Resenha: Goiânia: Fundações da Modernidade Literária no Cerrado

A coletânea Território, cidades e cultura no cerrado, organizada por Ademir Luiz da Silva, Eliézer Cardoso de Oliveira e Marcelo de Mello, e publicada em 2012 , se apresenta como um encontro interdisciplinar entre pesquisadores que estudam o bioma Cerrado, rompendo com as visões simplistas para percebê-lo como um "domínio" onde ambientes físicos, biológicos e socioculturais são integrados e fundidos. A obra reconhece que o Cerrado tem sido, desde a pré-história, um "lugar de encontros entre povos de culturas diferentes" , e que, nas últimas décadas, tem passado por um intenso processo de modernização e desenvolvimento econômico, o que resultou em crescimento populacional e urbanização acelerada, mas também em consequências danosas como a degradação ambiental e a ameaça a saberes tradicionais. O livro é um esforço conjunto de docentes da Universidade Estadual de Goiás (UEG) para criar uma análise crítica dos domínios do Cerrado, em vista da aprovação de um mestrado interdisciplinar sobre o tema.

A primeira parte, "Transformações Territoriais e a Cultura Urbana no Cerrado", aborda a dinâmica do desenvolvimento e a modernização do território goiano. Janes Socorro da Luz, em "Os Caminhos do Desenvolvimento e Modernização do Território: A Dinâmica Territorial e a Urbanização em Goiás", analisa a apropriação do território goiano, que, inicialmente marcado pela rarefação do povoamento e pela noção de "sertão" , rompeu o isolamento através do avanço técnico-científico e informacional. A inserção do território no sistema produtivo nacional se deu em duas fases: a mineradora (séculos XVIII e XIX) e a agropastoril (a partir do final do século XIX) , sendo esta última impulsionada pela pecuária, que se autotransportava. A chegada da ferrovia no início do século XX dinamizou o Centro Goiano , que passou a ser o principal centro econômico, social e político. A autora destaca o papel fundamental do Estado em três momentos no século XX: a Marcha para o Oeste de Vargas , o Plano de Metas de Kubitschek , e a fase militar , que aceleraram a industrialização e urbanização. O processo de urbanização em Goiás se destaca pela concentração demográfica no eixo dinâmico Goiânia-Anápolis-Brasília , com os municípios médios (100.000 a 500.000 habitantes) sendo os que mais cresceram entre 2000 e 2010 (65,00%). A cidade de Anápolis e Rio Verde são destacadas como centros regionais dinâmicos e multifuncionais, sendo a primeira um centro de indústria de transformação e logística, e a segunda, de agropecuária moderna e agronegócio. Dulce Portilho Maciel, em "Estado e território na hinterlândia brasileira: as ações da Fundação Brasil Central (FBC) - 1943-1967", examina a ação do Estado na hinterlândia brasileira sob o signo do sistema capitalista , que buscou a inserção econômica e cultural do Brasil Central. A criação da Fundação Brasil Central (FBC) em 1943, sob o contexto do Estado Novo e da Marcha para o Oeste , foi uma iniciativa improvisada para implantar uma rota de comunicações entre o Rio de Janeiro e Manaus. A FBC, com dupla natureza jurídica , explorou empreendimentos como a Entrepostos Comerciais Brasil Central Ltda. e a Usina Central Sul-Goiana S/A, a primeira do gênero em Goiás , e administrou a Estrada de Ferro Tocantins (EFT) , que foi um eixo vital para o povoamento e desenvolvimento. A instituição, contudo, foi marcada pela negligência e crise financeira , e sua sobrevivência dependeu de dotações orçamentárias da União. O artigo de Marcelo de Mello, "O Homem e a Razão Instrumental no Processo de Apropriação da Natureza do Cerrado", questiona o papel da ciência moderna no processo de apropriação da natureza do Cerrado, indagando a quem o conhecimento científico serve. O autor defende que a racionalidade balizadora da produção agrícola no Cerrado é um instrumento a serviço da "reprodução do capital" , ignorando as realidades sociais e ambientais. Ele critica o paradigma que transformou o Cerrado, antes tido como improdutivo, em palco de recordes de produção, mas que gerou problemas ambientais. Mello argumenta que a busca por paradigmas alternativos deve romper com o estado de "alienação social". Hamilton Afonso Oliveira, em "A ocupação, povoamento e o início do desenvolvimento dos meios de transportes no Sul de Goiás, 1850-1930", detalha o processo de ocupação do sul de Goiás no século XIX, impulsionado pela crise da mineração e pelo crescimento da agropecuária. A região, alvo de ondas migratórias de Minas Gerais e São Paulo , viu seu crescimento demográfico associado à chegada da estrada de ferro ao Triângulo Mineiro e Goiás (a partir de 1912). A ferrovia, e a posterior introdução do automóvel a partir de 1916 , dinamizaram a economia e o transporte, possibilitando a "liberação de capitais antes imobilizados no comércio de tropas". Robson Mendonça Pereira, em "Planos de Intervenção Urbanística: Desafios e Limites nos 'Melhoramentos de São Paulo'", traça um paralelo com as intervenções urbanísticas de São Paulo (1880-1920) inspiradas em Haussmann, que buscavam um "delineamento europeizado à capital". O autor revela que a modernização paulistana foi marcada por um "caráter autoritário da ação dos agentes" e uma "obsessão incontida de requalificação do centro" , que esgotou o "modelo adotado na construção da capital do café" e resultou em um "cenário urbano anárquico e altamente excludente". O artigo de Ademir Luiz da Silva, "Modernidade Tardia: Arte e Urbanização Goiana no Documentário Mudernage", analisa o filme que investiga a arte moderna em Goiânia, usando a imagem das vacas que antecedem os respingos de tinta como um clichê da "terra do boi" que produz arte. A cidade, planejada pelo urbanista Atílio Correia Lima sob a influência do Urbanismo Funcionalista e da arquitetura Art Déco , é apresentada como uma representante da "modernidade tardia". A arte moderna goiana, que surge com a fundação de Goiânia, é marcada pela chegada de artistas europeus e a criação da Escola Goiana de Belas Artes em 1952. O filme, no entanto, mostra que a herança modernista é recusada pelas novas gerações de artistas, que a veem como "conservadora" e "preocupada com questões que se colocaram no começo do século (XX) na Europa". Milena d'Ayala Valva e Gustavo Neiva Coelho, em "Cidades Novas a Serviço do Poder: Um Estudo Comparativo entre Sabaudia (Itália) e Goiânia (Brasil)", comparam as duas cidades fundadas no mesmo ano (1933) como instrumentos político-ideológicos de governos autoritários (Mussolini e Vargas). Em Goiânia, a arquitetura Art Déco e a Praça Cívica simbolizam a modernização e a "imagem do progresso". Em Sabaudia, o plano, que rejeitou o termo "cidade" , buscava a "desurbanização" e o controle da superpopulação das cidades , com a arquitetura racionalista da Praça da Revolução e sua torre de 43 metros servindo à ideologia do fascismo.

