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[RESENHA #964] Ti amo – Hanne Ørstavik

Um câncer terminal levará seu marido dentro de um ano. Ele ignora a morte. E ela se volta à escrita na tentativa de preservar a própria força vital. Para a escritora Natalia Timerman, que assina a orelha do livro, Hanne Ørstavik escreve “na imbricação entre vida e literatura”. Um dos maiores nomes da literatura norueguesa contemporânea, Hanne Ørstavik estreia no Brasil com o encantador e contundente Ti Amo. A prosa comovente que a consagrou como uma autora aclamada em diversos países foi traduzida por Camilo Gomide, direta do norueguês.

RESENHA

Ti amo é um livro que mistura ficção e realidade, baseado na experiência da autora norueguesa Hanne Ørstavik, que perdeu o seu marido italiano para o câncer. O livro é um relato emocionante e íntimo de um amor que enfrenta a morte, a dor e o silêncio. O livro é escrito e ambientado nos primeiros meses de 2020, e seus temas de perda e sofrimento são especialmente adequados para um tempo de luto internacional.

O livro narra a história de uma narradora sem nome que cuida do seu marido, doente de câncer, nos últimos meses da sua vida. Ela examina os elementos da sua vida juntos: a mesa vietnamita cor-de-rosa onde eles comem suas refeições, cada um dos Anos Novos que eles compartilharam, suas amizades e suas trocas mais íntimas. Com tudo em mudança, ela busca as facetas que permanecerão.

O livro é uma homenagem ao legado do seu marido, que era um editor e tradutor italiano, que amava a arte, a música e a literatura. O livro também é uma reflexão sobre as questões existenciais, culturais e linguísticas que o casal enfrentou em sua relação. O que se pode encontrar em um olhar? O que se esconde em uma pintura ou por trás de um punhado de palavras repetidas? Essas são as perguntas que assombram a narradora, que tenta preservar a sua própria força vital através da escrita.

Ti amo é um livro que mostra a sensibilidade e a sinceridade da autora, que é uma das escritoras mais admiradas e premiadas da Noruega. A autora escreve com uma linguagem simples, direta e criativa, que se adapta aos ritmos da mente da narradora. Na tradução de Martin Aitken, a história de Ørstavik ganha vida.

A obra possui um enredo poético e chocante. A autora descreve em detalhes, e em primeira pessoa, o di-a-dia em companhia do marido após diagnóstico. Noites mal dormidas regradas à adesivos e comprimidos para dor, morfina e muita resiliência.

[...] Você está sentindo muita dor. Não podemos colocar mais adesivos?, eu digo. Tudo o que resta é uma pequena pilha de adesivos. E então colocamos os adesivos, dois de cinquenta, um de cada vez,  e depois de passar o dia todo deitado com dores, você finalmente adormece. (p.49)

[...] O que consta em seu boletim médico é que desde o final de outubro os marcadores dobraram a cada novo exame. Lendo em retrospecto, vejo que antes não estava assim, no ano em que você fez a quimio, depois da cirurgia, os valores oscilaram um pouco para cima e para baixo, mas não passaram de quatro mil. [...] No entanto, a dor fica mais forte a cada dia, a cada noite, e agora você está com esse inchaço. [...]

[...] você está deitado na cama e acabou de colocar trezentos miligramas debaixo da língua, mas logo eles vêm te buscar, precisam te preparar para a ressonância magnética mais tarde, tiram você da cama e do barato que acabou de entrar, nós acordamos às sete horas, antes das oito estávamos no táxi. (p.72).

Em síntese, a obra de Ørstavik é complexa, dolorida, repleta de gatilhos. É uma leitura rápida, mas que dura uma vida toda. Leia este livro de coração e alma abertos, ele não é apenas um enredo, mas a descrição de alguém que acabou de perder o seu amor. Um livro para se por embaixo do travesseiro e reler sempre que se sentir sem forças, pois ainda que a autora trabalhe saudade e luto o tempo todo...ela também trabalha força e superação, e é aqui que reside a força de sua escrita: na resiliência.

[RESENHA #963] Os rostos que tenho, de Nélida Piñon

“Viver requer aestado artístico”. Em obra póstuma e inédita, a autora consagrada Nélida Piñon costura, através de 147 capítulos, o seu testamento literário: Os rostos que tenho.

