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5 Poemas de Sanchez

Sanchez, poeta paulistano talentoso e promissor, vem conquistando seu espaço na cena literária brasileira com seus versos visceralmente sinceros. Com poemas publicados em renomadas revistas literárias do país e participação na equipe de poetas do portal Fazia Poesia, Sanchez cativa seus leitores com sua sensibilidade e sua habilidade única de transmitir emoções através das palavras. Em seu livro de estreia, "dentrofora", lançado em 2023 pela editora Laranja Original, o autor nos presenteia com um mergulho profundo em sua alma poética, revelando a força e a beleza de sua escrita. Confira a seguir alguns dos poemas que compõem essa obra marcante.


estalo bissexto

existe um ponto cego em nossa cegueira,

clareira na geleia espessa de

cada dia:

encontrar aquilo no limiar

entre o livre

e o inútil.

compromissos imaginários circulados

no calendário do ano passado, futuro

confinado a folhas amareladas, futuro

realizado no passado, futuro que, mesmo

assim, não deixa de ser futuro.

o uso não usual, a função não funcional,

a criação – pois criar é sempre se prestar

a fazer o que não presta:

fatiar o fato após o fato,

a foi-se na folhinha.



esconde-esconde

pureza do eu?

eu puramente cindido.

o eu cria a si mesmo

ensimesmado no olhar do outro.

pureza de língua?

língua puramente variada.

o sentido fixado à página

asfixiado pela palavra.

pureza da arte?

arte puramente refratária.

o arquétipo canonizado

destruindo todo o cânone.

pureza?

mas pra que coisa pura se pureza não para

em lugar nenhum?



oásis

entre a memória e o poema,

papel.

traços se alvoroçam sobre a

página intacta buscando a

centelha do agora quando

já é tempo de depois.

frenético delírio sígnico.

traças se esbarram ao redor da

ideia luminosa criando uma

camada entre o ideal memoriado

e o possível corporizado.

frustrante metamorfose fabricada.

entre a memória e o poema,

deserto.

carcaças se acumulam ao longo

da areia erguendo o emblema

ambíguo de morte-alimento e

vida-sanguessuga.

decadente memória decomposta.

carcará se esconde na duna

aguardando a morte da presa

que definha e busca a

salvação.

derradeiro espetáculo cadavérico.

entre a memória e o poema,

muro.

escrever é esmurrar os tijolos.



fantasmagoria

um cheiro que não é

mais cheiro, é lembrança

enlameada.

um lugar que não é

mais lugar, é fotografia

despedaçada.

cheiro seu, lugar ao

seu lado, absurdo:

coisa que é coisa

deixando de ser coisa

por ter sido coisa com

você.

de supetão,

soterrada

em silêncios,

sua sombra

é sublimada.

você

se

tornou

resquício.



falsa coral

língua traiçoeira conduz ao

tropeço em cada duplo sentido.

língua escorregadia atrai para o

beijo com os dentes escondidos.

língua de cobra

bifurcada

entre fala e

carne,

duas línguas em comunhão

na palavra língua.

guardo a palavra aguardando

a picada como quem já

mordeu a língua e se

viciou no veneno.

toda língua é língua de cobra.

Resenha: A forma do fogo, de Felipe Rodrigues

Foto: Arte digital

A forma do fogo é um livro de poesias escrito pelo poeta e advogado Felipe Rodrigues. A obra se inicia diretamente com o sumário, essa escolha pessoal do autor em não utilizar uma introdução, prólogo, nota de abertura ou semelhante é uma característica distinta que evoca no leitor a necessidade de aprofundar nos escritos de maneira mais verossímil, com mais afinco, o que denota a possibilidade de andar pelos degraus dos sentimentos presentes em cada linha de forma mais nivelada, possibilitando uma compreensão mais assertiva dos fatos, o que claro, torna a leitura mais instigante, causando um sentimento de inovação do contexto em relação as expectativas dos caminhos descritos e propostos pelo autor. Outra análise possível é o fato do fogo não ser contido, controlado, por suas chamas ascenderem de forma instantânea dentro de seus limites da existência, ardendo. Este arder das chamas provoca uma reflexão latente acerca dos temas abordados, como se o medo, angústia e os demais sentimentos queimassem o interlocutor, em outras palavras, é um texto sobre tudo o que destrói o ser humano, como as chamas de um incêndio.


