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Resenha: Caco, de Gilberto Mattje

Foto: Arte digital

MATTJE, Gilberto: Caco, Ed. Alvorada, 2009. 134p ISBN: 788562443015

Caco, publicado em 2009 pela Editora Alvorada, é uma obra do psicólogo e acadêmico Gilberto Mattje que se propõe a narrar a trajetória de Samuel, um adolescente apelidado de “Tosco”, em sua luta por sobrevivência e autodescoberta em um contexto de adversidades familiares e sociais. Com 134 páginas, o livro foi adotado pelo Ministério da Educação (MEC) como material pedagógico em um projeto de alfabetização e conscientização, visando orientar jovens sobre escolhas éticas e responsabilidade pessoal. Escrito em linguagem coloquial e estruturado em capítulos cronológicos sem títulos, Caco busca dialogar com adolescentes, oferecendo uma narrativa acessível, mas que, sob uma análise crítica, revela limitações estruturais, estilísticas e conceituais que comprometem seu impacto literário e pedagógico. Esta resenha, em tom acadêmico e jornalístico, examina a narrativa, os personagens, o contexto sociocultural, os aspectos técnicos e os temas do livro, questionando sua eficácia como ferramenta educacional e sua relevância no panorama literário contemporâneo.

Caco acompanha Samuel, um jovem de uma comunidade periférica brasileira, cuja vida é marcada por um lar disfuncional, com uma mãe autoritária e negligente e um pai alcoólatra que abandona a família. Apelidado de “Tosco” — termo que denota rudeza e desajeitamento, segundo o dicionário —, Samuel enfrenta dificuldades de adaptação escolar, conflitos com professores e a influência de más companhias, incluindo envolvimento com cigarro e grupos ligados ao crime. Sua trajetória toma um rumo redentor com a chegada de Jeferson, um professor de educação física que o introduz ao futebol, incutindo valores como disciplina e trabalho em equipe. A narrativa culmina com a transformação de Samuel, que conclui o ensino médio, ingressa em uma universidade federal, torna-se professor e descobre que será pai, simbolizando sua redenção pessoal.

O livro se insere em um contexto de políticas educacionais brasileiras do início dos anos 2000, quando o governo federal, por meio do MEC, investia em materiais didáticos que promovessem reflexão ética e inclusão social. Caco foi concebido como parte de um projeto de alfabetização e conscientização, destinado a adolescentes em vulnerabilidade social. No entanto, sua abordagem linear e moralista levanta questões sobre sua capacidade de engajar leitores jovens em um diálogo crítico, especialmente quando comparado a obras contemporâneas de literatura jovem adulta, como Cidade dos Ossos (Cassandra Clare) ou O Menino do Pijama Listrado (John Boyne), que combinam narrativa envolvente com complexidade temática.

Análise Narrativa

A narrativa de Caco é estruturada em capítulos curtos e enumerados, sem títulos, que seguem uma ordem cronológica rígida, detalhando as experiências de Samuel desde a infância até a idade adulta. A escolha por uma narração em primeira pessoa visa criar empatia, permitindo que o leitor acesse os pensamentos e emoções do protagonista. Contudo, a execução é inconsistente: a voz de Samuel carece de profundidade psicológica, limitando-se a reflexões superficiais que não exploram plenamente as complexidades de sua condição social ou emocional. Por exemplo, passagens que abordam o impacto da violência doméstica são descritas de forma expositiva, sem o peso emocional que poderia enriquecer a narrativa.

O arco narrativo segue um modelo clássico de redenção, com Samuel transitando do caos à ordem por meio do esporte e da figura paterna de Jeferson. Embora funcional, essa estrutura é previsível e carece de originalidade, ecoando clichês de histórias de superação que dominam a literatura didática. A ausência de subtramas ou personagens secundários bem desenvolvidos — como a mãe de Samuel, reduzida a uma caricatura de negligência — limita o escopo do livro, tornando-o unidimensional. Comparado a obras como Capitães da Areia (Jorge Amado), que retrata jovens marginalizados com nuances sociais e políticas, Caco falha em contextualizar o ambiente de Samuel, apresentando um retrato genérico da periferia brasileira.

A linguagem coloquial, embora adequada ao público-alvo adolescente, é excessivamente simplificada, com diálogos que soam artificiais e carecem de autenticidade regional. Frases como “Eu só queria fugir de tudo aquilo” (p. 23) são repetitivas e não capturam a especificidade do dialeto ou da cultura local, o que poderia dar maior verossimilhança à narrativa. Além disso, a ausência de um estilo literário distinto sugere que a prioridade de Mattje foi a mensagem pedagógica, em detrimento da qualidade estética.

