldades enfrentadas por um casal em meio à luta por sobrevivência e realização pessoal. A narrativa gira em torno de Maria Rosa, uma mulher que se vê sobrecarregada com as responsabilidades do lar e da educação dos filhos, e de Campos Lara, seu marido, um poeta em busca de reconhecimento e sucesso literário.

Maria Rosa é uma figura central na história, representando a força e a resiliência das mulheres que carregam o peso das obrigações familiares. A rotina dela é marcada por uma agitação constante: acorda cedo, prepara o café, cuida da casa e se desdobra para lidar com as travessuras das crianças. A tensão em seu relacionamento com Juca, como ela carinhosamente chama Campos Lara, é palpável. Ele, frequentemente alheio às dificuldades que ela enfrenta, embarca em suas ambições literárias, enquanto Maria Rosa se sente cada vez mais sobrecarregada. Sua frustração é evidente, e ela lamenta a falta de apoio do marido, que parece mais interessado em seus personagens fictícios do que nos desafios reais da vida familiar.

Os diálogos entre os personagens revelam o caos do dia a dia. As interações com as crianças são uma fonte de conflito, e Maria Rosa tenta impor disciplina em meio à indisciplina. Sua autoritariedade, no entanto, é acompanhada por uma sensação de impotência. Juca, por sua vez, embora bem-intencionado, não consegue contribuir efetivamente, o que apenas intensifica a irritação de Maria Rosa.

A narrativa também destaca a dualidade entre a vida doméstica de Maria Rosa e a vida profissional de Juca, que é professor. Enquanto ele tem paixão pela educação, enfrenta desafios com a falta de comprometimento dos alunos e a desorganização do ambiente escolar. Essa dicotomia entre a vida pessoal e profissional de ambos os personagens ilustra as dificuldades que enfrentam em suas respectivas esferas, revelando a luta diária das mulheres e as dinâmicas familiares complexas.

À medida que a história avança, a gravidez de Maria Rosa traz novas complicações emocionais e físicas. A pressão da maternidade e a solidão se tornam mais intensas, especialmente quando Lara se afasta ainda mais, mergulhado em suas criações literárias. A transformação de Maria Rosa, passando de uma mulher cheia de sonhos e esperanças para uma figura que enfrenta angústias e frustrações, é marcante. A relação entre eles se deteriora à medida que ela se sente isolada e desvalorizada, e a repulsão que começa a sentir por Juca reflete a crescente distância entre suas vidas.

A chegada de um novo filho traz um misto de alegria e novas responsabilidades. A felicidade pela família se expande é ofuscada pela realidade financeira e as dificuldades que persistem. Apesar do sucesso de Campos Lara como romancista, a vida familiar continua a ser uma luta diária. A tensão entre suas aspirações artísticas e as necessidades práticas da vida familiar se intensifica, levando a um ciclo de insatisfação e descontentamento que permeia a obra.

O romance, bem recebido pela crítica, oferece um vislumbre da glória momentânea de Lara, mas também destaca a fragilidade de suas conquistas. O dinheiro entra na casa, mas as dívidas continuam a se acumular, e Maria Rosa, que havia encontrado um certo alívio, logo se vê diante de novas preocupações. A relação entre eles é marcada por um desequilíbrio, com Campos Lara se distanciando cada vez mais das responsabilidades da paternidade e do casamento.

A obra explora temas como a luta por reconhecimento, a tensão entre sonho e realidade, e as dificuldades emocionais da maternidade. Campos Lara, diante de seu sucesso, reflete sobre sua identidade como poeta e suas limitações como provedor. Ele se questiona sobre o que realmente pode oferecer à sua família, enquanto a solidão e a frustração criativa o consomem. A narrativa culmina em um retrato da solidão do artista, que, apesar de alcançar a glória literária, se vê isolado e desiludido em sua vida pessoal.

Em última análise, "O Feijão e o Sonho" é uma reflexão poderosa sobre as escolhas que fazemos, as consequências dessas escolhas e a busca incessante por um equilíbrio entre os sonhos e as obrigações da vida cotidiana. A obra de Lessa é um convite à empatia, que nos leva a refletir sobre o papel da mulher, a natureza da ambição e a complexidade das relações humanas em um mundo em constante transformação.

Resenha: Romanceiro da inconfidência, de Cecília Meireles


APRESENTAÇÃO 

Os poemas aqui reunidos – cada qual com vida própria – formam um longo e único poema, lírico e épico ao mesmo tempo em que conta a história de Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira. Elaborado por meio de uma profunda pesquisa, a conspiração revolucionária de poetas é recriada com maestria pela imensa poeta Cecília Meireles.

A mim, o que mais me doera,

se eu fora o tal Tiradentes,

era o sentir-me mordido

por esse em quem pôs os dentes.

Mal-empregado trabalho,

na boca dos maldizentes! 

[…]

RESENHA

"Romanceiro da Inconfidência" é uma obra poética da renomada escritora brasileira Cecília Meireles, publicada em 1953. Este livro apresenta uma rica narrativa que abrange a história de Minas Gerais, desde os primórdios da colonização no século XVII até a Inconfidência Mineira, evento de grande relevância que ocorreu no final do século XVIII na então Capitania de Minas Gerais. Através de 85 "romances", acompanhados por quatro "cenários" e outros textos que compõem o prólogo e o êxodo, Cecília Meireles evoca a realidade da escravidão dos africanos na região central do planalto, retratando episódios relacionados à exploração do ouro e dos diamantes que marcaram o século XVIII.

O livro traça um panorama que começa na colonização do século XVII e culmina na Inconfidência Mineira, um movimento de insurreição contra o domínio colonial português. A poetisa consegue, com maestria, transformar eventos históricos em poesia, dando voz a personagens que transcendem o tempo e o espaço, permitindo que o leitor sinta a força das narrativas que envolvem a exploração do ouro, a opressão da escravidão e a busca por liberdade.

Cecília Meireles utiliza uma linguagem rica e musical, que capta a essência da cultura e da paisagem mineira. Seus versos são impregnados de lirismo e profundo significado, revelando uma sensibilidade aguçada para as questões sociais e históricas. A obra não se limita a uma simples crônica; é um convite à reflexão sobre a identidade nacional e os valores que moldaram o Brasil.

