Resenha: Goiânia: Fundações da Modernidade Literária no Cerrado, organizada por Ademir Luiz da Silva e Eliézer Cardoso de Oliveira


A coletânea Goiânia: Fundações da Modernidade Literária no Cerrado, organizada por Ademir Luiz da Silva e Eliézer Cardoso de Oliveira, e publicada em 2021 , estabelece-se como uma investigação crítica e técnica sobre o encontro entre a modernidade urbana e o campo literário em Goiás, especificamente a partir da fundação e desenvolvimento de Goiânia no século XX. O livro se propõe a analisar o processo de autonomização do campo literário goiano, evidenciado pela sofisticação das obras e da crítica, o surgimento de instituições e eventos culturais, e a proliferação de publicações periódicas especializadas. A síntese da obra reside na premissa de que a literatura produzida nesse contexto atua como "documentos complexos de uma sociedade em meio a uma encruzilhada cultural, pressionada a escolher 'entre o arcaico e o moderno'". Essa perspectiva transforma a "realidade da ficção" em um objeto sério de análise, permitindo o estudo das "contradições da modernidade" que se manifestam no sertão. Os organizadores destacam que a modernidade, ao chegar ao sertão, "é obrigada a reconhecer seus próprios limites", capitulando diante da "força inercial da tradição".

O histórico da modernidade em Goiânia, segundo os organizadores, inicia-se com a idealização da cidade como difusora da modernidade e cultura. Um ato simbólico, o batismo da cidade com o nome de um poema épico — Goyania, de Manuel Lopes de Carvalho Ramos — revela-se uma "justiça poética" , mesmo tendo a sugestão recebido apenas dois votos em um concurso popular. A utopia moderna, materializada no traçado urbanístico e na arquitetura Art déco, não se refletiu na maioria dos habitantes, vindos do interior e carregando uma "provincianidade fortemente enraizada" no cotidiano. A virada para uma sociabilidade moderna ocorre a partir de meados da década de 1950, impulsionada pelo crescimento demográfico vertiginoso (de 40.333 habitantes em 1950 para 133.462 em 1960) e pela construção de Brasília. Essa mudança rompeu as barreiras tradicionais, favorecendo a impessoalidade e o surgimento de equipamentos modernos como a Universidade Federal de Goiás, o Parque Mutirama, o Estádio Serra Dourada, e o Autódromo Internacional. Os intelectuais, aproveitando o ambiente menos provinciano, promovem o I Congresso Nacional dos Intelectuais em 1954, evento que reuniu nomes como Pablo Neruda e Jorge Amado, divulgando uma "cultura cosmopolita na cidade". O Bazar Oió e o jornal Oió, fundados em 1957, se tornam referências culturais e o terreno é preparado para o Grupo de Escritores Novos (GEN).

A primeira parte da coletânea concentra-se nos eventos e instituições literárias. Heloisa Selma Fernandes Capel, em "UBE: Sob o Signo da Resistência Cultural", narra a história da União Brasileira de Escritores (UBE) – seção Goiás, inicialmente ABDE, fundada em 1945. A criação da entidade foi catalisada pelo I Congresso Brasileiro de Escritores em São Paulo (janeiro de 1945) e pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos (1943). A ABDE, articulada por intelectuais como Bernardo Élis e Cristiano Cordeiro, firmou-se como propulsora da cultura e da luta pela liberdade de expressão contra a censura da Era Vargas. O artigo destaca o papel de Bernardo Élis, que via o futuro no "socialismo democrático, no amor entre os homens, na supressão da exploração do homem pelo homem". A entidade, embora dependente de subvenção política, como a Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, manteve uma tônica de "livre expressão e debate de idéias". A publicação de Nos Rosais do Silêncio (1947), de Americano do Brasil, e Ermos e Gerais (1944), de Bernardo Élis, marcou a atuação da ABDE, com o parecer de Marilda Palínea (Maria Paula Fleury de Godoy) valorizando Nos Rosais do Silêncio por seu "espírito de revolta". José Godoy Garcia, em seu parecer sobre Dentro da Noite, de José Milton Vianna, em 1953, defendia que a fonte da "justa poesia" e da "criação literária viva" residia nos "anseios dos humildes, dos oprimidos", criticando o "romantismo da velhíssima escola". Fernando Martins dos Santos, em "I Congresso Nacional dos Intelectuais: A intelectualidade goiana reage ao isolamento cultural", detalha o evento de 1954 que visava reagir ao isolamento cultural e restabelecer a união dos intelectuais brasileiros após a cisão na ABDE de São Paulo. O evento, que contou com patrocínio de Pedro Ludovico Teixeira e a participação de célebres estrangeiros como Pablo Neruda, foi "resultado da reação de intelectuais goianos ao isolamento cultural da jovem metrópole do oeste". A exposição artística, organizada pela recém-fundada Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) , incluiu obras de arte popular e de Veiga Valle, cuja seção "mais chamou a atenção dos visitantes, principalmente das delegações estrangeiras". O congresso, noticiado amplamente na imprensa nacional, tornou-se um marco, introduzindo o debate da necessidade de inovações modernistas nas artes plásticas em Goiás, embora mantendo um espaço para a valorização da cultura tradicional.