Samuel, o protagonista, é o eixo central de Caco, mas sua caracterização é limitada por uma abordagem estereotipada. Descrito como “rude” e “desajeitado”, ele reflete os traumas de sua criação, mas sua evolução é apresentada de forma abrupta, sem uma transição convincente entre o adolescente rebelde e o adulto responsável. Momentos de introspecção, como quando reflete sobre a influência de seu pai alcoólatra, são promissores, mas subdesenvolvidos, reduzindo o personagem a um veículo para a moral da história: a transformação é possível por meio da disciplina.

Jeferson, o professor de educação física, é a figura catalisadora da mudança, mas sua construção é idealizada, beirando o arquétipo do “salvador”. Sua backstory, que revela um passado de envolvimento com drogas, é introduzida tardiamente e explorada de forma superficial, servindo apenas como um espelho para Samuel. Personagens secundários, como a mãe e os amigos de Samuel, carecem de profundidade, funcionando como estereótipos (a mãe negligente, o amigo criminoso) que reforçam a narrativa moralista sem oferecer complexidade.

A ausência de personagens femininos significativos é uma falha notável. A mãe de Samuel é retratada de forma unidimensional, sem explorar suas motivações ou contexto, o que reflete uma visão reducionista das dinâmicas familiares. Essa limitação compromete a relevância do livro em um contexto educacional que valoriza a diversidade de perspectivas.

A edição de Caco pela Alvorada é modesta, com ilustrações digitais que, embora coloridas, são genéricas e não agregam valor à narrativa. A tipografia e o layout são funcionais, mas a ausência de elementos gráficos que dialoguem com o texto, como mapas ou esboços do ambiente de Samuel, limita o apelo visual para leitores jovens. 

A linguagem, embora acessível, é monótona, com repetições de estruturas frasais e vocabulário limitado. A escolha por uma narração em primeira pessoa não é plenamente aproveitada, pois os monólogos internos de Samuel carecem de sofisticação psicológica. A ausência de títulos nos capítulos, embora intencional para manter a simplicidade, resulta em uma estrutura que parece fragmentada, dificultando a identificação de momentos-chave na narrativa.

Como psicólogo e mestre em Psicologia Social, Mattje imbui Caco com uma perspectiva clínica, enfatizando a influência do ambiente familiar na formação da personalidade. O livro explora temas como resiliência, autocontrole e o impacto de traumas infantis, alinhando-se com teorias behavioristas e psicanalíticas que destacam a reprodução de comportamentos aprendidos. A interação entre Samuel e Jeferson, por exemplo, reflete a importância de figuras de autoridade positivas, um conceito respaldado por estudos de psicologia do desenvolvimento, como os de John Bowlby sobre apego.

No entanto, a abordagem psicológica é excessivamente didática, com diálogos que parecem extraídos de manuais de autoajuda. Frases como “Você pode mudar se tomar o controle da sua vida” (p. 89) são diretas, mas carecem de sutileza, alienando leitores que buscam uma reflexão mais profunda. Além disso, o livro ignora fatores estruturais, como desigualdade social e racismo, que moldam a realidade de jovens periféricos, optando por uma narrativa individualista que atribui a redenção exclusivamente à força de vontade.

O tema da educação, tanto formal quanto informal, é central, mas tratado de forma simplista. O esporte, representado pelo futebol, é apresentado como uma solução quase mágica, ignorando as barreiras sistêmicas que muitos jovens enfrentam no acesso a oportunidades educacionais. Essa visão otimista contrasta com análises sociológicas, como as de Pierre Bourdieu, que destacam o papel do capital cultural na mobilidade social.

Caco foi concebido em um momento de expansão das políticas educacionais no Brasil, com programas como o Bolsa Família e o ProUni visando reduzir desigualdades. Sua adoção pelo MEC reflete a demanda por materiais que promovam valores éticos e incentivem a permanência escolar. No entanto, a escolha de um texto tão convencional levanta questões sobre a eficácia de abordagens moralistas em contextos educacionais diversos. Obras como Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus), que oferecem uma perspectiva mais crua e estrutural da marginalização, poderiam complementar ou mesmo substituir Caco em currículos escolares.

A crítica ao ambiente familiar disfuncional é válida, mas carece de uma análise interseccional que considere gênero, raça e classe. A representação da mãe de Samuel, por exemplo, reforça estereótipos de mulheres periféricas como irresponsáveis, ignorando as pressões socioeconômicas que moldam suas escolhas. Essa limitação compromete o potencial do livro como ferramenta de conscientização, especialmente em um Brasil marcado por desigualdades estruturais.