A obra consta com 95 poemas ao todo, um marco em uma publicação deste gênero, o que torna o mix de assuntos laborados mais diverso, tornando a esfera da leitura uma experiência agradável para todos os públicos. Estruturado em estrofes com ora rimas, ora formas fixas, a obra possui características descritivas e estruturais únicas que modificam-se a cada novo poema, revelando desta forma, uma nova estética de se reinventar por meio de características singulares entre as emoções destacadas.


Analisando temas como sentimentalismo, amor, esperança, solidão, ânsia, âmago e outros tópicos, o autor nos convida a refletir acerca de nossa existência e de tudo o que cerca nosso redor, como descrito no poema abaixo:


a doença da liberdade

Ansiedade é a doença da

Liberdade.

 

Menos infeliz quem,

Não sabendo que não pode ser,

A não ser, infeliz

Do que quem a crê e a vê

Em todo lugar, a todo instante

E perde-se no oásis de escolhas

Em meio ao deserto de sentido,

Ficando triste, doente, ansiosa

Esquecendo o que, lá no íntimo único,

Era e queria de verdade.

 

Multiverso, metaverso,

Relacionamentos abertos,

Fé, a falta ou excesso de Deus ou heróis,

Imagens e governantes,

Ideias, discursos e narrativas

Contra "eles",

Sobretudo vidas e coisas tão longe de mim!

 

Tantas formas de vida para escolher

No tempo tão curto de viver!

 

Ah, liberdade, liberdade...

Quando quase tudo é possível

Mas quase nada convém.

O poema aborda a liberdade como uma fonte de ansiedade e doença na sociedade contemporânea. Ele reflete sobre a ideia de que, apesar de termos a liberdade de escolha em diversos aspectos de nossas vidas, essa liberdade pode nos levar a uma sensação de desorientação, falta de sentido e insatisfação, destacando a pressão da sociedade moderna para fazer escolhas em todas as áreas da vida, desde relacionamentos até crenças religiosas e políticas. Isso cria um sentimento de estar perdido em meio a tantas opções e expectativas, levando à infelicidade e ansiedade.

A liberdade é retratada como algo paradoxal, em que quase tudo é possível, mas quase nada realmente é satisfatório. Isso sugere uma reflexão sobre as consequências da liberdade excessiva, levando as pessoas a perderem de vista suas verdadeiras vontades e desejos.

Dessa forma, o poema aborda a liberdade sob uma perspectiva sociológica, explorando como as pressões sociais e as expectativas da sociedade contemporânea podem afetar nosso senso de identidade, propósito e bem-estar. Ele levanta questões sobre como lidamos com a liberdade e as escolhas que enfrentamos, e como isso pode contribuir para sentimentos de descontentamento e doença.


Seguindo com os poemas:


a dança das estrelas

O meu saber dos astros não alcança

O imprevisível andar das tuas cenas

O acerto e o erro em ser, com os pés na dança

Do que é teu e somente teu, apenas.

 

Contigo o mau futuro não me cansa

Quando envolvido em tuas mil morenas

O meu saber dos astros tem confiança

No pleno ajuste das coisas terrenas...

 

Por mais que os astros girem sobre nós

Contando confidências, e tramando

O alegre e o triste na pequena noz

 

Satélite inexato, eu sempre aéreo

Ciência ou religião... Nunca a alcançando

Flor astral, esotérico mistério.


