Resenha: Goiânia em Mosaico: visões sobre a capital do cerrado


A coletânea Goiânia em Mosaico: visões sobre a capital do cerrado, organizada por Ademir Luiz da Silva e Eliézer Cardoso de Oliveira, e publicada pela Editora da PUC Goiás em 2015 , cumpre a ambiciosa proposta de desvendar a complexidade da capital goiana para além dos discursos hegemônicos de progresso e modernidade que marcaram sua fundação e desenvolvimento. A obra se estrutura em duas partes nucleares — "Política, Modernidade e Desenvolvimento Econômico" e "Cultura, Religiosidade e Imagens" — articulando-se como um estudo interdisciplinar que, ao re-humanizar os sujeitos e os processos históricos, constrói um mosaico exemplar das múltiplas faces da cidade. O esforço editorial e curatorial se concentra em iluminar as "curvas das margens" e recompor "personagens e eventos dantes marginalizados na versão historiográfica hegemônica" , oferecendo uma perspectiva crítica e multifacetada da metrópole fincada no Cerrado.

Na primeira parte, Nasr Nagib Fayad Chaul, em "Goiânia: A Capital do Sertão", estabelece o enquadramento fundacional da cidade como um "pedaço de modernidade, cravado no sertão goiano". O autor analisa o nascimento de Goiânia como uma estratégia política de Pedro Ludovico Teixeira para consolidar-se no poder após a Revolução de 1930, polarizando a disputa entre o "velho" e o "novo Goiás". A mudança da capital é interpretada como um símbolo de ascensão ao poder e progresso, legitimado pela desqualificação da Cidade de Goiás como centro "oligárquico, decadente e atrasado". Chaul evidencia a mescla contraditória entre o projeto modernista e a realidade da "Capital sertaneja" , notando que a cidade foi edificada sob o prisma da modernidade, mas "ligada à estrutura fundiária". A narrativa se aprofunda na crise da Legalidade de 1961, com Ademir Luiz da Silva e Júlio José da Guarda, em "Metralhadoras no Telhado", expondo a figura de Mauro Borges Teixeira e a encenação política da resistência legalista em Goiânia. Através de depoimentos de cidadãos comuns, os autores desmistificam a "mitologia política construída e divulgada sobre a participação efetiva dos goianos na campanha 'heroica'" , revelando que a maioria popular se posicionou contra a resistência por temer o "derramamento de sangue". Os relatos indicam que a "amplitude do significado político do Movimento da Legalidade ficou restrita às paredes verdes do Palácio das Esmeraldas" , com o povo mais preocupado com a vida cotidiana e menos engajado na narrativa épica. O estudo ressalta o uso da mídia-política por Mauro Borges para construir uma imagem de homem honrado, um "semideus da mitologia" em um "cenário de guerra" , o que contrasta com a visão da população que, por vezes, percebia os militares no telhado como "gárgulas de catedral". Dulce Portilho Maciel, em "Empresas de Goiânia: Contribuição ao Estudo da História Econômica da Cidade", contradiz a tese de que Goiânia seria apenas uma capital administrativa e um entreposto comercial. A análise minuciosa dos dados da Junta Comercial do Estado de Goiás entre 1935 e 1963 demonstra que o setor industrial, em termos de capital investido, sempre deteve o maior peso na economia intraurbana , especialmente a indústria de transformação e a da construção civil , esta última experimentando um "grande salto" entre 1955 e 1960. A pesquisa desvela a pujança econômica da cidade, marcada também pela ascensão do comércio misto e de imóveis , este último impulsionado pelo processo desordenado de loteamentos extraplano original a partir da década de 1950. O artigo de Eliézer Cardoso de Oliveira, "Uma Outra História de Goiânia: Crimes e Tragédias", oferece um contraponto necessário ao "progressismo ingênuo" , analisando a violência, o Césio 137 e a figura de Leonardo Pareja. O autor argumenta que Goiânia, embora pensada para ser o símbolo do progresso , se revelou uma "ilha de modernidade em um mar de tradição" e que o esforço de modernização desencadeou um "efeito paradoxal, gerando catástrofes". A repercussão nacional do assassinato do jornalista Haroldo Gurgel em 1953 e a chacina da Rua 74 em 1957 reforçaram a imagem da cidade como violenta e incivilizada. A rebelião liderada por Leonardo Pareja em 1996 expôs o amadorismo da Segurança Pública e o crime, tido como um "exemplo de quase perfeito aventureiro" , gerou grande repercussão midiática. O ápice da desconstrução do mito modernista é o acidente radiológico com o Césio 137 em 1987, que causou um "abalo na imagem de modernidade" , atrelando Goiânia à imagem de uma catástrofe e expondo a negligência das instituições. A contribuição da obra para a compreensão dos dilemas da modernidade periférica é ampliada por Jales Guedes Coelho Mendonça em "Goiânia: Belo Horizonte à Vista", que traça um paralelo entre as fundações de Belo Horizonte e Goiânia como projetos de substituição de capitais coloniais. O autor demonstra que a experiência mineira, com suas disputas e a resolução da escolha do local pelo Legislativo , serviu de "clara inspiração para o roteiro goiano, algumas vezes para repeti-lo, outras para evitá-lo". Pedro Ludovico Teixeira, agindo em um regime de exceção, consolidou rapidamente a escolha do sítio em Campinas, utilizando o empreendimento como "principal bandeira do PSR" e reduzindo a imprevisibilidade do jogo legislativo, garantindo a irreversibilidade do local.