Nélia Pinõn acreditava na importância de deixar rastros. Rastros de existência, da própria criação, de palavras que se incorporam a um legado para os que ficam. Com 147 capítulos curtos que lembram a estrutura de um diário, a autora consagrada esculpe uma extensa pluralidade de máscaras que flutua pelos meandros da vida, da arte e da mortalidade. Ao lado da pressa por escrever em contrapelo ao tempo que lhe resta, não habita a autocomiseração, mas a festa: “Luto para meus dias serem festivos. Só por estar viva, mesmo sem razão concreta, ergo a taça da ilusão”. Obra póstuma e inédita, Os rostos que tenho é, segundo o escritor Rodrigo Lacerda, o “testamento literário” de Nélida Piñon. 

A primeira escritora a se tornar presidente da ABL sabia do papel social e literário que exercem os registros que deixamos, as memórias que nos empenhamos para preservar. Através de textos curtos que, no entanto, não correm o risco de minguar na superfície, Nélida mergulha em suas próprias máscaras, tecendo um balanço de vida coeso, complexo e multifacetado. Os rostos que tenho nos apresenta a recortes de sua infância, na qual as línguas espanhola e portuguesa se entrelaçam, criando uma sinfonia cultural que ecoa através de sua vida e de sua literatura. Somos convidados, ainda, a conhecer sua relação íntima com a palavra, com a criação, com os seus contemporâneos. Em uma reflexão profunda sobre a mortalidade, reconhecemos a preciosidade de seus rastros e vontades de memória.

O prefácio desta primeira edição, assinado pelo escritor – e editor de Nélida Piñon - Rodrigo Lacerda, deixa um recado ao leitor:

“Haveria ainda muito a se falar sobre o testamento literário de Nélida Piñon e seus rostos mutantes, ou, como diz o capítulo 46, suas “máscaras”. É melhor, no entanto, deixar que os leitores se surpreendam com o livro. E se emocionem com as derradeiras perguntas que Nélida deixa no ar, vendo próximo o fim de uma vida inteira dedicada ao poder de invenção e reinvenção pelas palavras.”

RESENHA

Os rostos que tenho é um livro póstumo e inédito da escritora brasileira Nélida Piñon, considerada uma das maiores da língua portuguesa. Publicado em 2023 pela editora Record, o livro reúne 147 crônicas curtas, que lembram um diário, nas quais a autora reflete sobre sua vida, sua obra, sua relação com a palavra, seus amigos, seu amor, sua morte e seu Deus.

O nome da obra é uma alusão ao título do capítulo 46, ao qual Nélida adotou após uma reunião com os editores da obra, o titulo original desta obra é Andanças de Nélida, e foi escrito a obra como uma testamento literário enquanto escrevia, em contrapartia, seu último romance, como prefaciado por Rodrigo Lacerda.

O livro é dividido em 147 capítulos, que variam de uma a três páginas, e que abordam temas diversos, como a infância, a família, a cultura, a política, a literatura, a amizade, o amor, a solidão, a velhice, a morte e a fé. Nélida Piñon, que era filha de imigrantes espanhóis, mostra como sua identidade foi marcada pela convivência entre duas línguas e duas culturas, e como isso influenciou sua escrita. Ela também homenageia seus mestres e amigos, como Clarice Lispector, García Márquez, Susan Sontag, Rubem Fonseca, entre outros, e compartilha suas impressões sobre suas obras e suas vidas.

Os rostos que tenho é um livro que celebra a arte e a existência, em uma prosa lírica e envolvente. Nélida Piñon mostra sua paixão pela palavra, sua busca pela beleza, sua lucidez diante da realidade, sua coragem diante do sofrimento, sua esperança diante do mistério. É um livro que revela a grandeza de uma escritora que soube transformar sua vida em literatura, e sua literatura em vida.

A autora nos brinda com sua genialidade de forma poética e singela em cada capítulo,  sobretudo, quando faz afirmações ao divino no capítulo de abertura da obra, a eternidade: Deus é tão palpável quanto um pedaço de pão. Apieda-se da fome humana enquanto impõe-nos seu intransigente decálogo. E dissemina existir onde nos abrigaremos no futuro. Vale, pois, crer em tal divindade. (p.19); quando aborda a estética: A estética tem rosto, posso vê-lo. Assim, no exercício da arte, a estética é difusa, inconsútil, arcaica, carnal, mística, transcendente, arqueológica, vasta, profunda, tradicional, contemporânea, sobretudo, mestiça (p.21); quando aborda a humanidade: Quem repetirá, à beira da cama, palavras que decerto não foram alinhavadas pelo engenho e pela carência dos homens? (p.23).