Sob uma perspectiva sociológica ao explorar conceitos como individualidade, liberdade e destino, o poeta descreve a dança das estrelas como algo imprevisível e incontrolável, refletindo a ideia de que cada indivíduo tem seu próprio destino e caminho a seguir. Além disso, o poema sugere que o conhecimento dos astros pode oferecer alguma segurança, mas que, no final das contas, somos responsáveis por nossas próprias ações e escolhas. Isso pode ser interpretado como uma crítica à ideia de determinismo social ou à influência de forças externas sobre nossas vidas. Ao falar sobre o envolvimento com "mil morenas" e o aclaramento das coisas terrenas, o poema também pode ser interpretado como um comentário sobre a interação entre o indivíduo e a sociedade. A ideia de estar imerso em um contexto social, mas confiante em suas próprias decisões, sugere uma abordagem individualista em relação à vida. Em última análise, o poema aborda questões de destino, liberdade, confiança e mistério, que são temas sociais e filosóficos importantes que permeiam a vida de todos nós.


silêncio

Por muito tempo temi a solidão

E refugiei-me, como vocês,

No incessante e colorido mundo exterior

Onde, ansioso,

Refletia cores alheias para o vazio de meu coração,

Coroava meu céu com brilhantes, inseguras estrelas

Enquanto tempo era-me roubado

Para que eu me esquecesse de mim.

 

Mas de tanto estar ausente

Perdi o medo da solidão - ou da liberdade,

Do julgamento também,

E agora reconheço-me em mim, em silêncio,

Como reencontrando um velho amigo desencontrado

Na roda do tempo, no sem sentido da vida,

E comigo sou e comigo estou

Na mais serena e autêntica paz.

O poema “Silêncio” pode ser interpretado sob uma perspectiva como uma reflexão sobre a condição humana na sociedade moderna. O eu lírico expressa inicialmente um medo da solidão, que é uma experiência comum em um mundo onde as relações sociais podem ser superficiais e efêmeras. A busca por refúgio no “mundo exterior” e a tentativa de se encaixar, refletindo “cores alheias”, pode ser vista como uma crítica à conformidade social e à perda da individualidade.

A solidão, muitas vezes vista negativamente, é reavaliada pelo poeta como um espaço de liberdade e autoconhecimento. A ausência de julgamento externo permite uma introspecção profunda, onde o eu lírico encontra paz e autenticidade. Isso pode ser interpretado como um comentário sobre a importância da autonomia e da identidade pessoal em uma sociedade que valoriza a extroversão e o desempenho social.

O “reencontro com um velho amigo desencontrado” simboliza a reconexão com a essência do ser, muitas vezes perdida na “roda do tempo” e no caos da vida cotidiana. O poema termina com uma nota de serenidade, sugerindo que a verdadeira paz vem de estar em harmonia consigo mesmo, além das expectativas e pressões sociais.


O PERSEGUISSONHO


Se tenho sonhos?

Não sei se os tenho ainda,

Mas sei que os tinha...

Se persigo meus sonhos?

Persigo, sim,

Perseguissonho de outras pessoas.

Mas não sei se são reais

- Esses sonhos e essas pessoas -

Porque eu mesmo não sonho

E não tenho nada de absolutamente tão claro

A viver e morrer por, a sonhar!

- Tenho sim objetivos:

Não sou preguiçoso, apenas não sou sonhador...

A vontade vacila, sempre.

Não consigo “Viver o presente...”

Nem uns sonhos próprios, inexistentes.

Mas gostaria de reencontrá-los

Assim, como por acaso,

E que me perdoassem...

Porque o perseguissonho persegue-me

Numa sensação de desperdício

Do tempo e da força que ainda me restam

Para viver e só viver,

Mas nada sonhar...


O poema “O PERSEGUISSONHO” apresenta uma reflexão profunda sobre a condição humana na sociedade contemporânea, especialmente no que tange à perseguição de sonhos e objetivos. Do ponto de vista, o poema pode ser interpretado como uma crítica à pressão social para que se tenha ambições e sonhos claramente definidos, o que pode levar a um sentimento de inadequação e perda de identidade.