O poema "Fala inicial", presente na obra "Romanceiro da Inconfidência" de Cecília Meireles, é uma reflexão profunda e angustiante sobre a condição humana, a memória histórica e a luta por liberdade em um contexto de opressão e esquecimento. Através de suas imagens vívidas e linguagem poética, Meireles nos transporta para um espaço onde as emoções e as realidades sociais se entrelaçam, revelando a complexidade da experiência humana diante da injustiça. Logo no início do poema, a poetisa expressa sua incapacidade de "mover os passos" em um "labirinto de esquecimento e cegueira". Este labirinto simboliza não apenas a confusão da memória histórica, mas também a alienação que permeia a sociedade. A menção a "amores e ódios" sugere a dualidade da experiência humana, onde sentimentos intensos coexistem em um contexto de sofrimento.

O poema "Romance I ou Da revelação do ouro", é uma rica e complexa reflexão sobre a busca incessante pelo ouro e suas consequências devastadoras na vida dos indivíduos e na natureza. Meireles utiliza uma linguagem vívida e simbólica para retratar a ambição humana, a exploração e a degradação que acompanham a descoberta de riquezas naturais. O poema inicia-se com uma descrição do ambiente natural, onde a fauna e a flora se entrelaçam com a presença de "um povo desgrenhado". Essa introdução estabelece um contraste entre a beleza do sertão americano e a condição precária dos homens que o habitam. O uso de imagens como "pássaros em fuga" e "fugitivos riachos" sugere um cenário de movimento e instabilidade, refletindo a inquietação dos exploradores e a tensão que permeia a busca por riqueza.

O poema "Romance XIV ou Da Chica da Silva", é uma homenagem à figura emblemática de Chica da Silva, uma mulher negra que se destacou na sociedade colonial brasileira do século XVIII, especialmente na região do Serro Frio, em Minas Gerais. Através de uma linguagem rica e musical, Meireles constrói uma narrativa que exalta a força e a singularidade desta personagem, ao mesmo tempo que critica as hierarquias sociais e raciais da época. Desde a abertura do poema, a poetisa estabelece um cenário vibrante, localizado "lá para os lados do Tejuco", onde os diamantes transbordam do cascalho. Essa descrição não apenas contextualiza o ambiente de riqueza mineral, mas também sugere a abundância e a opulência que cercavam a vida de Chica da Silva. A repetição do nome "Chica da Silva" e o epíteto "Chica-que-manda" reforçam sua posição de poder e influência, destacando como ela se tornou uma figura central na sociedade, desafiando as convenções de sua época.

O poema "Romance XXVIII ou Da denúncia de Joaquim Silvério", de Cecília Meireles, é uma crítica contundente à traição, à ambição desmedida e à moralidade questionável que permeiam as relações sociais e políticas, especialmente no contexto da Inconfidência Mineira. Através de uma linguagem rica e simbólica, Meireles constrói uma narrativa que revela a complexidade da figura de Joaquim Silvério, um delator que se aproveita da situação de crise para beneficiar-se. A obra começa com a imagem do "Palácio da Cachoeira", onde Joaquim Silvério se prepara para redigir sua carta de denúncia. A escolha do cenário é significativa, pois o palácio representa o poder e a opressão, enquanto a carta simboliza a traição e a delação. O verso "com pena bem aparada" sugere a frieza e a premeditação do ato, como se Silvério estivesse se preparando cuidadosamente para executar sua traição.

O poema "Romance LIII ou Das palavras aéreas" de Cecília Meireles é uma profunda reflexão sobre a natureza e o poder das palavras, explorando sua dualidade como ferramentas de criação e destruição. Através de uma linguagem lírica e musical, Meireles destaca a fragilidade e a força das palavras, revelando como elas moldam a experiência humana e as estruturas sociais. A transição entre a leveza e a gravidade é uma característica marcante do poema. As palavras são descritas como "tênue seda", mas também como "ferro que arrocha", mostrando sua dualidade. Elas são capazes de criar beleza e esperança, mas também dor e sofrimento. O verso "sois um homem que se enforca" é uma conclusão impactante que revela o potencial destrutivo das palavras, simbolizando a desesperança e o desespero que podem resultar da linguagem mal utilizada.

Os poemas analisados, como "Fala inicial", "Romance I ou Da revelação do ouro", "Romance XIV ou Da Chica da Silva", "Romance XXVIII ou Da denúncia de Joaquim Silvério" e "Romance LIII ou Das palavras aéreas", demonstram a versatilidade de Meireles e seu compromisso com questões sociais e históricas. Cada um deles oferece uma perspectiva única sobre a luta pela liberdade, a ambição desmedida e a fragilidade das palavras, mostrando como a linguagem pode ser um instrumento de poder e transformação. A obra é, portanto, não apenas um relato histórico, mas um convite à introspecção e à crítica social. Meireles, com sua sensibilidade aguçada, nos leva a repensar o passado e suas implicações no presente, ressaltando a importância da memória e da palavra na construção de um futuro mais justo.

Resenha: Configurações histórico-culturais dos povos americanos, de Darcy Ribeiro

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

O dinamismo do pensamento de Darcy Ribeiro sempre foi objeto de intensas polêmicas. A cada artigo ou livro que brotava de suas pesquisas e reflexões, ânimos e mentes nunca permaneciam indiferentes. Os dois ensaios do antropólogo que compõem este Configurações histórico-culturais dos povos americanos aparecem aqui devidamente analisados por intelectuais brasileiros e estrangeiros de peso que, no início dos anos 1970, foram convidados a expor suas impressões acerca das ideias de Darcy sobre as disparidades que pautaram a formação dos povos no continente americano e acerca de etapas fundamentais que vincaram a evolução sociocultural da humanidade. O primeiro ensaio presente neste volume configura-se em uma síntese de viés ensaístico de seu livro As Américas e a civilização, que aborda a gênese e os agentes provocadores dos desacertos no desenvolvimento dos povos americanos. O segundo, por sua vez, corresponde ao ensaio que encerra O processo civilizatório, livro de Darcy publicado pela primeira vez em 1968. Nessa curta reflexão, o antropólogo remonta aos primórdios da humanidade, momento visto como basilar para a justa compreensão de sua evolução sociocultural.

RESENHA

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A Antropologia tem uma contribuição menor do que o desejável para o entendimento da formação das sociedades modernas e os seus desafios de desenvolvimento, refletindo uma tendência dos cientistas sociais de se focarem em problemas menores pouco relevantes socialmente. Contudo, alguns estudiosos tentaram contrariar essa tendência, tratando de questões amplas e socialmente pertinentes, o que oferece uma perspectiva antropológica crucial para compreender a evolução e a diferenciação das sociedades modernas e os fatores que influenciaram sua integração na tecnologia da civilização industrial.

