Publicada primeiramente em 1852/1853, sob a forma de folhetins semanais na Pacotilha, suplemento dominical do Correio Mercantil, a obra Memórias de um Sargento de Milícias ocupa um lugar único no panorama literário nacional. Escrita em uma época em que predominava no Brasil a estética do Romantismo, o romance de Manuel Antonio de Almeida apresenta características que em muito o diferenciam da produção literária do período, não apenas a nacional mas também a oriunda da Europa.
A estética romântica tem por características básicas a idealização, o predomínio do sentimento sobre a razão e a realidade, o exagero, o subjetivismo e a evasão. As Memórias, por sua vez, são isentas de traços idealizantes, uma vez que nelas há o predomínio do humor e da sátira da sociedade que retrata, que corresponde às camadas populares livres e à baixa burguesia do Rio de Janeiro dos tempos do príncipe regente D. João VI.
Ao aparente descompasso entre a produção literária da primeira metade do século XIX e o único romance de Almeida pode ser tributada a pouca ou quase nenhuma atenção da crítica que as Memórias despertaram quando de seu lançamento. Um período em que o gosto popular e o da crítica se voltavam aos romances de Joaquim Manuel de Macedo, autor do célebre A moreninha, parecia pouco disposto a aceitar o humor satírico e de viés acentuadamente popular presentes na obra de Manuel Antonio de Almeida.
A partir da transição entre os séculos XIX e XX, com o advento da estética realista-naturalista, esse panorama sofre transformações e as aventuras do malandro Leonardo começam a despertar mais atenção. José Veríssimo, em 1894, chega a identificar nas Memórias características que o colocariam como um romance precursor do Realismo e do Naturalismo europeus.
Posteriormente, a crítica modernista redescobriu definitivamente a obra e a colocou no seu devido lugar de destaque no rol dos romances nacionais, valorizando o memorando Leonardo como um dos primeiros espécimes de malandro literário brasileiro. Paralelamente a essa revalorização, críticos como o escritor Mário de Andrade (1943) buscaram as possíveis filiações de uma obra tão sui generis como as Memórias, especialmente a partir de comparações com o romance picaresco espanhol, modalidade narrativa surgida no país europeu entre os séculos XVI e XVII.
De fato, as peculiaridades do romance de Almeida tornam problemático o seu enquadramento nos estilos de época tradicionais. O presente artigo analisará os estudos dos principais teóricos que se debruçaram sobre o problema da classificação das Memórias no mapa de nossa literatura e na rede teórica dos gêneros romanescos, buscando apresentar alguma contribuição para o deslinde da questão. Nesse percurso, far-se-á necessário nos determos na definição de uma modalidade narrativa que, desde os estudos do modernista Mário de Andrade, vem sendo constantemente associada ao romance de Almeida: o romance picaresco espanhol. Aqui caberá questionar se as semelhanças entre os pícaros e o malandro Leonardo, bem como entre a estrutura das Memórias e a aludida modalidade narrativa são suficientes para que se filie a obra à picaresca espanhola.
1 - Enredo e estrutura da obra
Memórias de um sargento de milícias narra a vida de Leonardo, filho de um oficial de Justiça e de uma quitandeira, ambos imigrantes portugueses, desde o nascimento, fruto de “uma pisadela e um beliscão”, passando pela infância atribulada até o início da idade adulta, quando obtém a patente a que o título faz alusão. Apesar de abandonado pelos pais após a fuga da mãe, o menino acaba encontrando a proteção do padrinho barbeiro, sempre conivente com as diabruras do garoto, e que sonha ver seu protegido convertido em clérigo ou bacharel. Na verdade, Leonardo cresce como um verdadeiro malandro, sem ofício nem ocupação, não obstante os desejos do padrinho e a proteção de sua madrinha parteira.
Em suas andanças pelo Rio de Janeiro da época de D. João VI, o memorando trava contato com uma série de personagens de baixa casta, incluindo ciganos e a mulata cantora de modinhas Vidinha, além de se ver alvo da perseguição do Major Vidigal, o temido chefe da Polícia Colonial. Apenas ao final da obra, vê-se Leonardo “nulificado em cinzenta burguesia”, casado com a rica viúva Luizinha, sua paixão desde o início da juventude, e convenientemente alçado ao posto de sargento, graças ao empenho de sua madrinha junto ao chefe da polícia.
