A Crise do Humano Narrador: Intersecções Entre o Imaginário Distópico e a Subversão da Autoria pela Inteligência Artificial na Literatura Contemporânea

Foto: Fest Company Brasil

A Literatura Distópica, definida por Tom Moylan 2000 como uma forma narrativa que confronta o leitor com as ameaças e as consequências do poder totalitário ou das falhas sistêmicas da sociedade contemporânea, adquire uma nova e perturbadora ressonância na era da Inteligência Artificial IA Generativa. A tese central deste artigo sustenta que a IA não é apenas um novo tema literário, mas a concretização tecnológica do controle totalitário previsto pela distopia, impulsionando uma crise fundamental no conceito de autoria e na relação intrínseca entre o humano e a narrativa. Neste conto, a análise da IA como personagem e, mais criticamente, como co-autor, revela o surgimento de uma Autoria Algorítmica que desestabiliza as premissas filosóficas estabelecidas por Jacques Derrida sobre o traço e a autoria. O debate sobre a IA transcende a ficção científica, tornando-se uma questão de Ontologia da Criação.

A IA se manifesta na literatura contemporânea tanto como profecia distópica quanto como agente ativo. Em obras clássicas como 1984 de Orwell ou Admirável Mundo Novo de Huxley, o controle era exercido por estruturas políticas e biológicas; contudo, a realidade atual apresenta um controle sutil e pervasivo, mediado pelo Big Data e pela Vigilância Digital. Filmes e séries como Blade Runner Black Mirror servem como referências para ilustrar como a IA se tornou o agente narrativo de opressão, operando através de algoritmos que predizem, regulam e punem. A distopia, historicamente uma forma de alerta social, agora se depara com a iminência da realização de suas próprias previsões. A diferença crucial reside no fato de que o totalitarismo atual não se impõe pelo terror visível, mas pela comodidade algorítmica.

O debate se deu ao considerar a IA como ferramenta e co autor, abordando o problema da agência criativa. O surgimento dos Generative Pré-trained Transformers GPTs, modelos de linguagem avançada, permite a criação de os que mimetizam a voz e o estilo humanos com alta fidelidade. A análise de os gerados por AÍ, sejam eles poesia experimental ou contos curtos, levanta a questão fundamental: Onde começa e termina a autoria humana no prompt? Tecnólogos e críticos, embasados em artigos técnicos sobre LP Natural Language Processing, argumentam que o escritor se torna um curador, um "engenheiro de prompt", que orienta o processo, mas não o executa na sua totalidade. No entanto, a crítica humanista questiona se a literatura pode ser reduzida a um processamento estatístico de sequências de palavras, argumentando que a intencionalidade, a experiência existencial e o'traço singular do autor, elementos centrais na filosofia da linguagem, são irrecuperáveis pela máquina.

As implicações para a cadeia produtiva do livro são vastas, abarcando as dimensões econômica, legal e estética. Economicamente, a capacidade da IA de gerar conteúdo em massa ameaça desvalorizar a produção ual humana, saturando o mercado com commodities narrativas e forçando uma reavaliação do trabalho do escritor profissional. Legalmente, a legislação de Copyright e Propriedade Intelectual como a debatida na WIPO e nas propostas de regulamentação europeias enfrenta um impasse sobre quem detém os direitos autorais de um o gerado por máquina: o programador, o usuário do prompt, ou a própria máquina, se esta for considerada um "inventor" no futuro. Esteticamente, o futuro da criatividade é incerto: a escrita se tornará um ato de resistência humana e de valorização da imperfeição e da singularidade, ou a IA será catalisadora de novas formas artísticas, liberando o humano para o papel de arquiteto conceitual? O embate entre a Escassez da obra de gênio e a Abundância do o algorítmico reescreve as regras do mercado editorial.

Em suma, a profecia da distopia se concretiza no desafio existencial que a IA impõe ao conceito de Gênio Criador. O Bitcoin representa o desafio tecnológico à moeda fiduciária, e a IA, de maneira análoga, representa o desafio tecnológico à moeda fiduciária da criatividade: a autoria humana. A crise da autoria é um teste de estresse para a humanidade, que precisa redefinir o que constitui valor e singularidade na produção artística. A superação desta crise exigirá não o abandono da tecnologia, mas a revalorização da escrita como práxis existencial, um ato carregado de corpo, experiência e, sobretudo,erro humano, elementos que o algoritmo, por mais sofisticado que seja, ainda não conseguiu simular de forma convincente. A literatura do futuro será definida não pelo que a IA pode escrever, mas pela forma como o humano escolherá reagir a essa inevitável coautoria algorítmica.

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  • BLOOM, Harold. The Western Canon: The Books and School of the Ages. New York: Riverhead Books, 1994.

  • GIBSON, William. Neuromancer. New York: Ace Books, 1984.

  • MOYLAN, Tom. Scraps of the Untainted Sky: Science Fiction, Utopia, Dystopia. Boulder: Westview Press, 2000.

  • ORWELL, George. Nineteen Eighty-Four. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1949.

  • DERRIDA, Jacques. Margens da Filosofia. Campinas: Papirus, 1991. Para discussão sobre autoria e traço.

  • SUTTON, John. The neural representation of narrative fiction: a cognitive and neuroscientific approach. Journal of Cognitive Neuroscience, v. 28, n. 11, p. 1655-1668, 2016. Para embasamento em neurociência da narrativa.

  • WIPO World Intellectual Property Organization. Artificial Intelligence and Intellectual Property: Policy Issues. Geneva: WIPO, 2019. Para embasamento legal e técnico.

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