O autor se propôs a entender a formação étnica das Américas, especificamente o Brasil, necessitando uma revisão dos conceitos usados pela Antropologia e a formulação de um novo esquema evolutivo para essas sociedades. O foco principal foi a formação de novas entidades étnicas através da interação de distintas sociedades e culturas no âmbito dos processos civilizatórios, definidos por grandes inovações tecnológicas e a disseminação de seus efeitos. Tais processos geraram diferentes configurações étnico-culturais, com sociedades atuando como agentes ou pacientes dessa expansão, resultando em macroetnias ou em etnias culturalmente subjugadas.

Desde o século XVI, revoluções tecnológicas como a Revolução Mercantil e a Revolução Industrial impulsionaram quatro processos civilizatórios que moldaram o mundo. Isso originou diferentes formações sociais e econômicas, como Impérios Mercantis, Imperialistas Industriais, entre outros, e a interação entre essas formações e as sociedades dominadas foi essencial para entender as configurações histórico-culturais emergentes.

Essas dinâmicas civilizatórias não apenas dizimaram populações e culturas subjugadas, mas também fomentaram a criação de novas culturas a partir da fusão de elementos dominadores e dominados. Esse processo foi caracterizado pela deculturação, onde elementos culturais originais foram substituídos por novos, adaptados às necessidades impostas pelas sociedades dominadoras. No longo prazo, essas protoetnias almejaram independência e buscaram afirmar suas identidades nacionais, culminando no surgimento de etnias nacionais.

As sociedades modernas variam em seu grau de modernização tecnológica e nas formas como foram etnicamente remodeladas. Comparar estudos de diferentes civilizações ajuda a construir uma teoria explicativa dos processos de formações étnicas e culturais. As situações coloniais ilustram como a aculturação e a deculturação operaram nessas sociedades dominadas, ressaltando a importância de entender como novos corpos culturais se formaram, muitas vezes vistos como culturas espúrias em contraste com as autênticas.

Por fim, os povos modernos emergentes de civilizações antigas subjugadas pelo colonialismo europeu ou de culturas criadas em feitorias tropicais, enfrentaram uma alienação cultural significativa. Este processo envolveu a erradicação de suas culturas originais e a imposição de concepções degradantes de si mesmos, impostas pelas sociedades dominadoras. No entanto, essas sociedades contemporâneas estão começando a se libertar dessas amarras, reconquistando sua identidade cultural genuína.

O autor ainda discorre sobre as forças transformadoras globais provocadas pela expansão europeia, enfatizando duas revoluções tecnológicas fundamentais: a Revolução Mercantil, que criou as primeiras civilizações com bases mundiais, e a Revolução Industrial, ainda atuante na uniformização socioeconômica e cultural. Essas revoluções remodelaram a flora, a fauna e a etnicidade global, massacrando culturas originárias, fundindo povos e padronizando técnicas produtivas e sistemas sociais e políticos.

O autor propõe explorar as uniformidades histórico-culturais decorrentes desse processo, agrupando os povos extraeuropeus em quatro categorias: Povos-Testemunho, Povos-Novos, Povos-Transplantados e Povos-Emergentes. Os Povos-Testemunho são remanescentes de antigas civilizações espoliadas pela expansão europeia. Os Povos-Novos, como os americanos, surgiram da fusão de indígenas, negros e europeus. Povos-Transplantados referem-se a populações europeias implantadas em territórios ultramarinos mantendo suas características originais. Finalmente, os Povos-Emergentes são nações africanas e asiáticas que evoluíram a partir de estruturas tribais ou coloniais.

Essas categorias foram criadas para explicar como esses povos, apesar de culturalmente distintos, mantiveram algumas singularidades, formando assim configurações socioeconômicas homogêneas. O autor se aprofunda na forma como os Povos-Testemunho integraram as tradições europeias e as suas próprias, enfrentando desafios na adaptação à modernidade imposta pelo colonialismo. O Japão e a China foram exemplos de sucesso parcial, enquanto outros países ainda lutam contra as deformações e marginalização provocadas pela dominação histórica. O documento conclui destacando que, além dos desafios de desenvolvimento socioeconômico, os Povos-Testemunho enfrentam a difícil tarefa de integrar suas populações marginais, preservando ao mesmo tempo suas identidades culturais e respeitando a autonomia das etnias diferenciadas. A verdadeira integração requer a aceitação de seu caráter multiétnico e a abolição das políticas de assimilação compulsória.

O autor retrata ainda as forças transformadoras das Revoluções Mercantil e Industrial, impulsionadas pelos povos ibéricos e, posteriormente, outros europeus. A Revolução Mercantil iniciou a criação de civilizações de base mundial, enquanto a Revolução Industrial promoveu a uniformização socioeconômica e cultural globais, levando a uma civilização comum. Estas revoluções civilizatórias reordenaram a natureza, estandardizando flora e fauna globalmente, e transfiguraram povos ao dizimarem etnias e fundirem raças, línguas e culturas. Este impacto homogeneizou as técnicas produtivas, os modos de ordenação social e política e o conhecimento, crenças e valores.

No plano mundial, as diferenças étnicas são menos relevantes diante das uniformidades causadas pela expansão europeia. Estas uniformidades podem ser socieconômicas, relacionadas ao grau de integração na civilização industrial moderna, ou histórico-culturais, surgidas de distintos processos de formação étnica. Assim, é possível classificar os povos extraeuropeus em quatro configurações histórico-culturais: Povos-Testemunho, Povos-Novos, Povos-Transplantados e Povos-Emergentes. Cada grupo possui características específicas de formação étnica, mas não podem ser considerados entidades socioculturais independentes. As unidades operativas são as sociedades e culturas particulares, e os estados nacionais.

Os Povos-Testemunho são representantes de civilizações antigas espoliadas pela expansão europeia, enfrentando a tarefa de integrar suas tradições culturais com a influência europeia. Estes povos lidam com um conflito interno entre manter suas tradições e a modernização forçada. O Japão e a China são exemplos de sucesso nesta integração, enquanto outros Povos-Testemunho continuam a enfrentar divisões internas.

Nas Américas, os Povos-Testemunho sofreram um processo de europeização compulsória, resultando em uma configuração étnica misturada. Nações modernas como Índia, China, México e países andinos representam este grupo, lidando com heranças históricas de espoliação e desafios de desenvolvimento socioeconômico e cultural.