A história é narrada em terceira pessoa, por um narrador onisciente. Na primeira parte do romance, o foco narrativo secundário varia de Leonardo Pataca (pai) a Leonardo Filho, enquanto na segunda parte o mais jovem assume definitivamente a condição de protagonista da história narrada. Interessante destacar que, em se tratando de uma obra originariamente publicada sob a forma de folhetins semanais, há nela o emprego de algumas técnicas narrativas que buscam aproximar narrador e leitor, mormente com o objetivo de aguçar e manter viva a curiosidade do público a que as aventuras de Leonardo se destinavam. Damasceno (1956) classifica essas técnicas como motivadoras, quando um capítulo se fechava alimentando a imaginação dos leitores no interregno entre um fato e seu desfecho, e evocatórias no caso em que um capítulo se abria fazendo remissão a situações pendentes de remate.
Quanto às personagens presentes nas Memórias, todas podem ser classificadas como planas, já que não há modificação em seus caracteres ao longo do romance. Na verdade, Almeida faz uso de uma variada galeria de personagens-tipo, a maioria das quais designadas apenas por seus ofícios ou pela função que exercem na história, de que são exemplos o mestre-de-reza, o toma-largura, a comadre, o compadre e os granadeiros.
O Rio de Janeiro retratado nas Memórias corresponde àquele do período da regência de D.João VI, época em que a capital fluminense viu-se convertida em sede da Coroa Portuguesa. A transferência da corte lusitana para a cidade, conseqüência das invasões napoleônicas na Europa, representou o início de grandes transformações no Rio de Janeiro, alçado ao posto de capital do império português. A presença da Corte contribui para atrair uma onda de migrantes, movidos pelos mais diversos motivos. Segundo Enders (2002), “entre 1779 e 1821, o centro da cidade passa de 43.000 a 79.000 habitantes; duplica-se a população livre, que ultrapassa 45.000 indivíduos”.
É nesse novo Rio de Janeiro que se passam as aventuras do malandro Leonardo. As personagens retratadas por Almeida são tipos populares, localizados socialmente na baixa burguesia da época, em um universo de barbeiros, parteiras e imigrantes portugueses, estando praticamente ausentes da narrativa tanto os membros da recém-chegada Corte quanto a aristocracia local. A exceção seria a personagem D. Maria, apresentada como uma senhora abastada e “apaixonada por demandas”. Também os escravos, maior força de trabalho no Brasil do período, não chegam a ser retratados na narrativa, sendo apenas citados de relance quando o autor faz menção às “crias” de D. Maria e às negras da procissão dos Ourives. Todavia, apesar das citadas ausências, Almeida oferece um painel bastante vivo da sociedade a que se propõe a retratar.
2 - Memórias de um Sargento de Milícias e o Realismo
O Realismo surge na literatura na Europa da segunda metade do século XIX. Conforme destaca Proença Filho (2007), os escritores realistas buscavam analisar a realidade em profundidade, evitando, assim, uma visão grosseira e deformada pela observação comum. Para tanto, assumiam uma posição semelhante aos dos homens de ciência, razão pela qual rejeitavam qualquer tipo de idealização, seja através da razão, seja através dos sentimentos.
José Veríssimo (1894) será o primeiro teórico a identificar nas Memórias de um Sargento de Milícias traços de um Realismo antecipado. Após advertir para a dificuldade em enquadrar a obra nas correntes literárias tradicionais, assevera o estudioso:
“Se o Realismo não tivesse em arte uma significação definida, eu o chamaria realista; se o Naturalismo não pretendesse possuir uma estética própria e processos distintos, eu o taxaria de Naturalista. Desprezadas as definições e as pretensões das escolas, este romance é, com todo o rigor do termo, realista e naturalista... Ele é realista porque nos conta fatos reais e nos fala de coisas, “res”, verdadeiras, com verdade; é naturalista porque na representação dessas coisas cinge-se estreitamente ao natural, sem exagerar ou deturpar, por processos de estilo ou singularidade de concepção, a chata realidade das coisas.” (1894, p. 6)
De fato, o que Veríssimo destaca é a objetividade presente na narração das Memórias e a ausência de exageros e deturpações na representação da realidade que o autor do romance se propôs a retratar, o que o próprio estudioso admite não ser suficiente para enquadrar a obra na Escola Realista, a qual somente se desenvolveria na Europa ao final do século XIX.