A segunda parte aprofunda-se nas representações de Goiânia na ficção. Eliézer Cardoso de Oliveira, em "A realidade da ficção: representações da cidade de Goiânia nos contos literários e poemas", utiliza a literatura ficcional para mapear as reações dos goianienses diante da modernização entre 1960 e 1970. O autor aponta que o crescimento populacional vertiginoso (de 74 mil em 1955 para 800 mil em 1980) e a construção de Brasília geraram na população sentimentos ambíguos de orgulho pelo progresso, nostalgia do passado, e apreensão. A literatura revela uma visão crítica em relação à Brasília (denominada Newtown no conto "Urbanização (Relatório)" de Bernardo Élis ), que trouxe mais dívida e ditadura do que as promessas de prosperidade de Zoroastro Artiaga. O conto satírico de Élis propõe um retorno ao modo de vida rural tradicional para mitigar as mazelas urbanas, com moradores do subterrâneo ocupando a cidade e fazendo uma "vasta roça de toco". Na temática do lazer, a literatura expõe a mudança da sociabilidade familiar para as boates e motéis, com o conto "Lua Cheia", de José Mendonça Teles, apresentando os motéis da rodovia como destino de encontros extraconjugais e terminando com a personagem contraindo uma DST, num final "moralista". A cidade é retratada como um "lugar sem alegria" , onde a prostituição de rua surge e a solidão se instala nos apartamentos, como na crítica do poema "Progresso" de Nelson Figueiredo, que vê o arranha-céu como "antivida" e o responsável por "coisificar o homem no ar". Ewerton de Freitas Ignácio, Andressa Andrade Pires e Émile Cardoso Andrade, em "Entre o arcaico e o moderno: uma leitura de Chão Vermelho, de Eli Brasiliense", analisam o romance de 1956 como um retrato da experiência urbana nascente, onde o protagonista, Joviano, "sente um estranhamento diante da modificação da paisagem rural para um cenário urbano". Joviano compara os automóveis na Avenida Anhanguera a "jabotis de lata" e condena o progresso por "estragar tudo" e tornar perigoso o caminhar. A obra evidencia a dualidade entre o rural e o urbano, o honesto e o desonesto, com personagens como o médico Dr. Ferreira se debatendo com a tentação de se tornar como seus colegas, buscando um "consultório no centro da cidade, uma enfermeira bonita e uma legião de clientes ricos". A corrupção na política também é exposta, com um interlocutor de Ferreira explicando como compra licenças da Prefeitura em nome da CEXIM para revendê-las por "dinheiro grosso". Marco Túlio Martins, Geisa Daise Gumiero Cleps e Karinne Machado Silva, em "A modernidade/modernização da cidade de Goiânia: O discurso de Eli Brasiliense em Chão Vermelho", reiteram o valor da obra como "testemunha ocular" da modernização capitalista no interior, marcada pela dualidade sertão/litoral. O romance, situado no contexto da "Marcha para Oeste" e da ascensão de Pedro Ludovico Teixeira, revela que a modernização do sertão, embora um projeto de Estado, não foi homogênea. A narrativa mostra a exploração da mão-de-obra, com o amigo de Joviano se indignando por ser tratado como "traste do lixo" , e a contradição entre o luxo da cidade que "tomava corpo" e a sujeira, doença e desamparo nos bairros populares.

Na terceira parte, os depoimentos de Heleno Godoy, Maria Helena Chein e Moema de Castro e Silva Olival iluminam a trajetória do GEN (Grupo de Escritores Novos). Heleno Godoy, em "O GEN e a modernidade em Goiás: um depoimento", afirma que o GEN (1963-1967) não foi um movimento literário com novas estéticas, mas sim um "movimento cultural" que visava estudar e produzir literatura. O grupo surge em um momento propício, de desenvolvimento urbano e crescimento populacional (151.013 habitantes em 1960) , com a chegada de jornais e revistas de circulação nacional, permitindo o contato com novas tendências literárias. Godoy defende que a "publicação do livro Rio do sono, de José Godoy Garcia", e a contribuição de Afonso Felix de Sousa foram mais efetivamente modernistas do que a de Leo Lynce. Moema de Castro e Silva Olival, em "GEN – Um Sopro de Renovação em Goiás*", e Maria Helena Chein, em "O GEN e o Modernismo", reforçam que o GEN foi um "divisor de águas" que, "mesmo recusando o Regionalismo, escolheu Bernardo Élis como seu patrono". Os jovens buscavam na crítica, no estudo e na experimentação formal (verso livre, concretismo, sondagem psicológica) a renovação que a literatura goiana necessitava, distanciando-se do "regionalismo que até então unificava a ficção". O grupo, mesmo não tendo apoio oficial, promoveu polêmicas e criou um "certo desconforto no meio literário e artístico local vigente", abrindo caminho para novas gerações.