Na segunda parte, a obra mergulha nas "rugosidades" culturais e religiosas que resistem e coexistem com o projeto modernista. Reijane Pinheiro da Silva, em "O 'Goiânia Capital Country': A Identidade em Disputa", analisa o projeto de 1995 que tentou transformar a cidade na "Capital Country do Brasil". A proposta desencadeou um debate que revelou a disputa pela identidade goiana, confrontando a faceta country com a alegação de raízes europeias e com a produção intelectual local. A autora destaca a rejeição de parte da intelectualidade, que ridicularizava a proposta, sugerindo que ela transformaria a cidade em uma "fazenda asfaltada" e a associando ao atraso e provincianismo. O artigo também aponta a visão do country como um "fruto dos interesses de uma classe rural privilegiada" e a negação de sua legitimidade cultural, apesar da adesão popular ao estilo, impulsionado pelo sucesso da música sertaneja. A resistência ao country é vista como uma tentativa de preservar a "riquíssima cultura regional" de ser "pisoteada" pela cultura estrangeira. Camila Gouveia e coautores, em "As Rugosidades de Campinas: Continuidades e Descontinuidades de uma Estrutura Urbana", utilizam o conceito de "rugosidade" de Milton Santos para mapear as permanências da Campininha das Flores, o núcleo urbano pré-existente à Goiânia planejada. O estudo, baseado em pesquisa de campo, revela a apropriação do antigo traçado viário e a persistência de edificações do século XIX , com suas técnicas construtivas em pau-a-pique e telhado de quatro águas , provando que a nova capital não brotou de uma tábula rasa, como alegado pelos discursos fundacionais. A análise ressalta que o amálgama entre o antigo e o novo é o que, de fato, "melhor qualifica a identidade urbanística de Campinha das Flores". Léo Carrer Nogueira, em "A Umbanda na Cidade de Goiânia – Antecedentes Históricos e Atualidade", e Clarissa Adjuto Ulhoa, em "Também Goiás é Terra de Orixás: O Sacerdote João de Abuque e o Candomblé na Cidade de Goiânia", documentam a história e a luta por legitimidade das religiões afro-brasileiras. Nogueira traça a chegada da Umbanda no final da década de 1940 , marcada pela forte influência do Kardecismo, com a fundação de centros como o "Tenda do Caminho" , e a subsequente criação da Federação Umbandista do Estado de Goiás (FUEGO) em 1969 , que nasceu com uma "incumbência fiscalizadora" para regular a conduta dos terreiros e obter aceitação social. Ulhoa foca na chegada do Candomblé, personificada em João de Abuque, considerado o sacerdote pioneiro. Abuque, migrante nordestino , desafia a narrativa cristã da cidade ao declarar que "Goiás é terra de três orixás: Oxum, Xangô e Oxóssi", fazendo uma apropriação simbólica do território goiano. A autora descreve a repressão policial e a luta pela autonomia, notando que o Candomblé, mesmo sem estar nos planos dos idealizadores da cidade , se estabeleceu e se disseminou, principalmente, a partir da casa de Sr. João. O artigo "O Canto, o Lugar da Congada: Uma Expressão Cultural Negra em Goiânia", de Adriane Damascena e Alex Ratts, registra a presença histórica e a persistência da congada como uma "expressão cultural negra e popular" e um "exercício de comunhão" , que sacraliza o tempo e o espaço cotidiano. A congada, atestada desde 1942 , manifesta-se nos bairros populares, como a Vila João Vaz , como uma forma de resistência cultural e um "reencontro entre os pares" , remetendo à ancestralidade e à identidade negra diaspórica. A manifestação, apesar de ser um movimento contrário ao ritmo acelerado da metrópole , acompanha o crescimento da capital, provando que "Goiânia também é negra e popular". Itelvides José de Morais, em "Goiânia: Protestantismo, Cultura e Cidadania", analisa o crescimento do Protestantismo, que em Goiânia se manteve acima da média nacional , aproveitando a condição da cidade como "local de fronteira". O fluxo migratório e a anomia gerada pelo encontro de culturas tornaram os imigrantes mais propensos a aceitar novas religiões , o que favoreceu o surgimento de grandes igrejas evangélicas de alcance nacional e internacional, que se tornaram um "dos principais produtos de exportação" da cidade. Contudo, o autor nota que essa ascensão também resultou em momentos de relativa intolerância, como