Nesse sentido, Mario de Andrade (1943), apesar de reconhecer uma certa preocupação de Almeida com os exageros da literatura romântica, critica a vertente da crítica que classificava as Memórias como um precursor do Realismo e do Naturalismo europeus. O estudioso classifica a obra como uma crônica semi-histórica de aventuras, em que são relatados os casos e adaptações vitais de Leonardo, um legítimo pícaro. Enfatiza como um dos méritos do romance a riqueza na descrição de costumes e coisas das vésperas da Independência.
Segundo Andrade, as Memórias podem ser entendidas como uma das obras que de vez em quando aparecem, à margem das literaturas, como as de Herondas, Petrônio e Apuleio, na Antiguidade Clássica, e os romances picarescos espanhóis como o Lazarillo de Tormes. Todas seriam resultado, segundo Andrade, de um reacionarismo temperamental que coloca os seus autores contra a retórica de seu tempo. Nesse sentido, há em todos uma certa dose de realismo, mas este se manifesta na descrição dos costumes e não no entrecho da obra, pois neste “tudo é pândego, caricato e inventado para obter a burla da realidade”. (Andrade, 1943, p. 138).
Na concepção de Mário de Andrade, as Memórias não podem, portanto, serem entendidas como um romance sério à maneira dos que se concebiam no século XIX, quer românticos quer realistas, mas como um romance de aventuras que se contam por capítulos. Na obra de Manuel Antonio de Almeida estaria ausente qualquer intenção moral, ao contrário do que se verificaria nos romances realistas-naturalistas, os quais eram sérios e acreditavam em sua finalidade social e na verdade da ficção, sendo que muitos assumiam um caráter acentuadamente combativo. O falso realismo sarcástico presente na obra seria conseqüência de uma concepção pessimista, revoltada e individualista da vida. Seu maior mérito estaria na graça com que descreve os costumes e na caricatura irresistível dos homens.
Desta forma, segundo o escritor modernista, o realismo que parte da crítica reconhece nas Memórias estaria presente apenas nas descrições dos costumes que aparecem na obra, mas não no seu entrecho, pois neste o que prevalece é a caricatura. Andrade classifica as Memórias como um romance excêntrico, que não poderia ser classificado como um precursor do Realismo, mas como uma obra cujas origens remetem a modelos mais antigos, que podem ser encontrados na Antiguidade Clássica e na Espanha dos séculos XVI e XVII. De fato, a partir de Mario de Andrade, parte da crítica se ocupará em questionar a possível filiação das Memórias a uma forma narrativa oriunda da Espanha: o romance picaresco espanhol.
3 - O romance picaresco espanhol
O romance picaresco surge como uma nova modalidade narrativa na Espanha dos séculos XVI e XVII. A sociedade espanhola da época tinha como características a centralização das decisões, na forma da Monarquia Absolutista, e a exclusão do poder de diversos segmentos sociais, não apenas as classes mais modestas, mas também os segmentos emergentes da burguesia.
Esse contexto remete ao processo da chamada Reconquista, que culminou com a unificação ideológica da península e com a exclusão de elementos estranhos à ortodoxia católica romana, como os mouros e os judeus. González (1994) destaca que na Espanha do século XVI atividades como a produção e a especulação, historicamente identificadas com os judeus, acabaram sendo desvalorizadas em uma sociedade na qual predominava a ideologia da conquista. Esse processo se acentua com a descoberta dos territórios ultramarinos, que representou a remessa de grande quantidade de ouro e prata à Europa. Todavia, a falta de espaço para o desenvolvimento de uma ideologia burguesa na Espanha acaba se configurando como um obstáculo para o desenvolvimento do capitalismo no país e grande parte dos metais preciosos acaba migrando para outros países europeus sob a forma de importações e pagamento de empréstimos.