A muito o que se declarar quando o tópico central da discussão é Piñon, Nélida esteve sempre à frente de seu tempo, não apenas em suas palavras e atitudes, mas em seu legado.

Nélida Piñon, que faleceu em 2022, aos 85 anos, em Lisboa, deixou um legado literário de grande valor e reconhecimento. Foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, em 1996, e recebeu diversos prêmios nacionais e internacionais, como o Príncipe de Astúrias, da Espanha, em 2005. Em Os rostos que tenho, ela revela as múltiplas facetas de sua personalidade e de sua criação, em um testemunho sincero, poético e emocionante.

[RESENHA #962] Noveletas – Sigbjørn Obstfelder

Noveletas reúne as novelas Liv e As Planícies, do escritor norueguês Sigbjørn Obstfelder (1866-1900). Esse é o 1º título da Coleção Norte-Sul, organizada e traduzida por Guilherme da Silva Braga.

RESENHA

Noveletas é uma coletânea de duas novelas do escritor norueguês Sigbjørn Obstfelder (1866-1900), considerado um dos pioneiros do modernismo literário em seu país. O livro, traduzido diretamente do norueguês por Guilherme da Silva Braga, é o primeiro título da Coleção Norte-Sul, que pretende apresentar ao público brasileiro autores e obras de países nórdicos ainda pouco conhecidos.

As novelas Liv e As Planícies são exemplos da prosa inovadora e experimental de Obstfelder, que explora aspectos psicológicos e abstratos dos personagens, em contraste com a narrativa realista e naturalista predominante na época. Influenciado pela poesia de Charles Baudelaire, Obstfelder cria atmosferas sombrias, melancólicas e simbólicas, que refletem sua própria angústia existencial e sua busca por um sentido para a vida.

Liv conta uma história narrada em primeira pessoa de um homem que cuida de uma mulher de nome homônimo ao conto. Ela vive em um internato e encontra-se doente, e ele toma para si a obrigação de cuidar dela. A narrativa é marcada pela subjetividade e pela fragmentação, que expressam o conflito interno e a instabilidade emocional da protagonista. O final é algo inesperado pelo leitor e marca toda leitura com um enredo emocionante e tocante.

Liv é islandesa. Ela, essa alva e bela figura, cuja mão desliza como uma sombra por cima das cobertas, em cujos olhos há um brilho de maciez, fala com erres ríspidos e estrangeiros, que soam estranhamente pesados na língua ademais suave. (p.19)

As Planícies narra a viagem de um homem através das planícies, onde ele descreve, com destreza mais do que os olhos podem enxergar. Ele conhece uma mulher de nome Naomi ao qual se encanta à primeira vista, ela é, segundo ele, pálida como um cadáver. A escrita do autor é prolífica em suas nuances e descreve com clareza e expertise um enredo inovador e intrínseco. O autor trabalha a noção de psicologia e lembrança em seus enredos, as descrições e aventuras de suas personagens revelam muito além do que o enredo pode proporcionar fora das entrelinhas, é necessário descortina-los, ler, reler e refletir. Sinto como se cada descrição do autor fosse um universo particular dentro de uma criação única e singular.

É estranho pensar que todos os outros estiveram com ela ao longo da vida inteira, e que no entanto, fui o primeiro a vê-la. Nenhuma pessoa no mundo viu Naomi (p.48) 

Noveletas é um livro que nos surpreende pela originalidade e pela beleza de sua escrita, que nos envolve e nos emociona com suas histórias de amor, dor e loucura. É uma obra que nos faz conhecer e admirar o talento de Sigbjørn Obstfelder, um autor que influenciou grandes nomes da literatura mundial, como Rainer Maria Rilke, e que merece ser lido e apreciado por todos os amantes da boa literatura.

