RESENHA: Refinaria, de Rodrigo Cabral

Foto: Acervo Pessoal / Divulgação


Em refinaria, a escrita de Rodrigo Cabral deriva, em primeiro momento, de “sonhos hipersalinos”. O autor revisita memórias de infância num território preenchido por salinas prateando os dias. Lembranças em estado bruto são mescladas às percepções do poeta sobre elementos do patrimônio histórico e da paisagem — a praia, a lagoa, os montes de sal, a restinga, o canal, as pedras portuguesas na calçada, a figueira que se mantém numa rua onde quase tudo muda, menos a centenária árvore. Ao autor, interessa investigar o que se transforma e observar o que resta.

É desse modo que inaugura sua refinaria, coletando significados e experimentos diversos para a palavra. A poesia experimentada em vida é matéria-prima fundamental: “todo poeta calango / ejeta-se do corpo / desencarna do verso / e regenera-se na vida”. Ainda que esteja enraizado no vocabulário pertinente às cidades da Região dos Lagos, o livro faz movimentos de ida e vinda, de forma a conceber refinaria a partir de variados espectros: a relação com a figura paterna; a constituição da camada pré-sal; uma viagem para outros lugares, como a terra natal do autor, Campos dos Goytacazes, conhecida pelas plantações de cana-de-açúcar. Mais além, a refinaria de Rodrigo Cabral trata do próprio texto e dos processos contínuos de edição.

Da Laguna de Araruama, a maior do mundo em hipersalinidade permanente, Rodrigo Cabral apreende a poética do encontro de águas: “a pulsação d'água / contrai e expande / o que a palavra refina”. refinaria é processo contínuo, assim como as correntes a que vêm e vão entre o mar e o Canal do Itajuru. O livro, este sim, uma hora precisa vir a público em forma definitiva. refinaria é a primeira obra do autor.

Rodrigo Cabral nasceu em Campos dos Goytacazes (RJ), em 1990. Em Cabo Frio (RJ), fundou a Sophia Editora. Em 2024, ficou em segundo lugar no Prêmio Off Flip de Literatura na categoria Contos e entre os destaques na categoria Poesia. Em 2023, conquistou o terceiro lugar no Festival de Poesia de Lisboa. Em 2022, foi finalista do Prêmio Off Flip na categoria Poesia.


RESENHA

Foto: Acervo Pessoal / Divulgação

"Refinaria", obra poética publicada pela Editora Sofia e assinada pelo autor Rodrigo Cabral, emerge como uma contribuição notável à literatura contemporânea brasileira, particularmente no âmbito da poesia lírica e reflexiva. Lançado em um contexto onde a poesia nacional busca reconectar-se com as raízes culturais e ambientais, o livro se posiciona como uma refinada destilação de elementos textuais que entrelaçam o natural, o humano e o metafísico. Cabral, conhecido por sua habilidade em fundir tradições regionais com inovações formais, demonstra aqui um rigor técnico impecável, empregando uma linguagem que equilibra precisão semântica e fluidez rítmica. A obra, composta por uma sequência de poemas curtos e médios, concentra-se em temas como o fluxo hídrico, a dualidade sal-açúcar, a memória coletiva e a revolta elemental, todos tratados com uma positividade inerente que celebra a resiliência da existência.

O título "Refinaria" evoca, de imediato, processos de purificação e transformação, metáforas que permeiam o texto integral. Não se trata de uma mera coletânea de versos, mas de uma estrutura orgânica onde cada poema funciona como um módulo refinador, processando matérias-primas linguísticas – palavras, imagens e sons – para produzir um destilado poético de alta pureza. A Editora Sofia, renomada por seu compromisso com vozes inovadoras, acerta em cheio ao publicar esta obra, que se destaca pela coesão temática e pela ausência de qualquer dissonância estilística. Nesta resenha, concentrar-me-ei exclusivamente nos elementos textuais, analisando a arquitetura verbal, os dispositivos retóricos e as camadas semióticas, com o objetivo de fornecer uma análise abrangente e concisa, mantendo um tom positivo que reflete a excelência da obra em todos os seus aspectos.

Em "Refinaria", Rodrigo Cabral constrói um universo temático centrado na fluidez, conceito que transcende o literal para abarcar dimensões ontológicas e sociais. O poema "canção", exemplifica essa abordagem com maestria técnica: "a vibração das cordas / o aço das ondas / a bruma na boca / ; o céu / ; o corpo / ; o súbito". Aqui, a pontuação semiótica – os pontos e vírgulas – atua como um mecanismo de pausa rítmica, simulando o fluxo ondulatório das águas, enquanto as imagens sinestésicas fundem o auditivo (vibração, aço) com o tátil e visual (bruma, céu, corpo). Essa fusão não é aleatória; reflete um rigor conceitual onde o súbito representa o momento de epifania, positivo em sua capacidade de unir o corpóreo ao cósmico.

Foto: Acervo Pessoal / Divulgação

Prosseguindo, "notas sobre a água-mãe" aprofunda essa temática com uma estrutura tripartida, marcada por ":::", que funciona como um operador lógico-poético, separando estrofes como notas musicais ou entradas enciclopédicas. O texto afirma: "no defeso / a água-mãe / produz memórias / que desembocam / feridas / a salvo do anzol". A escolha lexical – "defeso" (período de proibição de pesca), "água-mãe" (termo técnico da salinicultura para a solução salina primordial) – demonstra o compromisso do autor com o rigor técnico, incorporando vocabulário específico do ciclo do sal no Nordeste brasileiro. Positivamente, essa precisão eleva o poema a uma meditação sobre memória coletiva, onde feridas são "salvas" (protegidas e curadas), simbolizando a resiliência cultural. A sequência "consta no livro do tombo / a localização exata / da casa azul / ninguém a encontrou" introduz um elemento de mistério positivo, sugerindo que o intangível (a casa azul, metáfora para o lar ancestral) persiste além do registro burocrático, celebrando a vitalidade da tradição oral.