Povos-Novos, formados na América pelo encontro e fusão de europeus, indígenas e negros, apresentam uma etnia mestiça predominantemente. Povos-Transplantados, comunidades formadas por europeus em novas terras, mantiveram suas características culturais originais. A classificação de povos extraeuropeus baseia-se na formação histórica e nos desafios enfrentados por cada grupo, como a integração de tradições e desenvolvimento econômico-social. As nações da América do Sul, por exemplo, apresentam configurações híbridas, refletindo a complexa interação cultural e histórica. Em resumo, o conteúdo aborda a influência europeia na formação das configurações étnicas e culturais atuais, evidenciando a complexidade das interações civilizatórias iniciadas pelas revoluções mercantil e industrial.

O autor examina as grandes configurações histórico-culturais de povos extraeuropeus, classificando-os em quatro categorias e avaliando seu desenvolvimento. Observa uniformidades e discrepâncias, destacando como a estratificação social impactou o desenvolvimento. Os Povos-Transplantados como EUA e Canadá alcançaram maior progresso devido à sua formação flexível e igualitária, enquanto os Povos-Novos e Povos-Testemunho enfrentam maiores obstáculos devido a uma formação hierárquica, marginalização cultural e social, e desigualdade econômica enraizada.

A exploração colonial afetou profundamente essas regiões, criando estruturas sociais rígidas e desiguais que dificultam a industrialização. Esses povos foram usados para enriquecer elites locais e estrangeiras, sem incentivo para desenvolver suas próprias economias. A industrialização, quando presente, ocorre de forma distorcida, voltada para exportação e sem benefícios para a população em geral. Há uma crescente marginalização socioeconômica, criando uma grande massa de desfavorecidos com potencial para fomentar mudanças sociais futuras.

A resistência ao progresso se deve ao controle oligárquico e à exploração externa, resultando em uma forma deformada de industrialização que não promove renovação social. Portanto, para superar esses desafios e alcançar um desenvolvimento mais equitativo, seria necessário reestruturar profundamente as bases socioeconômicas e políticas dessas regiões.

O estudo da evolução sociocultural revela que as sociedades humanas se transformaram significativamente a partir da Revolução Agrícola, cerca de 10 mil anos atrás. Essa revolução, juntamente com o desenvolvimento pastoril, impulsionou a integração de novas tecnologias e modelou a vida social ao longo dos milênios. Em seguida, a Revolução Urbana trouxe mudanças tecnológicas e sociais adicionais, e muitas sociedades evoluíram para Estados Rurais Artesanais, dividindo-se em contingentes urbanos e rurais.

A Revolução do Regadio, ocorrida cerca de 7 mil anos atrás, deu origem às primeiras Civilizações Regionais, baseadas na irrigação, e foi seguida pela Revolução Metalúrgica, que deu lugar aos Impérios Mercantis Escravistas. Após a decadência dessas civilizações, a Revolução Pastoril no início da era cristã trouxe novas mudanças com chefias nômades motivadas por tecnologias e ideologias religiosas.

No século XV, a Revolução Mercantil, alavancada pelos avanços na navegação e armas de fogo, resultou na expansão global da Europa e no surgimento de Impérios Mercantis Salvacionistas. Esse período também viu a formação do Capitalismo Mercantil, que impulsionou um novo processo civilizatório a partir da Europa. A Revolução Industrial, três séculos depois, ativou a configuração das sociedades capitalistas avanzadas como uma nova formação sociocultural, o Imperialismo Industrial. Essas revoluções tecnológicas, culminando na Revolução Termonuclear, unificaram a humanidade sob um mesmo sistema produtivo e mercantil, configurando uma Civilização da Humanidade global. As oito revoluções tecnológicas identificadas (Agrícola, Urbana, do Regadio, Metalúrgica, Pastoril, Mercantil, Industrial e Termonuclear) moldaram a evolução sociocultural e continuam a influenciar a sociedade moderna.

O autor analisa a formação étnica das Américas, com especial atenção ao Brasil, revisando conceitos antropológicos e propondo um esquema evolutivo para essas sociedades. O foco é a formação de novas entidades étnicas resultantes da interação entre diferentes culturas e sociedades, impulsionada por grandes inovações tecnológicas. Esses processos civilizatórios, iniciados no século XVI com revoluções tecnológicas como a Revolução Mercantil e a Revolução Industrial, resultaram em configurações étnico-culturais variadas. Novas culturas e identidades nacionais emergiram de fusões entre elementos dominadores e dominados.

A classificação dos povos extraeuropeus em quatro categorias (Povos-Testemunho, Povos-Novos, Povos-Transplantados e Povos-Emergentes) ajuda a entender as uniformidades históricas e culturais resultantes da expansão europeia. Os Povos-Testemunho enfrentam desafios na integração cultural e modernização, com exemplos de sucesso e fracasso. Os Povos-Novos nas Américas demonstram a mestiçagem cultural, enquanto os Povos-Transplantados mantêm características europeias. Finalmente, os Povos-Emergentes trazem nações africanas e asiáticas em evolução. O impacto da colonização europeia moldou a flora, a fauna e a etnicidade globais, homogeneizando técnicas produtivas e sistemas sociais. Para superar os desafios de desenvolvimento e marginalização, essas sociedades precisam reestruturar profundamente suas bases socioeconômicas e políticas, até se libertarem das imposições coloniais e reafirmarem suas identidades culturais genuínas. Uma obra magistral.

Resenha: As Américas e a Civilização: Processo de formação e causas do desenvolvimento desigual dos povos americanos, de Darcy Ribeiro

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APRESENTAÇÃO

As Américas e a civilização constitui-se no segundo livro a compor a série “Estudos de Antropologia da Civilização” concebida por Darcy Ribeiro que é compostas por O processo civilizatório, As Américas e a Civilização, O dilema da América Latina, Os Brasileiros: 1 - Teoria do Brasil, e Os índios e a civilização.

As reflexões aqui presentes vieram à lume durante o período em que o intelectual esteve no exílio. Trata-se de uma análise profunda dos processos histórico-culturais vividos pelos povos gestados na América a partir de uma perspectiva inovadora , na qual buscou-se evitar abordagens tradicionais marcadas por visões eurocêntricas.

O desafio a que Darcy se colocou neste livro é dos mais espinhosos: tratar de forma conjunta das particularidades e percursos que marcaram as diferentes populações do vasto continente americano. Como extremo estudioso da História que foi, o antropólogo reúne num só livro os caminhos e descaminhos dos habitantes da América do Norte, Central e do Sul. E faz isso com a propriedade de quem não apenas estudou suas origens e experiências históricas, como também de quem percorreu boa parte das terras americanas.