O eu poeta revela uma luta interna entre a expectativa social de ter sonhos e a realidade de não possuir nenhum que seja genuinamente seu. A sociedade muitas vezes valoriza aqueles que têm grandes aspirações e desvaloriza os que não se encaixam nesse ideal. Isso pode gerar uma sensação de alienação e de estar vivendo através dos sonhos de outros, o que o poeta chama de “Perseguissonho”.


A vontade que “vacila, sempre” pode ser vista como a incerteza e a inconstância que muitos enfrentam ao tentar se conformar com as normas sociais. A dificuldade em “Viver o presente” pode refletir a ansiedade e a pressão para planejar o futuro, muitas vezes à custa de apreciar o momento atual.


O desejo de reencontrar seus sonhos “como por acaso” sugere uma esperança de redescobrir uma paixão ou propósito perdido, livre das imposições sociais. O poema termina com uma expressão de resignação, onde o eu lírico aceita a perseguição dos sonhos como uma parte inevitável da vida, mesmo que isso signifique não ter sonhos próprios.


A obra "A forma do fogo" de Felipe Rodrigues é uma verdadeira obra-prima da poesia contemporânea. Com uma linguagem poética única e uma profundidade emocional que envolve o leitor, o autor nos convida a refletir sobre temas universais como liberdade, solidão, amor e identidade. Cada poema é uma janela para o mundo interior do poeta, revelando uma sensibilidade única e uma capacidade de expressão que toca o coração de quem lê.


Os temas abordados nos poemas, como ansiedade, liberdade, solidão e busca por identidade, são extremamente relevantes para a sociedade contemporânea, refletindo as angústias e as contradições do mundo moderno. A maneira como o autor explora esses temas, com uma sensibilidade aguçada e uma linguagem poética envolvente, faz com que o leitor se identifique e se emocione com as palavras do poeta.


Em suma, "A forma do fogo" é uma obra que transcende as barreiras do tempo e do espaço, tocando o âmago do leitor com sua beleza e profundidade. Felipe Rodrigues é uma voz poética que merece ser ouvida e apreciada, e sua obra é um verdadeiro tesouro da literatura contemporânea. Recomendo fortemente a leitura deste livro a todos os amantes da poesia e da beleza das palavras.

Resenha: Os anos, de Annie Ernaux

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Uma das principais escritoras francesas da atualidade, Annie Ernaux, empreende neste livro a ambiciosa e bem-sucedida tarefa de escrever uma autobiografia impessoal. Com ousadia e precisão estilística, ela lança mão de um sujeito coletivo e indeterminado, que ocupa o lugar do eu para dar luz a um novo gênero literário, no qual recordações pessoais se mesclam à grande História, numa evocação do tempo única. Nascida em 1940, em uma pequena cidade no interior da França, Ernaux pertence a uma geração que veio ao mundo tarde demais para se lembrar da guerra, mas que foi receptora imediata das recordações e mitologias familiares daquele tempo. Uma geração que nasceu cedo demais para estar à frente de Maio de 68, mas que ainda assim viu naquelas manifestações a possibilidade dos mais jovens de uma liberdade que por pouco não pode gozar. Finalista do International Booker Prize e vencedor dos prêmios Renaudot na França e Strega na Itália, Os anos é uma meditação filosófica poderosa e uma saborosa crônica de seu tempo. Pela prosa original de Ernaux, vemos passar seis décadas de acontecimentos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução dos costumes, o nascimento da sociedade de consumo, as principais eleições presidenciais francesas, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas, signo sob o qual vivemos até hoje.


RESENHA


Em 'os anos', Ernaux utiliza suas memórias e fotografias pessoais para evocar não apenas sua própria vida, mas também o contexto histórico em que ela está inserida. Ela discute a influência dos grandes acontecimentos históricos na formação das identidades individuais e coletivas ao longo do tempo. Além disso, reflete sobre a importância dos objetos, gestos e hábitos do cotidiano na transmissão da memória e na construção da História. A obra também aborda as transformações sociais, culturais e tecnológicas ao longo do século XX e como elas impactam a maneira como as pessoas se relacionam com o passado e se projetam para o futuro.