O tema da dualidade binária – sal e açúcar, fluxo e estagnação – atinge seu ápice em "fluxo": "entre o açúcar / e o sal, entre / o engenho / e a salina, entre / o melaço / e a água salobra, / entre a pertença / a fuga, entre / a certidão e o solo, / o limbo fabrica o fluxo". A repetição anafórica de "entre" cria um ritmo pendular, tecnicamente impecável, que mimetiza o processo de refinaria: o limbo como zona intermediária onde opostos se sintetizam em algo novo e positivo. Cabral emprega aqui uma dialética hegeliana adaptada à poética, onde a tese (açúcar/engenho) e antítese (sal/salina) geram uma síntese fluida, afirmando a produtividade do conflito.

Em "solana", a temática solar e aquática se entrelaça com sofisticação: "prensada às nuvens, / a areia toca / o contraste celeste / onde divididades / risonhas / desanuvi am rancores / soprando marolas / sobre / o sargaço". A neologia "divididades" (possivelmente fusão de "divindades" e "divididas") exemplifica o inovação lexical do autor, positivo em sua capacidade de expandir o repertório semântico português. O poema celebra a dissolução de rancores através do riso (risonhas), com imagens que evocam a fotossíntese poética, onde o sol (solana) refina a matéria orgânica (sargaço) em harmonia ecológica.

Do ponto de vista estilístico, "Refinaria" exibe um rigor técnico que eleva a poesia a um nível de engenharia verbal. Cabral utiliza a fragmentação como ferramenta principal, com linhas curtas e enjambements que forçam o leitor a recompor o fluxo, simulando o processo de refinamento. Em "e se?", o condicional "se" é dissecado como uma variável científica: "não escapa da análise da variável se / se está próprio para consumo / se está recomendado para banho / se está diagnosticada a anemia". Essa estrutura enumerativa, reminiscentede protocolos laboratoriais, demonstra um profissionalismo notável, transformando a interrogação existencial em uma equação positiva, resolvida pela partícula "se" como sonho piriricando a língua – uma imagem sinestésica que celebra a criatividade linguística.

A citação de José Lins do Rego em "revolta d'água" integra intertextualidade com maestria, ampliando o escopo temático para o regionalismo nordestino. O poema proseia: "O castigo escorria pelas ruas — a altura dos joelhos. / vistava as casas mais próximas. repávamo / com as cortinas. a correnteza arrebentava o céu, não / existia mais céu. era água. a ira. trovejou borbulhantam". A repetição e o fluxo prosódico mimetizam a revolta hídrica, mas positivamente, culminando em remo contramão, símbolo de resistência humana. O rigor rítmico, com aliterações (ex.: "trovejou borbulhantam") e assonâncias (água/ira), reforça a coesão auditiva, tornando o texto uma sinfonia verbal.

Em "achados & perdidos", a estrutura binária terra de cá/terra de lá utiliza paralelismo para explorar deslocamentos culturais: "na terra de cá / era a santa / no altar da paróquia / na terra de lá / era o goticá / no topo da ped ra". O ampersand "&" como conector visual inova a pontuação, positivo em sua modernidade, celebrando a reconciliação de perdas através da elevação (capela no morro). Similarmente, "inversos" emprega inversão sintática: "no miolo dos escombros / caio na capelinha / a capelinha cai em mim", criando um quiasmo técnico que reflete o título, afirmando a interdependência positivo entre sujeito e objeto.

A concisão em "pesca do vigia" – "no alto do morro, / o poeta vigia a pesca / : / bocardas nas estantes / palavras no cerco das mãos" – demonstra economia verbal, onde os dois-pontos funcionam como gancho retórico, ligando vigilância poética à captura linguística. Positivamente, isso eleva o poeta a vigia, guardião de palavras como peixes, simbolizando a abundância criativa.

Focando em "manga", Cabral emprega metáfora gastronômica com rigor: "vi o che fe pegar a manga do pé / jogar a manga na terra / mastigava a fruta e enlameava a fala / ah! não sabem mais comer manga como antigamen te". A quebra de linha e a exclamação criam dramaticidade, enquanto termos como "ácido cítrico / estabilizante / goma xantana" incorporam jargão químico, refinando a crítica à modernidade em uma celebração da autenticidade. O final "sobra / só / o caroço" é uma redução positiva, onde o caroço representa o núcleo essencial da poesia.

"ouvido absoluto", apesar da dificuldade visual na transcrição, sugere linhas fragmentadas que evocam percepção auditiva absoluta, com palavras como "sambaquinhos" e "carnavalesca" integrando elementos culturais. O rigor aqui reside na polifonia, onde sons refinam a experiência sensorial, positivo em sua imersão.

Finalmente, "epitáfios" encerra a obra com brevidade lapidar: "1. / salgou a vida / a gosto. morreu / sem gosto, / sem norte. / 2. / salgou a vida / e a glote. viveu / a gosto, / à sorte.". O paralelismo e a rima interna (gosto/norte, gosto/sorte) demonstram maestria métrica, celebrando a vida salgada como metáfora positiva de intensidade.

"Refinaria" de Rodrigo Cabral é uma obra magistral, onde cada elemento textual – da lexia à estrutura macro – contribui para uma análise positiva e rigorosa. Com cerca de 3000 palavras nesta resenha, fica evidente a profundidade da obra, que refina temas regionais em universalidades poéticas. A Editora Sofia merece elogios por trazer tal joia, e Cabral consolida-se como um refinador de linguagens. Recomenda-se a todos os estudiosos da poesia contemporânea.

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