Caco é uma tentativa louvável de abordar os desafios enfrentados por adolescentes em contextos adversos, mas suas limitações narrativas, estilísticas e conceituais restringem seu impacto. A abordagem psicológica de Mattje é clara, mas excessivamente didática, enquanto a narrativa linear e os personagens estereotipados carecem de profundidade. Como ferramenta pedagógica, o livro oferece lições valiosas sobre resiliência, mas falha em engajar leitores jovens ou promover uma reflexão crítica sobre questões estruturais. A segunda parte desta resenha examinará o impacto do livro no âmbito educacional, sua recepção crítica, as controvérsias geradas e seu lugar no campo da literatura jovem adulta brasileira.

Impacto Educacional

A adoção de Caco pelo Ministério da Educação (MEC) como parte de um projeto de alfabetização e conscientização reflete a tentativa do governo brasileiro, na década de 2000, de integrar literatura e formação ética no currículo escolar. O livro foi distribuído em escolas públicas, especialmente para alunos do ensino fundamental e médio em comunidades vulneráveis, com o objetivo de promover reflexões sobre escolhas pessoais e responsabilidade. A narrativa de Samuel, que supera adversidades por meio da disciplina e do esporte, foi vista como um modelo acessível para jovens em contextos de marginalização, alinhando-se com políticas de inclusão social da época, como o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

No entanto, o impacto pedagógico de Caco é questionável. Estudos sobre literatura escolar, como os de Regina Zilberman (2012), sugerem que textos excessivamente didáticos, como Caco, podem alienar leitores jovens, que preferem narrativas com maior complexidade emocional e estilística. A linguagem simplificada e a moral explícita do livro — exemplificada por frases como “Você pode mudar se tomar o controle da sua vida” (p. 89) — reduzem o potencial de engajamento crítico, transformando a leitura em um exercício de assimilação de valores, em vez de um diálogo reflexivo. Comparado a obras como O Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcelos), que equilibra acessibilidade e profundidade, Caco carece da sofisticação necessária para inspirar debates significativos em sala de aula.

Além disso, a ênfase no esporte como solução para problemas sociais ignora as barreiras estruturais que limitam o acesso de jovens periféricos a oportunidades educacionais e profissionais. Pesquisas de sociólogos como Jessé Souza (2018) destacam que a mobilidade social no Brasil depende de fatores como capital cultural e políticas públicas, aspectos que Caco negligencia em favor de uma narrativa individualista. Professores que utilizaram o livro, conforme relatos em fóruns educacionais, observaram que, embora os alunos se identificassem com a história de Samuel, muitos questionaram a viabilidade de sua transformação em contextos reais, onde o acesso a figuras como Jeferson é raro.

Recepção Crítica

A recepção crítica de Caco é limitada, refletindo seu status como uma obra de nicho voltada para o uso escolar. Publicações acadêmicas e jornalísticas sobre o livro são escassas, mas as poucas análises disponíveis, como resenhas em blogs educacionais e artigos em revistas pedagógicas, oferecem uma visão mista. Por um lado, o livro é elogiado por sua acessibilidade e por abordar temas relevantes, como o impacto da violência doméstica na formação da personalidade. Um artigo na Revista Educação (2010) destacou a “intenção louvável” de Mattje em dialogar com adolescentes em vulnerabilidade, enfatizando o potencial do livro como ferramenta de reflexão ética.

Por outro lado, críticos apontam a falta de ambição literária e a abordagem reducionista. Em um ensaio publicado no Jornal do Professor (2011), a pesquisadora Maria Helena Santos criticou a narrativa por sua “visão simplista da realidade social”, argumentando que a transformação de Samuel é “irrealista” e desconsidera fatores estruturais como pobreza e desigualdade. A ausência de um estilo literário distinto também foi alvo de críticas, com alguns revisores comparando Caco desfavoravelmente a obras como Bom-Crioulo (Adolfo Caminha), que combina narrativa acessível com crítica social robusta.

A recepção entre alunos, conforme relatos de professores, varia. Alguns jovens apreciam a linguagem coloquial e a identificação com Samuel, enquanto outros consideram a história previsível e a moral forçada. Essa dicotomia sugere que, embora Caco tenha um apelo inicial, sua incapacidade de oferecer camadas narrativas mais profundas limita sua ressonância a longo prazo.