Ao elaborar uma construção grandiosa, Ernaux, nos convida à refletir msobre o peso da história atual sobre a vida individual e coletiva, com o poder das memórias, o apagamento histórico das emoções, a centralidade do indivíduo em relação ao tempo e o exercício cunhado das experiências vividas. Comunismo, pós-guerra, eleições e demais acontecimentos históricos demarcam um caminho sem volta: o da vivência. Em uma biografia impessoal, a autora transmite em suas linhas uma série de raciocínios lógicos para eternizar suas memórias de alguma forma, certa, que, o tempo o apagará inevitavelmente como em "todas as imagens vão desaparecer (p.7) e essa é a única certeza que temos, como diz Tchékhov na introdução da obra em "seremos esquecidos [...] pode parecer também que esta vida de hoje à qual nos agarramos seja um dia considerada estranha".


Para Ernaux, as fotografias são elementos centrais na construção da narrativa de Os Anos, como expresso em diversos pontos, sobretudo, "é uma foto sépia, em formato oval, colada dentro de uma caderneta com a borda dourada, protegida por uma folha transparente com relevo" (p.15). Ela utiliza essas imagens e eventos comunitários para representar a ideia de coletividade e experiência partilhada. O livro não é apenas a história pessoal de Ernaux, mas sim um meio de explorar preocupações mais amplas e encontrar pontos em comum com os leitores. O objetivo do trabalho é abordar a realidade de forma fiel, mesmo sabendo que a influência das nossas mentes, crenças e percepções sempre estará presente. Na sociedade contemporânea, a memória está sendo apagada devido à valorização do presente e ao desnivelamento do registro do agora com o passado. As fotografias se tornam cada vez mais importantes, permitindo manter os seres vivos distantes e driblar o passado, que se conserva nos álbuns e prateleiras. A ilusão de domínio do passado e permanência no futuro dificulta a consciência do presente, essencial para a formação de memórias. As coisas tomam o lugar dos momentos, e as pessoas são dominadas pela duração dos objetos.


O livro Os Anos está localizado na fronteira entre literatura, história e sociologia. A experiência de leitura é como encontrar  álbuns de fotos antigas da família, desgastados e amarelados, com algumas palavras escritas atrás. Não é uma leitura fácil, pois não possui enredo, clímax, lição de moral ou humor. São os detalhes íntimos da vida francesa que ecoam na mente do leitor. Assim sendo, obra de Ernaux nos convida a refletir sobre a passagem do tempo e a importância das memórias na construção de nossa identidade. É um convite para olharmos para trás, para lembrarmos quem éramos, quem somos e quem queremos nos tornar. É uma contemplação sobre a efemeridade da vida e a constância do tempo, que não para para ninguém. A autora nos mostra que, assim como as fotografias vão desaparecer com o tempo, também nós vamos desaparecer, seremos esquecidos. Mas, ao mesmo tempo, somos eternizados nas memórias daqueles que nos conheceram, nos amaram, compartilharam momentos conosco.

Nas reuniões de família na época do pós-guerra, naquela lentidão interminável das refeições, alguma coisa vinha do nada e assumia uma forma: era o tempo já começado. Às vezes, os pais pareciam presos nele quando esqueciam de nos responder, os olhos perdidos em um tempo em que não estávamos, em que nunca estaremos, o tempo de antes. As vozes dos convidados se misturavam para compor a grande narrativa dos acontecimentos coletivos, os quais, pouco a pouco, passamos a acreditar que tínhamos vivido.

Os Anos não é apenas um livro sobre uma mulher francesa, é sobre todos nós, sobre a humanidade, Ernaux traduz em sua frases, a princípio, soltas e desconexas, uma série de lembranças fotográficas acerca de sua vida e da passagem do tempo. Suas reflexões evocam o âmago daqueles que se atrevem a percorrê-lo, ao passo de que é também sobre os eventos históricos que moldaram nossa vida, as experiências que nos marcaram, as transformações que passamos ao longo dos anos. É sobre a fragilidade da existência e a força das lembranças. Ernaux nos lembra que, assim como as fotografias e as refeições compartilhadas, somos seres sociais, ligados uns aos outros por laços invisíveis, mas poderosos. E é a partir dessas relações que construímos nossa história, nossa identidade, nossa humanidade.