RESENHA

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A obra 'as Américas e a civilização', de Darcy Ribeiro analisa dois esquemas conceituais que abordam o desenvolvimento desigual das sociedades americanas: o acadêmico (sociologia e antropologia) e o marxismo dogmático. O esquema acadêmico entende o atraso como um descompasso entre estruturas tradicionais e modernas, destacando estudos de dualidade estrutural e modernidade versus tradicionalismo. Ao discutir sociedades subdesenvolvidas como híbridas, os estudos falham ao mistificar fatos e ignorar tecnologias avançadas usadas na colonização. No plano socioeconômico, estrutural e familiar, são examinadas classes sociais, sistemas produtivos e modelos familiares tradicionais versus modernos. O marxismo dogmático vê o atraso como etapas de um processo evolutivo unilinear, utilizando teses clássicas de Marx para identificar resíduos feudais e capitalistas na América Latina. Ambos os esquemas são criticados por suas limitações explicativas e manutenção do status quo. Propõe-se uma terceira abordagem, focada nos fatores dinâmicos das mudanças sociais e tecnológica, associativa e ideológica, utilizando uma metodologia dialética para entender as disparidades de desenvolvimento e as interações entre sociedades desenvolvidas e subdesenvolvidas.

A história dos últimos séculos é marcada pela expansão da Europa Ocidental, que impôs sua civilização a outros povos através de violência, cobiça e opressão. Nesse processo, o mundo foi reorganizado de acordo com os interesses europeus. As duas principais ondas de expansão foram protagonizadas pelos ibéricos (portugueses e espanhóis) e pelos russos, cada um em suas áreas. Os europeus ocidentais, impulsionados por duas revoluções tecnológicas, a Mercantil e a Industrial, lideraram essas mudanças. A Revolução Mercantil, com inovações como a navegação oceânica e as armas de fogo, permitiu a expansão marítima, enquanto a Revolução Industrial trouxe novas fontes de energia e produção em massa. A expansão ibérica foi influenciada pela tecnologia islâmica e pela luta contra os muçulmanos, culminando na conquista e colonização das Américas. Eles impuseram seu domínio cultural e econômico, contribuindo para a Revolução Mercantil antes de serem ultrapassados pela Revolução Industrial. As nações ibéricas, Portugal e Espanha, não conseguiram se modernizar plenamente e tornaram-se dependentes das novas potências capitalistas-industriais. A Europa central e nórdica, menos avançada inicialmente, amadureceu mercantilmente e, posteriormente, liderou a Revolução Industrial. Isso proporcionou dominação global e expansão cultural, levando à criação de uma civilização policêntrica pela competição entre as novas potências emergentes. Em suma, a dominação europeia reconfigurou o mundo, sendo vital tanto na contribuição tecnológica quanto na imposição cultural e econômica. Esta dinâmica transformou a história global, sendo elemento crucial na evolução dos sistemas socioculturais até a era contemporânea.

No processo de expansão europeia, muitas culturas autônomas se viram agregadas a um único sistema econômico, resultando na perda de autenticidade e na emergência de formas espúrias de cultura. Essa uniformização, decorrente de processos de deculturação e de estereótipos dominadores, levou a uma miséria e desumanização comuns entre os povos extraeuropeus. Contudo, emergiu uma identidade humana elementar compartilhada por todos, baseada em aspirações comuns de fartura, lazer, liberdade e educação. As sociedades reconfiguradas buscaram recuperar sua autenticidade e independência, apesar das influências dominadoras que operavam a partir do antigo centro reitor europeu. Questionaram a capacidade do sistema global de atender às aspirações humanas de prosperidade, justiça e beleza, expondo a inautenticidade do projeto colonial.

Os povos americanos, profundamente afetados pelo domínio europeu, perderam sua autonomia e passaram por um processo de deculturação, tornando-se sociedades espúrias com culturas alienadas. Projetos coloniais visavam principalmente a exploração econômica, deixando a constituição de novas sociedades como um subproduto não desejado. Apesar disso, os povos colonizados lutaram pela reconstituição de suas identidades culturais, primeiro como etnias diferenciadas e, mais tarde, como nações independentes.

O autor ainda descreve a formação dos povos novos nas Américas, destacando sua configuração histórico-cultural única. Esses povos surgiram da miscigenação e dominação de populações indígenas, africanas e europeias, principalmente sob o regime colonial europeu. A escravidão e a plantation foram fundamentaos na organização produtiva e na conformação das sociedades das Américas. As fazendas de monoculturas agroindustriais e extrativismo mineral modelaram a estrutura social e econômica, integrando e deculturando diversas etnias sob extrema opressão. No sul dos Estados Unidos e nas Antilhas, plantação e escravidão criaram sociedades mais brutalmente capitalistas. Mesmo com variações regionais, a matriz escravista e a grande proporção de negros escravizados deixaram marcas profundas. A miscigenação entre europeus, indígenas e negros formou uma sociedade complexa e mestiça, impregnada de tensões raciais e sociais duradouras. Imigrantes europeus e asiáticos no século XIX desempenharam papéis significativos na modernização tecnológica e na institucionalização dos povos novos, aportando qualificações técnicas e culturais, empurrando as sociedades para uma modernidade mais integrada. A resistência política desses imigrantes, sobretudo aqueles das áreas urbanas, contribuiu para a formação de movimentos trabalhistas e sindicais, desafiando o status quo político e social. Os povos novos, portanto, resultam de complexas integrações e adaptações culturais, refletindo um mosaico de contribuições étnicas e dinâmicas socioeconômicas que moldaram seus perfis e desafios contemporâneos.

O autor ainda destaca que os povos transplantados das Américas são descendentes de migrantes europeus que buscaram novos começos no Novo Mundo, trazendo consigo famílias e expectativas de liberdade e prosperidade. Esses grupos se estabeleceram em territórios pouco habitados, frequentemente desalojando as populações indígenas. Na América do Norte, o colonizador europeu evitou a mistura com os nativos, enquanto nos territórios como a Argentina e o Uruguai, os europeus competiram com e subjugaram populações mestiças.

Os povos transplantados destacam-se pelo perfil europeu em aspectos como paisagem, estrutura racial predominantemente caucasoide, cultura e economia capitalista industrial. Diferentes dos demais blocos culturais das Américas, enfrentam problemas específicos devido a suas características e matrizes culturais distintas, como católica latina no sul e protestante anglo-saxônica no norte. Fatores gerais como o modo de colonização, processos de assimilação cultural e formas de integração econômica contribuem para distinguir esses povos dos demais da região. As sociedades transplantadas, principalmente no Norte, tendem a ser mais igualitárias, enquanto as nações formadas através da escravidão e subjugação de indígenas e negros desenvolveram-se de maneira mais hierárquica e autoritária.