[RESENHA #960] O cordeiro e os pecados dividindo o pão, de Milena Martins Moura

Nas palavras de Priscila Branco, que assina o prefácio do novo livro de Milena Martins Moura, “[em] O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, o único milagre possível é o ato poético […]: ‘Eu estou escrevendo / Isso é um milagre’”

Exercício de subversão, Milena Martins Moura faz o cordeiro – símbolo da castidade – sentar à mesa com os pecados. E gozar da companhia um do outro, “de corpo inteiro no indevido”.

Para a professora Paula Glenadel da Universidade Federal Fluminense (UFF), Milena “assume para si uma voz incomum entre sua geração”, tratando de temas bíblicos, ou dos “mistérios gregos”.

Neste O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, a opressão é esmagada e as palavras são desnudadas sem culpa, como aponta Anna Clara de Vitto na orelha.

A Eva de Milena é “serpente e desfrute” e vai “lambendo o caminho desviado”, dando atos de sujeito à primeira mulher. Em certo momento, Eva afirma: “estou nua e disso não me envergonho”.

RESENHA

A poeta enfrenta temas como religião, erotismo, profanação do sagrado e as proibições ligadas à liberdade feminina, em versos que usam a palavra como instrumento de independência. Priscila Branco ressalta, logo no início do prefácio, que essa coletânea de poemas é transgressora, pois propõe uma total inversão da tradição judaico-cristã, estabelecida em nossa sociedade por milhares de anos. E afirma: “O próprio ato de escrita e, agora, de leitura deste livro é a luta contra o sacrifício. Que a poesia possa sempre dar voz ao cordeiro e aos pecados, e que todo leitor ache um pedaço desse pão, mesmo que o cobertor esteja úmido em dias gelados.” Nessa mesma direção, Paula Glenadel oferece, no posfácio, uma análise sobre a abordagem ousada de Milena nessa obra. De acordo com ela, a fome e a sede são imagens que percorrem quase todos os poemas do livro. Para a professora, essas cenas se organizam em duas grandes séries de substâncias, a do pão, do vinho ou da água; e a da carne e do sangue, nas quais o sujeito se exercita na ocupação de lugares mutáveis. E essa transubstanciação, em suas palavras, “põe em destaque a ineficácia da transferência sacrificial tradicional, incapaz de saciar essa sede e, principalmente, essa fome”. Em O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão, as mulheres existem como seres que desejam e é do desejo que o direito à subjetividade emerge. Para a autora, trabalhar esse tema sob essa perspectiva era algo inevitável, além de um ato político em desejo de si e de outras: “Eu sou uma mulher que foi criada sob o peso da culpa e que se cansou de ver seu desejo como um erro e seu corpo como impuro.”

Em uma análise ao poema LUTA:

apenas dois
olhos
fracos
se interpõe
entre mim
escuro

e eu que nunca fui muito forte existo novembro e flores mortas pintadas do sangue de flamboyants tenho dois olhos cor de tempestade e um cansaço ancestral nos ossos do não
dito 

O poema é um texto lírico que expressa a angústia e a solidão do eu lírico, que se sente fraco e cansado diante da escuridão da vida. O poema tem uma estrutura irregular, sem rimas ou métrica definida, o que sugere uma ruptura com as formas tradicionais e uma busca por uma linguagem mais livre e pessoal.

O poema se divide em três partes, cada uma iniciada por uma referência aos olhos do eu lírico. Na primeira parte, ele diz que tem apenas dois olhos fracos que se interpõem entre ele e o escuro, o que indica uma sensação de impotência e vulnerabilidade diante do desconhecido. Na segunda parte, ele afirma que nunca foi muito forte e que existe novembro e flores mortas pintadas do sangue de flamboyants, o que remete a uma atmosfera de melancolia e decadência, marcada pelo fim do outono e pela cor vermelha que simboliza tanto a beleza quanto a violência. Na terceira parte, ele revela que tem dois olhos cor de tempestade e um cansaço ancestral nos ossos do não dito, o que sugere uma emoção intensa e reprimida, que carrega consigo há muito tempo e que não consegue expressar.

O poema, portanto, é uma manifestação de um sentimento de desesperança e de incomunicabilidade, que revela a fragilidade e a complexidade do eu lírico.

Adquira O Cordeiro e os Pecados Dividindo o Pão via site da editora Aboio: https://aboio.com.br/produto/o-cordeiro-milena-martins-moura/

[RESENHA. #961] O sorriso do erro, de Eduardo rosal

Em um mundo tomado pela disputa entre aprovação e reprovação, Eduardo Rosal defende o erro pelo erro. Não como um passo a caminho para o sucesso, mas uma escolha de maneira consciente: a fuga de qualquer rota totalitarista que desconsidere nossas singularidades e diferenças.