na polêmica das estátuas de orixás no Parque Vaca Brava. O artigo de Aline Fernandes Carrijo, "Quando a Juventude Assume o Palco: A Cultura do Rock em Goiânia", demonstra a consolidação da cena rock goianiense como uma resposta da juventude que "não se identificava com esse imaginário coletivo rural" , impulsionado pelo projeto country. A autora descreve a formação da cena, marcada pela mistura de gêneros e pelo espírito Do It Yourself , que criou um mercado intermediário e um senso de comunidade. A juventude do rock contesta o sertanejo e o country e, ao mesmo tempo, luta para legitimar sua prática como "genuinamente goiana" , em um processo de disputa por espaço simbólico e físico na cidade. Allysson Fernandes Garcia, em "Dos Bailes ao Break: Uma História da Cultura Hip Hop em Goiânia 1984-1996", narra a chegada e a ressignificação da cultura hip hop na cidade através de jovens da periferia que encontraram, na música negra estadunidense, elementos para construir novas identidades. A difusão inicial deu-se pela televisão, cinema e rádio e se consolidou nos bailes de equipes de som como a Cash Box , que serviram como espaço de sociabilidade e afirmação da negritude. O autor descreve a atuação de b.boys e rappers em espaços públicos, como o calçadão da Avenida Anhanguera , em uma disputa com a ordem e o racismo dominante , que os via como "mal arrumados", "desocupados", e "negros". A cultura hip hop é vista como um caminho alternativo de inserção social , onde a dança no centro da cidade tem um "valor simbólico importante em uma cidade segregada". O debate sobre a modernidade e seus contrários é central no artigo de Clarismar Gomes de Abreu, "Chão Vermelho, de Eli Brasiliense: Moderno, Progresso e Seus Contrários na Cidade de Goiânia", que utiliza o romance de 1956 como um "guia de Goiânia daqueles tempos". O autor examina a convivência de elementos de modernização, como o automóvel e o cigarro industrializado , com as resistências e precariedades urbanas. O automóvel, símbolo de status , é condenado por Joviano como um elemento que "estragava tudo" , evidenciando o perigo para o pedestre e a segregação, já que as ruas dos bairros periféricos eram de "buraco e lama só". A falta de energia e água, contrastando com a imagem de uma cidade planejada , e a precariedade da assistência médica desvelam a heterogeneidade e a "ambivalência" da modernidade goiana. A última análise é de Marcela Aguiar Borela, "Goiânia e Modernismo de Fronteira: Surgimento de um Mundo Artístico em Goiás", que contextualiza a emergência da arte moderna em Goiás entre 1942 e 1962 a partir da condição de Goiânia como "cidade nova de fronteira". A autora argumenta que o modernismo goiano é tardio, heterogêneo e marcado pela "ambiguidade" do ambiente de fronteira , sendo um encontro de tradições e influências. A origem desse "mundo artístico" se delimita, principalmente, com a chegada dos artistas europeus Gustav Ritter e Nazareno Confaloni e seu encontro com o intelectual goiano Luiz Augusto do Carmo Curado , culminando na fundação da Escola Goiana de Belas Artes (EGBA) em 1952. A obra mural de Confaloni na Cidade de Goiás, "Os Mistérios do Rosário" , é apontada como a primeira obra modernista goiana, que desloca a narrativa religiosa para a ambientação local e reflete o "retorno à ordem" em diálogo com o expressionismo. A EGBA, por sua vez, funcionou como o "ambiente aglutinador de aprendizagens e de trocas" , marcando o início da estruturação da cena artística modernista em Goiânia.

Em suma, Goiânia em Mosaico é uma contribuição fundamental para os estudos urbanos e regionais, ao oferecer uma leitura técnica e complexa da cidade que transcende a historiografia fundacional. A sinergia entre as análises, que transitam da macroestrutura política e econômica às microexpressões culturais e religiosas, revela uma cidade marcada pela contradição inerente à modernidade periférica: uma metrópole que é simultaneamente capital do sertão, palco de disputas identitárias, refúgio de rugosidades ancestrais e berço de um rock contestatório. A obra se consolida, assim, como um referencial para a compreensão da dinâmica social e cultural de Goiânia e, por extensão, dos dilemas da identidade brasileira.

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