O desenvolvimento desigual criou uma polarização entre os povos transplantados desenvolvidos do Norte e as sociedades menos desenvolvidas do Sul, resultando em tensões e conflitos de interesse. Minorias europeias em áreas interioranas, como no Brasil e na Costa Rica, atuaram como agentes dinâmicos no desenvolvimento regional. Assim, a análise histórica e os diferentes processos de formação étnico-cultural elucidam a complexidade dessas sociedades, ressaltando a necessidade de uma compreensão aprofundada para explicar suas formas e desempenhos distintos.

Para explorar o desenvolvimento dos povos latino-americanos, é preciso analisar primeiramente os modelos industriais e o histórico de atrasos econômicos. O texto apresenta dois paradigmas para entender as trajetórias de sociedades desenvolvidas e as barreiras enfrentadas pelas regiões menos desenvolvidas. Com a Revolução Industrial, nações pioneiras na industrialização como Inglaterra, França, Países Baixos e Estados Unidos se tornaram potências dominantes, promovendo constelações imperialistas. Este avanço industrial foi acompanhado por três tipos de reordenação nas relações globais: a obsolescência dos vínculos coloniais, novas áreas submetidas ao colonialismo ou neocolonialismo, e a hierarquização entre nações industriais e dependentes.

A ruptura desse sistema se deu, inicialmente, pela Alemanha e Japão que se industrializaram seguindo um modelo capitalista tardio. Nações como Itália e países como Turquia, Brasil e Argentina tentaram seguir esse caminho mais tarde. Além do desenvolvimento capitalista tardio, emergiram outros modelos. Nações marginalizadas como Canadá, Austrália e Nova Zelândia avançaram industrialmente devido a isolamento econômico durante crises e guerras. Este progresso foi impulsionado principalmente pela exploração interna de recursos e oportunidades comerciais.

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O autor segue também analisando o modelo socialista, iniciado pela União Soviética, que rompe com o capitalismo industrial e propõe uma formação sociocultural nova. A União Soviética conseguiu industrializar-se rapidamente, inspirando outras nações como China e países do Leste Europeu a seguir um caminho semelhante de desenvolvimento acelerado. Além desses modelos, o texto discute duas variantes de reordenação sócio-econômica: países industrializados que enfrentaram crises adotaram políticas intervencionistas, e países subdesenvolvidos que se industrializaram capitalizando tensões internacionais, como Turquia, Brasil e Argentina, mas com resultados limitados. Por último, o modelo socialista revolucionário atrai nações atrasadas pelas altas taxas de crescimento e a capacidade de elevar grandes massas populacionais, como visto na União Soviética. Esse modelo destaca-se pela capacidade de acelerar a evolução social, transformando economias agrícolas em potências industriais. Esses diversos caminhos de desenvolvimento mostram esforços variados de nações para romper com a dominação imperialista e superar os desafios internos ao progresso econômico.

A Revolução Industrial gerou uma divisão entre povos avançados e atrasados, onde os retardatários não vivem uma fase evolutiva anterior, mas são intencionalmente mantidos em uma posição subserviente e dependente pelos países desenvolvidos. Esses povos subdesenvolvidos experimentam apenas os reflexos da modernização, sem integrar nossa tecnologia. A industrialização espontânea é dificultada pela auto-perpetuação do subdesenvolvimento, pela dominação das elites internas associadas a interesses estrangeiros, pela transferência de excedentes econômicos e pela intervenção política estrangeira que reforça a ordem estabelecida.

Essa situação resulta em uma modernização superficial, beneficiando uma minoria elitista e empobrecendo as massas. As tentativas de revolução e desenvolvimento autônomo, como no México e Bolívia, enfrentaram resistências e limitações. Casos como China e Japão mostraram que o desenvolvimento é possível com maior autonomia, enquanto outras nações permanecem estagnadas. A industrialização das nações subdesenvolvidas manteve-se distorcida e dependente de capitais estrangeiros, não conseguindo criar uma economia autônoma. O contraste é evidente quando comparado com os "povos transplantados" (EUA, Canadá, Austrália), que se desenvolveram sem as barreiras oligárquicas e com uma base mais democrática. A luta pelo desenvolvimento em países subdesenvolvidos mostra que a emancipação requer confrontar e superar tanto interesses internos quanto externos que perpetuam a ordem vigente, impedindo assim um desenvolvimento genuíno e autônomo.

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A obra "As Américas e a Civilização: Processo de Formação e Causas do Desenvolvimento Desigual dos Povos Americanos", de Darcy Ribeiro, é magistral em sua complexidade e profundidade, abordando questões históricas, sociais e econômicas com uma clareza que ilumina as razões por trás do desenvolvimento desigual das sociedades americanas. A obra se destaca por sua capacidade de criticar tanto os esquemas conceituais acadêmicos quanto o marxismo dogmático, oferecendo uma abordagem mais holística e dinâmica.

Primeiramente, Ribeiro é hábil em contextualizar a história das Américas dentro de um panorama global, analisando como a expansão europeia, impulsionada pelas revoluções Mercantil e Industrial, redesenhou o mundo em conformidade com os interesses europeus. Esse contexto é fundamental para compreender a forma como os povos americanos foram subjugados e reconfigurados, perdendo autonomia e autenticidade cultural. Sua análise do impacto da tecnologia islâmica nas navegações ibéricas e nas técnicas de colonização demonstra uma profundidade rara, ao ligar diferentes pontos da história global em sua análise.

Além disso, a interação entre diferentes etnias - indígenas, africanas e europeias - é descrita de maneira detalhada e sensível, revelando como a miscigenação e a opressão moldaram a estrutura social e cultural das Américas. A maneira como Ribeiro aborda a formação das “sociedades espúrias” agrega uma camada significativa à compreensão dos efeitos de uma colonização violenta, enquanto destaca o esforço contínuo dos povos colonizados em reconstituir suas identidades culturais e formas de resistência.

Ribeiro também descreve brilhantemente os diferentes modelos de desenvolvimento seguidos por várias nações americanas, desde os pioneiros da industrialização até os esforços tardios e os modelos socialistas revolucionários. Esta parte do enredo é crucial para entender as disparidades atuais, e a comparação entre os "povos transplantados" e os povos subdesenvolvidos proporciona insights valiosos sobre as diferenças estruturais que persistem até hoje.