“Ser escritor”, diz o poeta, “é um esforço destinado ao erro; é trabalhar com as ruínas do fracasso”. No entanto, é preciso continuar escrevendo, buscando, ou melhor, criando um sentido para nossas vidas. “Assim como é preciso ver Sísifo contente, precisamos ver o sorriso no erro”, sentencia.

O Sorriso do Erro apresenta 42 poemas divididos em seis seções – Os muros do nome, Dentro e fora, Os gestos no escuro, Croque de concretude, Lições de fragilidade e Errâncias. Embora cada uma tenha seu próprio mote, elas dialogam entre si, fomentando uma conversa que culmina em um questionamento para o leitor: afinal, o que é o erro?

RESENHA

O Sorriso do Erro é um livro de poesia de Eduardo Rosal, publicado pela Editora Aboio em 2023. O autor defende o erro como uma forma de resistência e criação, contrapondo-se à lógica da aprovação e da reprovação que domina o mundo contemporâneo. Rosal propõe uma poesia que celebra as singularidades, as diferenças e as dúvidas, em oposição ao totalitarismo, ao fascismo e à uniformidade.

O livro é dividido em seis seções (os muros do nome; dentro e fora; os gestos no escuro; croqui de concretude; loções de fragilidade e errância), cada uma com um tema específico, mas que se relacionam entre si. Os poemas exploram questões como a identidade, a linguagem, a violência, a fragilidade, a memória e a esperança. Rosal utiliza uma linguagem simples, mas não simplista, que busca provocar o leitor a questionar o que é o erro e qual o seu papel na construção de um sentido para a vida.

O Sorriso do Erro é um livro que convida à reflexão, à crítica e à ação, através de uma poesia que não se conforma com o status quo, mas que busca transformá-lo. É um livro que sorri para o erro, não como um fracasso, mas como uma possibilidade de renovação e de liberdade.

O primeiro poema da primeira seção, os muros do nome, é completamente forte e poético:

Desde que não sei quem sou
começo a me entender
entre a sede
           e o são
    um nome
que não sei dizer
e se refaz 
vão de voo
terreno entre
um natimorto acerto
e os erros de quem
não se rende aos modelos

O poema começa com uma afirmação paradoxal: “desde que não sei quem sou, começo a me entender”. O sujeito poético revela que a sua ignorância sobre si mesmo é o ponto de partida para o seu autoconhecimento. Ele se coloca entre a “sede” e o “são”, ou seja, entre o desejo e a razão, entre a falta e a plenitude, entre o incompleto e o completo. Ele não se define por nenhum desses extremos, mas pela tensão entre eles.

O segundo verso mostra que o sujeito poético está em constante transformação: “um nome que não sei dizer e se refaz”. Ele não tem uma identidade fixa e estável, mas uma que se renova e se reinventa. Ele não sabe dizer o seu nome, pois ele não é um rótulo ou uma etiqueta, mas uma experiência e uma vivência.

O terceiro verso repete a expressão “vão de voo”, que pode ter dois sentidos: um de movimento, de ir e vir, de deslocamento; e outro de vazio, de ausência, de lacuna. O sujeito poético se situa nesse vão, nesse espaço entre, nesse intervalo que não é nem um nem outro, mas que possibilita a criação e a resistência.

O quarto verso reforça essa ideia de estar no “terreno entre”, no limiar, na fronteira, na margem. O sujeito poético não se conforma com o “natimorto acerto”, ou seja, com o que é dado como certo, mas que já nasce morto, sem vida, sem sentido, sem potência. Ele se identifica com os “erros de quem não se rende aos modelos”, ou seja, com as falhas, as diferenças, as singularidades, as subversões, as transgressões, as invenções.

O poema, pode ser considerado uma afirmação da identidade como um processo, uma construção, uma experimentação, uma errância, uma poesia. É um poema que sorri para o erro, como uma forma de liberdade e de expressão.

outro poema bastante interessante do autor está presente na quarta seção, croqui de concretude, loucura:

Locura de astrônomo,
de biólogo:
de binóculo na veia, ver
no mínimo o macro.
Microscopicamente, ver
no macro o micro

Loucura de arqueólogo, 
de catalogador, de colecionador:
movidos mais
pela próxima busca,
apaixonados pelo jogo com a perda,
com fome de fragilidades.