A segunda parte, "Os Múltiplos Saberes sobre o Cerrado", aborda a dimensão cultural e ambiental. Poliene S. dos Santos Bicalho, em "Cerrado, Indígenas e Não Indígenas: Encontros e Desencontros", discute as apropriações do Cerrado e a luta dos povos indígenas, que ali habitam há cerca de onze mil anos. A autora destaca a visão dos Xavantes, para quem o Cerrado, ou , é o próprio mundo , e sua preservação é essencial para a sobrevivência cultural. Em contraste, a apropriação pelos não indígenas, como a expansão da cana-de-açúcar e o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), é marcada por "desmatamento" e "desrespeito ante as populações indígenas". O movimento Acampamento Terra Livre (ATL), iniciado em 2004 , surge como instrumento de protesto contra os impactos de grandes projetos e a demora na demarcação de terras, defendendo o etnodesenvolvimento como uma alternativa sustentável. Maria Idelma Vieira D'Abadia, em "Janelas Abertas do Sertão: Espaço-Tempo das Festividades Religiosas em Goiás", analisa as festas religiosas de padroeiros (as) que se ligam às representações do passado rural de Goiás. As festas, como as de Nossa Senhora da Abadia em Muquém e Posse D’Abadia, tornam-se elementos dinamizadores do local e reforçam a identidade religiosa e territorial. Eliézer Cardoso de Oliveira, em "Quem te Olhou, Mas Não Te Viu: Representações do Maravilhoso sobre o Cerrado Goiano no Século XVIII", examina as narrativas dos séculos XVIII que descrevem o Cerrado a partir da categoria do "maravilhoso", que expressava o "deslumbramento" e a "incapacidade de explicar" o ambiente racionalmente. Os bandeirantes procuravam nas serras, como na Serra dos Martírios, signos místicos que revelariam "incontáveis tesouros naturais". O autor conclui que o "brilho do ouro ofuscou o seu olhar" , prevalecendo uma visão instrumentalizada da natureza como obstáculo ou apoio. Maria de Fátima Oliveira, em "Quando o Sertão Chegou ao Mar: O Território Goiano na Primeira Metade do Século XX Sob a Ótica da Revista A Informação Goyana", analisa o periódico (1917-1935) fundado no Rio de Janeiro com o objetivo de divulgar as "incomparáveis riquezas nativas do interland brasileiro". A revista buscava corrigir a imagem de Goiás como um estado "povoado, quase integralmente rural e com uma economia de subsistência", e incentivar investimentos. Os artigos exaltavam as riquezas naturais e a necessidade de melhoria nos meios de transportes, como a exploração dos rios Araguaia e Tocantins, que ligaria o interior ao litoral. Haroldo Reimer, em "Criação, Natureza e Meio Ambiente", discute a evolução conceitual dos termos, partindo da "criação" influenciada pela Bíblia, que vê o mundo como uma "dádiva" , para a "natureza" do paradigma cartesiano-newtoniano, que possibilitou o avanço da ciência experimental e a visão antropocêntrica. A superação do paradigma da "máquina do mundo" leva à concepção de "meio ambiente" como uma "teia da vida" (Gaia) , na qual o humano deve ser pensado em termos de "convivência e de interdependência". Sandro de Oliveira Safadi e Giuliana Vila Verde, em "O Corpo Tangível como Instância Inacabada da Existência", discorrem sobre a tangibilidade do corpo humano como modo primeiro de existência e o tato como o sentido primordial. O corpo, coberto pela pele, é o "órgão de reconhecimento do mundo", mas a existência humana não se restringe à tangibilidade. A profundidade da paisagem e da arte é "da existência" , e a tangibilidade é apenas o primeiro passo rumo ao humano pleno.

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