Neste livro, ao abordar a citação de fotos em memórias é muitas vezes usada para adicionar profundidade e autenticidade à narrativa. As fotos podem ser descritas de forma detalhada, destacando elementos específicos que são relevantes para a passagem do tempo. As imagens também podem ser usadas como ponto de partida para reflexões sobre o passado, evocando memórias e emoções que complementam o texto. Além disso, a inclusão de fotos em memórias pode ajudar a criar uma conexão mais emocional entre o leitor e o narrador, aumentando o impacto da história contada.


Duas outras fotos pequenas com as bordas serrilhadas, provavelmente do mesmo ano, mostram a mesma criança, só que mais magra,  com um vestido de babado e mangas bufantes. Na primeira, ela se aninha com uma cara de sapeca junto a uma mulher encorpada, com um vestido listrado e cabelos presos no alto em grandes rolos. Na outra foto, a criança está com a mão esquerda erguida e fechada e a direita de mãos dadas co um homem alto, de camisa clara e calça vinco, o ar despreocupado. As duas fotos foram tiradas do mesmo dia, em um pátio com paralelepípedos, na frente de um muro baixo cheio de flores no topo. Por cima das cabeças, um varal com um prendedor de roupas que ficou esquecido (p.17)


Ernaux delineia suas memórias referindo à si própria em terceira pessoa, tecendo sob o fio histórico dos acontecimento como uma observadora consciente, este elemento tensiona a relação da memória afetiva da autora em relação ao amadurecimento das ideias dos acontecimentos de sua vida através da extensão do tempo, em um árduo processo de amadurecimento em relação à família, que, como podemos observar é trabalhado pela autora com cisão em outras obras com caráter biográfico, bem como na obra 'uma mulher', onde ela se debruça à explicitar em linhas gerais as memórias ao lado de sua mãe, uma mulher portadora de Alzheimer, onde se relaciona a importância da memória e das lembranças vivídas acerca das experiências da vida, e aqui, este recurso não é diferente. Transformando suas memórias em uma narrativa impessoal, ela convida o leitor à refletir sobre suas próprias memórias e tensões pessoais, causando um estranhamento a cada linha lida de forma única. 


Os anos como estudante já não são objetos de desejo nostálgico. Vê esses momentos como uma espécie de emburguesamento intelectual, de ruptura com o mundo de origem. A memória, que era romântica, passa a ser crítica. Com frequência, ela se lembra de cenas da infância, a mãe gritando um dia você vai cuspir no prato que comeu, os rapazes andando de vespa depois da missa, ela com a permanente cacheada como na foto do jardim do internato, os deveres de casa em cima da mesa de madeira forrada com uma toalha protetora impermeável engordurada onde o pai "fazia a colação" - as palavras que também voltam como uma pessoa esquecida (...) [(p. 109)]


Ernaux reflete sobre as mudanças na visão das experiências passadas ao longo do tempo, indicando uma evolução pessoal e uma ruptura com as origens, essa abordagem dos conflitos e ressentimentos internos causados pela transição evocam uma nova fase de vida, agora, marcada pela crítica e pela reflexão retratado por meio de retratos familaires sociais que refletem a construção da identidade e a influência do meio ambiente na formação do indivíduo.


Ao ler Os Anos, somos convidados a refletir sobre nossa própria vida, nossas escolhas, nossos caminhos. Somos levados a olhar para trás, para o passado, e para frente, para o futuro. Somos convidados a viver o presente com intensidade, sabendo que um dia seremos esquecidos, mas que nossas memórias, nossas experiências, nossos momentos de felicidade e dor, permanecerão registrados em algum lugar. Este apagamento histórico e emocional de Ernaux nos convida à sentir na pele o fino tecido das emoções elencadas no decorrer da vida. 