Dessa forma, destaca González que o romance picaresco surge na Espanha em um contexto em que o abismo social entre pobres e ricos era imenso e em que a ideologia dominante frustrava os mecanismos de ascensão social pelo trabalho e pela especulação. O pícaro literário surge como uma paródia dos mecanismos marginais de ascensão social em uma sociedade em que a aparência e a nobreza de sangue aparecem como os valores mais importantes.
Guillén (1971, apud González, 1994) lista oito traços característicos dos romances picarescos strictu sensu, que seriam a presença do pícaro, um órfão que tenta sobreviver em um meio em que é um semimarginal; a forma autobiográfica, em que o pícaro é, ao mesmo tempo, o protagonista, o narrador e o ponto de vista; uma visão parcial e preconceituosa do narrador, que não fornece uma síntese da vida humana; uma visão reflexiva, filosófica e crítica no terreno moral ou religioso fornecida pelo pícaro; uma certa prevalência do nível material da existência; o pícaro observa certo número de condições coletivas, classes sociais, profissões, caracteres, o que convida á sátira e aos efeitos cômicos; o pícaro se movimento horizontalmente no espaço e verticalmente na sociedade; o romance picaresco é estruturado mediante a seriação de episódios, que tem como único elo comum aparente a presença do herói. Os romances que não preenchessem todas as características citadas poderiam ser classificados como picarescos lato sensu.
Chandler (1907, apud González, 1994), que não se propõe a uma definição da picaresca, identifica o romance picaresco como a autobiografia de um anti-herói, caracterizada pela ausência de plano e pelo presença do humor, sendo o pícaro nesta concepção apenas um pretexto para a descrição da sociedade.
Na tentativa de fixar uma definição da picaresca, nos valeremos do trabalho de González (1988, p. 42), que, após relatar as dificuldades em tal empreendimento, propõe o seguinte conceito: “A pseudo-autobiografia de um anti-herói que aparece definido como marginal à sociedade; a narração das suas aventuras é a síntese crítica do processo de tentativa de ascensão social pela trapaça; e nessa narração é traçada uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro”. Tal definição permite estender o conceito de picaresca para abranger não apenas as obras espanholas clássicas dos séculos XVI e XVII (e excepcionalmente XVIII), mas também uma série de textos produzidos em outros países europeus nos séculos XVII e XVIII, assim como obras latino-americanas do século XX, inclusive brasileiras, que admitiriam uma interpretação à luz da picaresca, a que González classifica como neopicarescas. Estes últimos surgiriam em um contexto em que não há uma rejeição ideológica da burguesia, mas antes uma sociedade em que, na ausência de mecanismos de ascensão social pelo trabalho, há a necessidade de meios marginais que serão parodiados através da literatura.
4 – Memórias de um Sargento de Milícias e a picaresca
Conforme já explicitado anteriormente, Mário de Andrade foi o primeiro estudioso a associar o romance de Manuel Antonio de Almeida à picaresca espanhola, o que culminou em tentativas da crítica em buscar as matrizes da obra brasileira em textos daquela modalidade narrativa. O fato é que o escritor modernista nunca se ocupou em filiar diretamente as Memórias a nenhum romance espanhol, mas apenas identificou semelhanças entre as aventuras de Leonardo e outras obras a margem das literaturas, de que seriam casos típicos não somente a picaresca espanhola, mas também alguns exemplares da Antiguidade Clássica.
A obra de Antonio Candido, Dialética da Malandragem (1970), é considerada por muitos como um estudo indispensável acerca da matéria. O estudioso entende que não é possível filiar diretamente a obra à picaresca clássica, embora o autor possa ter recebido sugestões marginais de algum romance feito à moda dos espanhóis. No entanto, a análise de Antonio Candido traz à baila várias analogias possíveis entre a obra de Almeida e a picaresca espanhola.
Candido compara as características do protagonista Leonardo com as do típico anti-herói picaresco, conforme o levantamento de Chandler em sua obra sobre o assunto. Enquanto no romance de Macedo a narração é em terceira pessoa, e o ângulo secundário varia de Leonardo Pataca a Leonardo Filho, e destes para personagens secundários, na picaresca o próprio pícaro narra suas aventuras, o que restringe a visão da realidade em um ângulo restrito.