Finalmente, a metodologia dialética proposta no texto para explorar as desigualdades oferece uma nova perspectiva, crítica e evolutiva, que extrapola as limitações dos modelos tradicionais. A ideia de que o subdesenvolvimento é intencionalmente perpetuado e que a modernização real é apenas superficial para as massas é uma crítica contundente ao status quo, desafiando o leitor a reavaliar sua compreensão da história e dos atuais desafios socioeconômicos enfrentados pelas nações americanas. Em suma, "As Américas e a Civilização" de Darcy Ribeiro é uma obra-prima que transcende a simples narrativa histórica, fornecendo uma análise detalhada e crítica dos processos que moldaram as Américas, enquanto encoraja uma reflexão profunda sobre as possibilidades de futuro para as sociedades ainda lutando para superar seu passado colonial.

Resenha: Vidas secas, de Graciliano Ramos

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APRESENTAÇÃO

Certa vez Graciliano Ramos disse que uma de suas missões pessoais era registrar, através da ficção, a intensidade trágica do cotidiano de retirantes do início do século XX que buscavam esperança longe da seca nordestina. Tarefa magistralmente executada com o livro Vidas secas.

Construída pela escrita precisa e penetrante do autor, a narrativa é permeada pelo desamparo e pela desesperança. Um enredo impactante, uma história de coragem, de encontros, de saberes e de dissabores de seres humanos e animais que persistem à procura de seu lugar no mundo.

Peça fundamental da literatura nacional, Vidas secas é um retrato em várias dimensões do Brasil a partir do relato da história de uma família sertaneja. O casal Fabiano e Sinha Vitória, seus dois filhos, "o menino mais novo" e "o menino mais velho", e a cachorra Baleia tentam fugir de uma situação de extrema pobreza e carência. Cada personagem é a encarnação de tantas e tantas pessoas que sofrem com as desigualdades e dramas de nosso país.

Para fazer jus a sua relevância, o volume conta composfácio de Alfredo Bosi, um dos maiores críticos literários brasileiros.

RESENHA

Nova edição do livro pela Global Editora

O livro vidas secas, do autor Graciliano Ramos, narra a história de uma família de retirantes que caminha exausta e faminta em busca de sombra e água no sertão. O pai, Fabiano, a mãe, Sinha Vitória e os dois filhos, que são apresentados unicamente como 'filho mais velho' e 'filho mais novo', e a cachorra, comicamente chamada baleia, devido à desnutrição . A obra se inicia com o pai, Fabiano, irritando-se com a lentidão dos passos do filho mais novo, chegando a cogitar abandoná-lo durante o percurso em busca de sombra, água e alimento. A família, ao chegar a uma fazenda abandonada, encontram um preá morto e acendem uma fogueira para cozinhar a carne. Fabiano, otimista, imagina um futuro próspero para sua família naquele local. A esposa, Sinha Vitória, e os filhos encontram alívio temporário da sede e fome. A cachorra Baleia aguarda pacientemente sua vez de comer os ossos do animal. A narrativa termina com a esperança de uma nova vida para a família naquela terra.

Graciliano Ramos retrata, em "Vidas Secas", uma trama repleta de personagens em negação, enfrentando obstáculos físicos e sociais, sem apelar para discursos políticos panfletários. No ambiente de imposição arbitrária e relações de trabalho baseadas na obediência e dominação, o romance flerta com o sistema patriarcal e a reprodução do latifúndio, onde os camponeses são alheios aos seus direitos. Sem participação política, vivem em condições semelhantes à escravidão ou a práticas feudais.

O livro permite um estudo do contexto político e social do Brasil nos anos 1930, destacando-se pela estética literária. A montagem da obra permite a apreciação das histórias individualmente. "Mudança" apresenta a família fugindo da seca, ambientando-nos no sertão. "Fabiano" analisa o pai que luta para sustentar a família, enquanto "Cadeia" aborda o poder estatal e opressor, ressaltando as dificuldades enfrentadas pelo grupo de pessoas marginalizadas.

O quarto capítulo do romance "Vidas Secas", intitulado "Sinhá Vitória", é tão impactante quanto o segundo, pois destaca a importância da matriarca da família na narrativa. Ela é retratada como uma figura sábia que não aceita a pobreza e a miséria como algo natural, mas sim como um obstáculo a ser superado. Nos capítulos seguintes, conhecemos mais sobre os filhos da família: o mais novo deseja seguir os passos do pai e se tornar um homem do sertão, enquanto o mais velho se interessa pela linguagem e seus significados.

Em "Inverno", a natureza castiga os personagens com chuvas intensas que ameaçam inundar a casa da família. Apesar de ser um momento de aparente calmaria, todos sabem que uma seca devastadora está por vir. Na festa de Natal da cidade, em "Festa", a família se sente inferiorizada diante das pessoas mais abastadas e aparentemente felizes. Esse encontro desperta sentimentos de humilhação e melancolia, que culminam em um dos momentos mais intensos do livro: a morte da cadela Baleia, um dos personagens mais marcantes da literatura brasileira.

No décimo capítulo de "Vidas Secas", intitulado "Contas", Sinhá Vitória mostra sua astúcia ao perceber que o dono da fazenda está enganando Fabiano nos cálculos, aproveitando-se de sua falta de instrução. Diante disso, Fabiano se sente inferiorizado diante do poder opressor e conclui que é um renegado. No capítulo seguinte, "O Soldado Amarelo", Graciliano Ramos aborda o autoritarismo militar, mas mostra o soldado em desvantagem no espaço de Fabiano, na caatinga.

No penúltimo capítulo, "O Mundo Cheio de Penas", a família sente a seca se aproximando cada vez mais, refletindo sobre sua condição e se preparando para a "Fuga", desfecho cíclico da narrativa que revela a luta pela sobrevivência da família ao retornar ao sertão.

"Vidas Secas" é um livro essencial para os brasileiros, com seu estilo conciso e incisivo. Graciliano Ramos constrói os capítulos como contos que se unem para formar a estrutura do romance, destacando-se na construção dos personagens como Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos, Baleia, o papagaio, o fazendeiro e o soldado amarelo. Esses personagens juntos representam as ideias do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre e alcançam um apuro político e estético que o coloca como uma das obras-primas da literatura brasileira do século XX.

Vidas Secas de Graciliano Ramos é uma obra que expõe de forma crua e realista a exploração e miséria enfrentadas pelos trabalhadores rurais no sertão brasileiro. O autor mostra de forma contundente como Fabiano é enganado e oprimido pelo seu patrão, sendo obrigado a aceitar condições desumanas e injustas.