Loucura de escritor que manuseia
um grão de areia e um astro,
com a mesma intimidade
com que entrevista a morte,
uma planta dormideira
e um gato.

Sou louco pelo gelo derretendo,
pelos capachos de bem-vindo
(com ou sem hífen),
pela água ventando na poça.

Louco pelas montanhas com vacas.
Louco por outras pegadas.

Nesse poema, o autor explora as diferentes formas de loucura que se manifestam na curiosidade, na criatividade e na sensibilidade dos seres humanos. Ele usa como exemplos as profissões de astrônomo, biólogo, arqueólogo, catalogador, colecionador e escritor, que representam a busca pelo conhecimento, pela arte e pela memória. Ele também se inclui nessa lista, revelando suas próprias loucuras, que são detalhes simples e cotidianos que o encantam.

O poema é construído com versos livres, sem rima ou métrica fixa, mas com uma certa musicalidade e ritmo. Ele usa repetições, anáforas, aliterações e assonâncias para criar efeitos sonoros e enfatizar as ideias. Por exemplo, ele repete a palavra “loucura” no início de cada estrofe, criando uma espécie de refrão. Ele também usa anáforas como “de” e “pela” para introduzir os objetos de loucura de cada profissão ou pessoa. Ele usa aliterações como “binóculo na veia”, “movidos mais pela próxima busca” e “com fome de fragilidades” para criar sons consonantais que reforçam o sentido dos versos. Ele usa assonâncias como “astrônomo, de biólogo”, “arqueólogo, de catalogador, de colecionador” e “grão de areia e um astro” para criar sons vocálicos que harmonizam os versos.

O poema também usa imagens e metáforas para expressar as loucuras dos sujeitos. Por exemplo, ele usa a imagem do “binóculo na veia” para sugerir a intensidade e a paixão dos astrônomos e biólogos pelo que observam. Ele usa a metáfora do “jogo com a perda” para indicar o desafio e o risco dos arqueólogos, catalogadores e colecionadores que lidam com objetos frágeis e efêmeros. Ele usa a imagem do “grão de areia e um astro” para mostrar a amplitude e a diversidade dos temas que o escritor pode abordar. Ele usa a metáfora da “entrevista” para revelar a proximidade e a curiosidade do escritor com relação aos seus objetos de escrita, que podem ser desde a morte até um gato.

O poema, portanto, celebra a loucura como uma forma de resistir à normalização e à padronização que o autor critica em seu livro. Ele defende a loucura como uma forma de liberdade, de expressão e de criação, que valoriza as singularidades e diferenças humanas. Ele convida o leitor a se identificar com as loucuras apresentadas no poema e a reconhecer as suas próprias loucuras.

O sorriso do erro é um livro que nos convida a refletir sobre o papel do erro na vida humana, na arte e na sociedade. Eduardo Rosal, com sua poesia sensível, criativa e engajada, nos mostra que o erro não é apenas um desvio, um fracasso ou uma falha, mas também uma forma de resistir, de expressar e de criar. Ele nos propõe uma ética do erro, que valoriza as singularidades, as diferenças e as possibilidades de cada ser humano.

O livro é composto por 42 poemas, divididos em seis seções, que abordam temas como o nome, o corpo, o amor, a linguagem, a fragilidade e a errância. Cada seção tem um título que remete ao erro, como Os muros do nome, Dentro e fora, Os gestos no escuro, Croque de concretude, Lições de fragilidade e Errâncias. Os poemas são escritos em versos livres, sem rima ou métrica fixa, mas com uma musicalidade e um ritmo próprios. O autor usa recursos estilísticos como repetições, anáforas, aliterações, assonâncias, imagens e metáforas para criar efeitos sonoros e visuais, e para enfatizar as suas ideias.

O livro é uma obra original, inovadora e provocativa, que nos faz pensar sobre o nosso próprio conceito de erro, e sobre como lidamos com os nossos erros e os dos outros. É um livro que nos desafia a questionar os padrões, as normas e as verdades impostas pela sociedade, e a buscar a nossa própria voz, o nosso próprio caminho, o nosso próprio sorriso. É um livro que nos ensina a errar com coragem e consciência.