Por outro lado, Candido admite que o memorando Leonardo de fato apresenta algumas semelhanças com os narradores picarescos, pois, assim como estes, é de origem humilde e irregular, porém não é abandonado no mundo, já que conta com a proteção do padrinho barbeiro, que sonha um futuro brilhante para o seu protegido e da madrinha parteira, que ao longo da trama se vê envolvida em toda sorte de “empenhos” para livrar seu afilhado das conseqüências de suas traquinagens.
Falta ainda ao futuro sargento o choque áspero com a realidade, que leva os pícaros a mentiras e dissimulações cada vez maiores, bem como o aprendizado próprio dos referidos personagens, já que estes são inicialmente ingênuos e apenas com a brutalidade a que são expostos na vida é que vão se tornando espertos e inescrupulosos. O fato é que Leonardo, todavia, já nasce malandro feito e as experiências por que passa pouco ou nada contribuem para qualquer tipo de aprendizado. Seu único objetivo é permanecer socialmente na posição que já ocupa, desde que para tanto possa prescindir do trabalho, enquanto os pícaros têm um projeto de ascensão social.
Além disso, Candido acentua que o pícaro tem que enfrentar o problema da subsistência imediata, razão pela qual em algum momento de sua trajetória vê-se na condição de servo, o que acaba se constituindo em um princípio importante da estruturação dos romances picarescos, pois, de amo a amo, o anti-herói picaresco vai mudando de ambiente e experimentando a sociedade em seu conjunto. Já Leonardo, protegido que está das adversidades materiais pelos cuidados de seu padrinho, o qual rejeita a possibilidade de vê-lo empregado em ofícios manuais, nunca chega a enfrentar seriamente o problema de sua própria subsistência.
O que Leonardo tem em comum com os pícaros é seu caráter amável, risonho e espontâneo e a aderência aos fatos da vida, submetidos que estão a uma espécie de causalidade externa, que nas Memórias corresponde aos caprichos da “sina”, sempre tão enfatizados pela comadre, o que esvazia os personagens de lastro psicológico e os caracterizam apenas pelos solavancos do enredo. Mas o pícaro, maltratado pela vida, não tem sentimentos, mas apenas reflexos de ataque e defesa, e é incapaz de amar, enquanto Leonardo, a seu modo, ama a pretendente Luizinha, com quem terminado casado, e demonstra alguma lealdade ao livrar o malandro Teotônio da prisão, embora, evidentemente, não chegue a constituir nenhum modelo de virtude.
Ressalta Candido que, da mesma forma que o protagonista, também o próprio romance apresenta algumas diferenças significativas em relação à picaresca espanhol. O romance picaresco é dominado pelo senso do espaço físico e social, na medida em que a condição de aventureiro desclassificado do pícaro se traduz pela mudança de condição, mormente através da mudança de patrões. Dessa forma, o romance picaresco acaba se traduzindo em uma sondagem dos mais diversos tipos sociais e de seus costumes, sempre através de um ângulo satírico. Nas Memórias a sátira é limitada, visto que não abrange a totalidade das classes sociais, mas apenas a pequena burguesia da cidade do Rio de Janeiro. Além disso, ao contrário do que se observa na picaresca, o romance de Almeida apresenta alguma tintura de sentimento amoroso, apesar de descrito com certa ironia, e não apresenta nenhuma baixeza de expressão e, quando entra do terreno da licenciosidade, como no episódio em que o mestre-de-cerimônias é flagrado em trajes íntimos na alcova de sua amante cigana, esta é apresentada de modo tão caricatural que acaba se desfazendo em humor.