A situação de Fabiano como homem bruto o torna vulnerável à exploração e ao abuso de poder por parte daqueles que detêm o controle sobre ele. A obra denuncia a falta de assistência e compaixão por parte das autoridades e da sociedade em geral, que ignoram a miséria e o sofrimento daqueles que mais precisam de ajuda.

A morte de Baleia, que simboliza a única fonte de conforto e lealdade para a família, é um momento tocante que revela a profunda humanidade e compaixão que falta nos personagens humanos da história. A linguagem regional e a escrita próxima da fala tornam a narrativa ainda mais envolvente e realista, fazendo com que o leitor se sinta parte da dura realidade retratada.

Em suma, Vidas Secas é uma obra poderosa e impactante que questiona as injustiças sociais e a opressão enfrentada pelos mais vulneráveis na sociedade brasileira. Uma leitura obrigatória para quem deseja entender as profundas desigualdades e desafios enfrentados pelos trabalhadores rurais no Brasil.

Resenha: Gentidades, de Darcy Ribeiro

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APRESENTAÇÃO

No livro "Gentidades" estão reunidos três textos do antropólogo Darcy Ribeiro que denotam sua fluência para desvendar os mistérios do homem. O educador analisa "Casa-grande & senzala", obra-mestra de Gilberto Freyre, reflete a respeito do índio Uirá que, um desterrado em sua própria terra, e escreve sobre Salvador Allende, presidente do Chile cuja história política Darcy acompanhou de perto. Esta obra atesta o dom de Darcy para seduzir nossas mentes com sua visão clara e ao mesmo tempo profunda sobre os dilemas humanos.


RESENHA

O livro gentidades, do autor, historiador e antropólogo Darcy Ribeiro, publicado pela editora global em língua portuguesa é uma miscelânea de três grandes ensaios do autor acerca em uma análise sucinta a obra 'casa grande e senzala', de Gilberto Freyre, o índio Uirá que vai ao 'encontro' de Maíra, e finalmente, sobre Salvador Allende, presidente do chile.

No primeiro capítulo, Gilberto Freyre - uma introdução a casa grande & senzada, o autor faz uma análise detalhada da obra e do método de Gilberto Freyre, mas também apresenta críticas e questionamentos. Destaca a importância de "Casa-grande & senzala" como a obra mais importante da cultura brasileira, elogiando a capacidade de Gilberto Freyre de recriar o contexto social concreto e único da sociedade colonial brasileira. No entanto, aponta a falta de uma teoria subjacente consistente na obra, questionando a ambiguidade política e o caráter reacionário do autor. Além disso, destaca a falta de um método claro e sistematizado, ressaltando a pluralidade de métodos utilizados de forma não convencional e até mesmo contraditória por Gilberto Freyre. No entanto, apesar das críticas, o autor reconhece o valor e a importância da obra do autor para a literatura e a antropologia brasileiras.

O capítulo, Uirá vai ao encontro de Maíra, narra as experiências de um índio Urubu que sai à procura de Deus, culminando em seu suicídio em novembro de 1939. O autor explora as raízes sociais e mítico-religiosas por trás da jornada de Uirá, relacionando-a a movimentos messiânicos e de revivalismo vividos por índios desesperados com a expansão da sociedade brasileira.

A análise do autor sobre a documentação coletada ao longo do tempo destaca a importância de compreender as reações individuais e coletivas de pessoas que se veem desesperadas e desiludidas com a vida como ela se apresenta. O autor também explora a cosmogonia Tupi e a figura de Maíra, o criador, como parte integrante da visão de mundo dos índios Urubu, demonstrando como essas crenças influenciaram o comportamento de Uirá em sua busca. A narrativa segue desde a vida tribal dos índios Urubu até a chegada de Uirá às cidades, onde é mal compreendido e acaba enfrentando violência e incompreensão, culminando em sua tentativa de encontrar Maíra no rio Pindaré e finalmente em seu ato final de suicídio.

O autor aborda questões complexas sobre identidade, desespero, crenças e a interação entre diferentes culturas, oferecendo uma reflexão profunda sobre a natureza humana e as diferentes formas de buscar significado em meio ao sofrimento e à desilusão. É uma leitura densa e provocativa que convida o leitor a refletir sobre as consequências da expansão civilizadora e seus impactos nas sociedades tradicionais.

No terceiro capítulo, Salvador Allende e a esquerda desvairada, o autor analisa a trajetória de Salvador Allende, presidente do Chile, e a luta da esquerda desvairada em seu governo. Allende é descrito como um estadista corajoso e lúcido, que buscava construir o socialismo em democracia, pluralismo e liberdade. O autor destaca a importância de Allende e sua luta, ressaltando que ele foi uma figura solitária enfrentando desafios e pressões tanto internas quanto externas. O autor revela as dificuldades enfrentadas por Allende, como a oposição da direita e a falta de apoio internacional, além das contradições e erros cometidos pela esquerda desvairada, que contribuíram para a queda do governo da Unidade Popular. A falta de unidade e a radicalização de alguns setores da esquerda prejudicaram o governo de Allende, facilitando a conspiração da direita e a intervenção estrangeira no Chile. O autor destaca a necessidade de autocrítica por parte das esquerdas, reconhecendo os erros cometidos durante o governo de Allende. Ele ressalta a importância de aprender com a experiência chilena e buscar um caminho mais pragmático e eficaz para a construção do socialismo. O autor finaliza refletindo sobre o legado de Allende e o desafio de seguir seu exemplo, lutando por um socialismo democrático e participativo mesmo diante de adversidades. É um texto potente e reflexivo, que convida à análise crítica e ao aprendizado com a história.

Em "Gentidades", Darcy Ribeiro demonstra mais uma vez sua habilidade ímpar em desvendar os mistérios da humanidade através de textos profundos e instigantes. Sua análise crítica e reflexiva sobre obras e figuras emblemáticas como "Casa-grande & senzala", o índio Uirá e Salvador Allende, revela a profundidade de seu pensamento e sua capacidade de seduzir o leitor com sua clareza e perspicácia. A maneira como o autor aborda questões complexas como identidade, desespero e luta política, evidencia sua sensibilidade para as nuances da condição humana. "Gentidades" é uma obra que encanta e provoca reflexões profundas, convidando o leitor a repensar conceitos e a compreender a complexidade do mundo que nos cerca. Uma leitura imprescindível para quem busca entender melhor a história e a sociedade em que vivemos.
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