Três perguntas rápidas para Claudia Cavalcanti, autora de Avenida Beberibe


Você pode nos dizer o nome de três autores e/ou autoras que influenciam sua forma de escrever?

Herdei de Thomas Mann, humildemente, o gosto pelas frases longas. Já quanto à mistura de texto + fotos, posso citar Katja Petrowskaja, autora de Talvez Esther (e, claro, acima de tudo e de todos, W. G. Sebald). Teria sido influenciada por Maria Stepánova (sobretudo por suas ideias), se tivesse lido Em memória da memória antes de escrever Avenida Beberibe.


Qual a maior saudade que sente do Recife?
Sinto saudade do Recife com meus avós. Sem tantos tubarões, digo, espigões. Saudade também da tapioca de rua.


Fotos digitais ou reveladas?
Na adolescência, tive um laboratório caseiro. Adorava revelar e ampliar minhas fotos (amadoras, mas eu tentava caprichar) tiradas a partir de uma máquina analógica de respeito. Há muitos anos, aderi às fotos feitas no iPhone. Gosto demais, e me esforço para que sigam caprichadas. A resposta é: fotos – analógicas e digitais.

5 Poemas de Vitor Miranda, autor de “Exátomos”

A precisão dos átomos em forma de poesia: conheça o novo livro de Vitor Miranda, "Exátomos". Com uma capa que convida à reflexão, a seleção de poemas aborda a exatidão do universo e questiona o rumo que temos dado às nossas vidas. Em cinco partes distintas, a obra promete atravessar diferentes emoções e provocar sensações únicas. Conheça mais sobre o autor e sua trajetória literária, que inclui contos, músicas e parcerias com renomados artistas. Prepare-se para uma leitura intensa, regada a vinho, músicas e emoções à flor da pele.

Conheça cinco poemas da obra de Vitor Miranda: 

Exátomos


em cada grão

de átomo

exátomos


espaços

entre vãos

onde há

ausência

há plenitude

tudo se completa


na exatidão


dançam átomos

na amplidão



Poema

poema

fóssil sentimento

matéria arqueológica

signo paleolítico

o breu da árvore amazônica

onde dorme o escorpião

pião

seu corpo em giro eterno

esqueleto de sonhos

arcada dentária

de dinossauros

ácido nucleico religião

objeto ausente de átomos

o indizível intocável

que explica

que explode



Antropologia dos átomos


átomos dançam na tua pele

evaporam-se à luz dos olhos


testemunho o milagre da matéria


frente ao horizonte espero bilhões de estrelas

que marcham de encontro à via láctea

unificando a ancestralidade em pó púrpuro


ressignificando o tempo astrológico

e a importância de deus na atração dos átomos


Fotografia

mel à flor da pele escorre pela epiderme

desaguando no epicentro cósmico

onde se dá a sutileza sísmica

vulcânica da matéria

apocalipse do instante

capturando a etérea transfiguração

de tudo que era corpo em antimatéria



Mera

mera flor efêmera

singela dor tamanha

coração estranha

o esmero amor

que arranha o fardo

flor que o tempo

abre e num sopro

3 poemas de Raquel Lopes, autora de “leveza do efêmero”


Raquel Lopes, poeta e escritora nascida em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, Brasil, nos convida a contemplar a beleza da vida em sua mais recente obra "Leveza do Efêmero". Com seu talento único, a autora nos presenteia com poemas que celebram a esperança, a beleza e a efemeridade do tempo. Em meio às dificuldades do cotidiano, Raquel nos lembra da importância de nutrir a esperança em nossos corações e aproveitar cada momento de nossas vidas. Embarque nessa jornada poética e deixe-se envolver pela magia das palavras de Raquel Lopes.

Conheça agora três poemas da obra ''leveza do efêmero'':


A Leveza do Efêmero


Raios de luz 

botões de rosas 

pétalas das flores 

Em tudo ela gosta. 