[RESENHA #958] A vida é cruel, Anamaria: Diálogos imaginários com minha mãe, de Fábio de Melo


“Depois que morre a minha mãe, morre também a minha obrigação de ser feliz.” – Fábio de Melo 


Com profunda sensibilidade e lirismo, A vida é cruel, Ana Maria apresenta ao leitor um depoimento franco sobre a desconstrução da mãe enquanto modelo idealizado e sobre o luto não só pela perda humana, material, mas também desta própria idealização. Ao reconstituir por meio de um diálogo imaginário a trajetória de humildade e privações de sua mãe e refletir sobre como isso moldou não só a visão de mundo dela, mas também a sua própria, Fábio de Melo escancara com crueza dos sentimentos, mais como filho do que como sacerdote, suas impressões sobre a fé e o amor, o ressentimento e as dores, as alegrias e crueldades de uma vida. É uma reflexão poderosa e comovente sobre a passagem do tempo e a finitude, uma obra capaz de sensibilizar e tocar a todos.


“Esqueça-se do que dela você já sabe, do que dela você já entendeu.

Veja a sua senhora como quem se dispõe ao detalhismo de uma pintura de Caravaggio. Leia as suas linhas como quem lê uma minuciosa descrição de Marcel Proust.

Faça como o personagem que andou em busca do tempo perdido. Molhe a madeleine no café com leite e viaje pelos caminhos que a reminiscência lhe sugerir.

Depois retorne, abrace a memória já perdoada, permita-se o choro que lava o passado nas águas do presente. E, já estando em perfeito acordo com as dores que colocam neblina sobre a lâmina dos olhos, veja como é linda a sua mãe.”


RESENHA

A vida é cruel, Ana Maria: Diálogos imaginários com minha mãe é um livro do padre e escritor Fábio de Melo, publicado pela editora Record em 2023. Neste livro, o autor compartilha sua experiência de luto pela morte de sua mãe, Ana Maria, em 2019, e reconstrói sua relação com ela por meio de conversas imaginárias.


O livro se inicia com uma citação de Mia Couto: “Mãe, nascerás sempre na pedra em que te escuto: a tua ausência, meu luto, teu corpo para sempre insepulto.” O poema transmite uma profunda dor e saudade pela perda da mãe. O eu lírico expressa que, apesar de sua mãe ter falecido, ela continuará sempre presente em sua vida, como uma pedra em que ele a escuta. A ausência da mãe é comparada ao luto eterno do eu lírico, que sente falta de seu corpo físico não ser mais presente, como se estivesse insepulto. Através dessas imagens, o poema tenta transmitir a intensidade da saudade e do vazio deixados pela mãe que se foi.


O livro é um relato emocionante e sincero, que revela os sentimentos mais profundos do autor sobre espiritualidade, religião, permanência, fé e amor, e também sobre a vida e seu legado. O autor mostra como sua mãe foi uma mulher humilde, que enfrentou muitas privações e dificuldades, mas que nunca perdeu a esperança e a alegria. Ele também reflete sobre como a visão de mundo de sua mãe influenciou a sua própria, e como ele teve que lidar com o ressentimento, as dores, as alegrias e crueldades de uma vida.


O livro é uma reflexão poderosa e comovente sobre a passagem do tempo e a finitude, uma obra capaz de sensibilizar e tocar a todos. O autor usa uma linguagem poética e lírica, que remete a obras de arte e literatura, como as pinturas de Caravaggio e as descrições de Marcel Proust. Ele também usa metáforas e imagens que evocam a memória e a saudade, como a madeleine molhada no café com leite.


A vida é cruel, Ana Maria: Diálogos imaginários com minha mãe é um livro que fala sobre a morte, mas também sobre a vida. É um livro que fala sobre a mãe, mas também sobre o filho. É um livro que fala sobre o luto, mas também sobre o perdão. É um livro que fala sobre a dor, mas também sobre o amor. É um livro que fala sobre a crueldade, mas também sobre a beleza. É um livro que fala sobre a fé, mas também sobre a dúvida. É um livro que fala sobre a humanidade, mas também sobre a divindade. É um livro que fala sobre o autor, mas também sobre o leitor. É um livro que fala sobre nós. 

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