A quarta parte, "Qual modernidade?", questiona a natureza dessa modernidade. Maria de Fátima Oliveira e Lucas Pedro do Nascimento, em "A modernidade chega ao sertão: A Máquina Extraviada de José J. Veiga", analisam o conto de 1968, que, através da ficção, representa as contradições da modernidade no interior do país. A máquina, instalada na frente da Prefeitura e entusiasmando "todo o mundo" , personifica o "progresso" que muda o ritmo da vida na pacata comunidade. O conto critica os sistemas autoritários e a dominação que "tolhe a subjetividade do sujeito". O autor, José J. Veiga, utiliza a distopia, o oposto da utopia otimista, para denunciar o autoritarismo imposto desde o Estado Novo e agravado durante o governo militar. José Eduardo Mendonça Umbelino Filho, em "As dualidades modernas na literatura goiana", usa o romance O Tronco, de Bernardo Élis, para analisar as dualidades que moldam a identidade goiana: mulas versus carros de boi (atraso versus progresso) e o soldado versus o jagunço (a lei do Estado versus a lei da família). O autor argumenta que a dicotomia mulas/carro de boi funda a identidade goiana, sendo o carro de boi o símbolo do "projeto de nação unida, de contato com a civilização". A solução dos dilemas é o "homem goiano", Pedro Melo, que com as "próprias mãos" constrói a estrada e ergue o progresso sobre o atraso. A luta entre o soldado Vicente Lemes e o coronel Pedro Melo expõe o paradoxo do coronelismo e da identidade moderna goiana, onde o poder da família compete com a lei, e o herói desafia o sistema em defesa de seus íntimos. Isaias Martins de Souza, em "Pão cozido debaixo de brasa, de Miguel Jorge, e uma reflexão sobre as contradições da modernidade", aborda o romance de 1997 como uma obra que recria o espaço de Goiânia e suas contradições. A obra foca no acidente radiológico com o Césio-137 em 1987, que se tornou o "cartão de boas-vindas" à modernidade goiana. O evento é a "materialização do caos" , expondo a desigualdade social e a negligência das autoridades. As personagens, Felipa, João Bertolino e Nec-Nec, são catadores de sucata, "eremitas do destino" que buscam o pão cotidiano em uma cidade que "se dividia em três ou quatro" faces. O autor utiliza a linguagem poética para descrever a cidade como um lugar caótico e perigoso, onde o medo prevalece, transportando a discussão para uma conotação universal.

Por fim, a quinta parte, "Aquém e Além da Modernidade", explora aspectos marginais. Tarsilla Couto de Brito, em "Gilka Bessa, uma poeta mulher na periferia do feminismo", analisa o livro Feminino Plural (1978), buscando os "índices de modernização da poesia de autoria feminina nos anos 70". Gilka Bessa, uma poeta cuja data de nascimento é desconhecida e cuja poesia expressa um "desgosto tão antigo" e uma "amargura de condenada à vida" , trata o feminismo como uma "causa juvenil". A sujeita lírica se reconstrói como uma Penélope, "destece a si mesma de noite" para "ganhar o tempo que a juventude já não permite mais". Seus poemas, como "Mutação", que a descreve como "Monstruosa e ninguém se horroriza" , trazem um "incômodo com a padronização social" e o desejo de estar na "dinâmica dos signos". Lucas Pires Ribeiro e Robson Mendonça Pereira, em "Geraldinho Nogueira: saberes da narrativa artesanal", defendem Geraldinho Nogueira como um narrador artesanal que contraria a profecia de Walter Benjamin sobre o desaparecimento dessa forma de comunicação. Geraldinho, contador de causos com sucesso midiático , é um "sábio no universo dos valores tradicionais da cultura caipira goiana". Seus causos, como O Causo do Rádio e O Causo da Bicicleta , revelam a ressignificação sociocultural e a "hibridização" entre o tradicional e o moderno. Ademir Luiz da Silva, em "A literatura de Edival Lourenço em três tempos", aborda a trajetória do escritor em três fases: a poesia memorialística, o romance pós-moderno (A Centopeia de Néon), e o romance histórico (Naqueles Morros, Depois da Chuva). A poesia de Lourenço, como em Pela alvorada dos nirvanas, valoriza o "momento da descoberta" da música dos Beatles, contrastando com os "traumas infantis" vistos como "frescuras" dos modernos. O romance A Centopeia de Néon, premiado e best-seller local, é caracterizado pela estrutura não linear, vozes polifônicas e o realismo fantástico. Ele apresenta a figura do lobby-man Sidrake de Thorteval Gahy, Sidrake, o Sinistro, que "apesar de durão e temido tinha alma de poeta". O romance histórico Naqueles Morros, Depois da Chuva, ambientado no século XVIII , utiliza a jornada de uma comitiva como metáfora de uma "odisseia no cerrado" , onde a pesquisa histórica é sutilmente inserida na trama para gerar credibilidade.

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