O cheiro das árvores 

o vento que refresca 

a vida em constante movimento


Transformação

 (a todo momento)


O tempo calmo 

as ondas agitadas

 o mar

 …


Aves migratórias 

animais domésticos 

selvagens 

Com e sem veneno


Um dia ou dois 

sem pressa ou depois 

Um ano a mais 

Mil séculos 

e tudo se refaz. 




Lua Cheia 


Deixa a lua encher 

O meu olhar. 


Deixa a lua bailar 

O meu cantar. 


Anotar nítidas batidas do peito 

Aprender a amar 

Sem qualquer erro. 


Deixa a lua encher 

Clarear meu andar. 


Quero seguir este mar 

Sem ter medo.




Morena Rosa


Morena Rosa, de amor e gotas de orvalho. 

O dia faz tua música uma lira 

na verdade e amor. 

Escrita sobre as águas do destino

que cruzou teu caminho 

traçou as linhas escritas 

no coração das pétalas delicadas de bondade.


Tua cor, Morena Rosa, é a cor que admiro. 

Sorrisos contagiantes estão por aí 

dizendo de ti e de teus olhos mágicos.


Não canses de sonhar em teu mundo fantástico


Para a dor 

                não dês espaço.



5 Poemas de Christian Dancini, autor de “dialeto das nuvens”


O poeta Christian Dancini de Oliveira, natural de São Roque, São Paulo, é uma revelação no cenário da poesia contemporânea. Desde os onze anos de idade, ele se dedica a escrever versos e, aos 22 anos, já tinha dois livros publicados, além de diversos trabalhos em revistas renomadas. Em seu livro Dialeto das Nuvens, o autor nos leva a uma viagem por suas diferentes fases criativas, explorando desde a fragilidade humana até o surrealismo mais profundo. Nesta matéria, vamos conhecer mais sobre esse talentoso poeta e sua obra que nos convida a sentir, mais do que meramente entender.

Conheça cinco poemas presentes na obra dialeto das nuvens:


Coração índigo

Uma andorinha se desprende do teu crepúsculo,

eu vejo agora teus olhos confusos e tristes,

por trás da máscara. Equilibrista em minha aorta.

Um anjo azul e rosa que pousou na ponta da minha

melancolia.



O teu lume.

Deixastes para trás o teu lume

que, palpável, deslizou para dentro

da minha garganta.

Então, eu o engoli: borboletas em meu esôfago,

paz para os meus brônquios, relâmpagos em meu

estômago. O teu lume senta ao lado direito

do verdadeiro amor.


Os caminhos da morte

Há três caminhos a partir da morte: o caminho do alívio,

o caminho do eterno e o caminho do renascimento.

O alívio começa a partir do momento da morte:

já reparou como se alivia a face de um morto? Como

relaxam os músculos? A partir daí, começa o eterno:

como ondas de infinitos finitos são levadas pelo vento

ainda vivas, também o são a partir da morte. E por último, o

renascimento: quando um recém nascido chora

ele está adquirindo a consciência novamente em ondas

e ondas de espírito.

A morte é uma luz a fraquejar, bruxuleando, como pequenos

infinitos a romper em cada canto. Ela nunca apaga a existência

por completo, apenas cintila, pisca, mas volta sempre a acender

as chamas da vida nos olhos do amor.


O medo, a palavra e o acaso

A escuridão espia pela claraboia... paranoico, louco, vil...

Os corvos gritam em profundo silêncio: lux aeterna.

O câncer que corrói os ventos, a doença que se

espalha pelo ar,

o inconsciente dilacerado pela música,

o som grave dos tambores em aleluia,

e a escuridão que espia pela claraboia.

Os cervos suspensos em fá sustenido,

o medo, a palavra e o acaso,

a ocasião, as estrelas ululantes e o vento.

Tudo aquilo que passa a cada momento — os olhos da aurora —

sapateando pelo bumbo do coração das trevas.

E eu — o que resta de mim —, a palavra entre

vírgulas

na distopia da liberdade, eu danço com Virgílio e Homero

no sono do inconsciente.


Entropia.

Caos no fundo daqueles olhos,

beijar aquelas pálpebras seria o mesmo

que tocar o outono.



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