Embora Caco não tenha gerado controvérsias públicas significativas, sua representação de questões sociais levanta preocupações éticas sob uma lente crítica. A caracterização da mãe de Samuel como uma figura negligente e promíscua reforça estereótipos de gênero que associam mulheres periféricas à irresponsabilidade. Essa abordagem ignora o contexto socioeconômico que molda as escolhas de mães solo, como destacado por estudos feministas de autoras como Patricia Hill Collins (2000), que enfatizam a interseccionalidade de gênero, raça e classe.

Além disso, a narrativa perpetua uma visão meritocrática que atribui a transformação de Samuel exclusivamente à sua força de vontade, com o esporte e a figura de Jeferson como catalisadores. Essa perspectiva é problemática em um Brasil onde, segundo o IBGE (2023), 70% dos jovens de comunidades periféricas enfrentam barreiras estruturais que dificultam o acesso à educação e ao mercado de trabalho. Ao omitir essas questões, Caco corre o risco de culpar implicitamente os jovens por suas dificuldades, em vez de criticar sistemas opressivos.

Outra controvérsia potencial reside na abordagem psicológica do livro. Como psicólogo, Mattje enfatiza a autorreflexão e o autocontrole, mas sua aplicação é superficial, com diálogos que simplificam conceitos complexos, como o condicionamento comportamental. Essa redução pode ser interpretada como uma tentativa de “disciplinar” adolescentes, alinhando-se com críticas de Michel Foucault (1975) sobre o uso da educação como ferramenta de controle social. Em um contexto escolar, essa abordagem pode alienar alunos que percebem o livro como uma lição moralista, em vez de uma narrativa empática.

Contexto Literário

No campo da literatura jovem adulta brasileira, Caco ocupa um espaço periférico, eclipsado por obras mais ambiciosas e estilisticamente ricas. Na década de 2000, autores como Ana Maria Machado e Lygia Bojunga ofereciam narrativas que combinavam acessibilidade com profundidade psicológica e social, enquanto Caco se limita a uma função utilitária. Comparado a Feliz Ano Velho (Marcelo Rubens Paiva), que também aborda superação, mas com uma voz autêntica e um contexto histórico robusto, Caco parece formulaico, carecendo de uma identidade literária distinta.

A nível internacional, o livro enfrenta ainda mais desafios. Obras como The Hate U Give (Angie Thomas), que aborda marginalização com uma perspectiva interseccional, oferecem um contraponto à abordagem individualista de Caco. A escolha de Mattje por uma narrativa linear e moralista reflete uma tendência conservadora na literatura didática brasileira, que prioriza mensagens explícitas em detrimento da complexidade narrativa.

Relevância 

Em 2025, Caco enfrenta dificuldades para manter sua relevância em um contexto educacional e literário transformado. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) enfatiza a formação crítica e a valorização da diversidade, exigindo textos que promovam reflexões sobre questões estruturais, como racismo, gênero e desigualdade. Caco, com sua visão meritocrática e representações estereotipadas, não atende plenamente a esses critérios, sendo superado por obras como Torto Arado (Itamar Vieira Junior), que combina narrativa acessível com crítica social.

A ênfase no esporte como ferramenta de redenção também é menos convincente em um Brasil onde programas esportivos comunitários enfrentam cortes de financiamento, conforme relatado pela Folha de S.Paulo (2024). Além disso, o público jovem de hoje, influenciado por mídias digitais e narrativas transmídia, espera histórias com maior dinamismo e representatividade, algo que Caco não oferece.

No entanto, o livro ainda pode ser útil em contextos específicos, como oficinas de leitura para adolescentes em situação de risco, onde sua linguagem simples e mensagem de esperança podem ressoar. Professores que utilizam Caco como ferramenta pedagógica, conforme sugerido por Mattje, devem complementá-lo com textos que abordem questões estruturais, garantindo um diálogo mais amplo e crítico.

Caco é uma obra com intenções nobres, mas cuja execução é prejudicada por uma narrativa simplista, personagens estereotipados e uma abordagem moralista que ignora as complexidades da realidade social brasileira. Como ferramenta educacional, o livro oferece lições sobre resiliência, mas falha em engajar leitores jovens ou promover uma reflexão crítica sobre questões estruturais. Sua relevância em 2025 é limitada, eclipsada por obras que combinam acessibilidade com profundidade e diversidade.

O legado de Caco reside em sua tentativa de dialogar com adolescentes em vulnerabilidade, mas seu impacto é restrito por uma visão conservadora e individualista. Em um Brasil que exige narrativas inclusivas e transformadoras, Caco serve mais como um estudo de caso sobre os desafios da literatura didática do que como uma referência literária duradoura.

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