A partir da análise comparativa entre as memórias e a picaresca, Candido conclui que:
“.... Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de se seu tempo, no Brasil.” (1970, p. 71)
Esse novo malandro literário seria uma espécie do amplo espectro de aventureiros astuciosos, comum a todos os folclores, que pratica a astúcia pela astúcia e talvez possa ser melhor caracterizado não como um anti-herói, mas como uma criação que remete a heróis populares como Pedro Malazarte, ainda que possa ter sido influenciado por modelos eruditos. Nesse ponto, Candido tem posição semelhante a de Mario de Andrade, na medida em que ambos enxergam que o realismo muitas vezes associado às Memórias não deve ser confundido com o sentido moderno atribuído ao termo, mas antes com algo mais vasto e intemporal, associado à comicidade popularesca. Candido chega a apresentar algumas manifestações de cunho arquetípico para corroborar o substrato folclórico das Memórias, como o anonimato de várias personagens, identificadas apenas por suas profissões ou pela posição no grupo, o que as aproximaria de paradigmas lendários e da indeterminação da fábula, bem como a duplicação que estabelece dois protagonistas, Leonardo Pai e Leonardo Filho, o que, além de revelar mais uma semelhança com modelos populares, contrasta com a unidade estrutural dos anti-herói picarescos.
Além do substrato folclórico, Candido entende não ser possível dissociar as Memórias da produção cômica e satírica da Regência e dos primeiros anos do Segundo Reinado, que se manifestou no jornalismo, na poesia, no desenho e no teatro. Já no decênio de 1830, surgem na capital fluminense jornais cômicos e satíricos como O Carapuceiro e O Novo Carapuceiro, que se ocupavam de análise política e moral a partir da sátira de costumes e retratos de tipos característicos. Da mesma época é o trabalho de Martins Pena, cuja habilidade na representação de costumes e personagens típicos, bem como sua concepção da composição literária e a suspensão de juízos morais em muito o aproximam da obra de Almeida.
5 – A dialética da malandragem
Candido (1970) entende que a força representativa do romance de Almeida não está na descrição de pormenores dos usos e costumes da época, mas em uma intuição mais profunda dos princípios constitutivos da sociedade representada em sua obra. Nela estariam presentes dois substratos básicos: um de caráter universalizador, onde se percebe a presença de arquétipos como o trapaceiro, capazes de estimular um amplo círculo de cultura e outro de caráter mais restrito, em que se encontram representações da vida capazes de estimular o leitor brasileiro.
O segundo substrato é constituído por uma dialética da ordem e da desordem. Está presente na obra todo um sistema de relações em que algumas personagens se identificam com o pólo da ordem, das convenções, das regras estabelecidas, seara na qual o representante máximo é o homem da lei, o Major Vidigal, enquanto outras se identificam com o pólo oposto, como é o caso do malandro Teotônio, do desordeiro Chico-Juca e mesmo da doce e disponível mulata Vidinha. Todavia, a relação das personagens com os dois pólos não é tão rígida, a ponto de que o próprio homem da lei acaba flagrado em relações amorosas com uma antiga amante de vida fácil. Também o memorando Leonardo vive constantemente em uma oscilação entre ordem e desordem, dividido entre a paixão pela burguesa Luizinha, onde não há outra possibilidade além do casamento e deveres, e seu idílio com a mulata Vidinha, representante de um mundo de prazeres e sem obrigações.
Dessa forma, observa Candido que a ausência de julgamentos morais da obra deixa antever um mundo livre da culpa, em que os conflitos morais acabam diluídos em uma relação dialética entre ordem e desordem. Nessa intuição da dinâmica das relações sociais no Rio de Janeiro de princípios do século XIX, que, em certa medida, poderia ser aplicada até mesmo ao Brasil dos dias atuais, estaria a força representativa das Memórias e a repercussão que a obra encontra no público contemporâneo.
Considerações finais
As Memórias de um Sargento de Milícias permanecem como uma obra que ocupa um locus singular no quadro da produção romanesca nacional do século XIX. Entendemos não ser possível identificar no romance de Almeida características que permitam classificá-lo como um precursor do Realismo europeu. Na verdade, o realismo da obra estaria mais presente na descrição dos costumes da baixa burguesia fluminense e na caracterização dos diversos tipos sociais retratados na obra, mas mesmo nestes aspectos há um predomínio da sátira e da comicidade.
Da mesma forma, nada há que nos autorize a filiar diretamente as Memórias à picaresca espanhola, já que inexistem indícios de que o autor brasileiro tenha entrado efetivamente em contato com a aludida forma narrativa, já que esta nunca penetrou profundamente no Brasil.
Todavia, é inegável identificar certas semelhanças entre o malandro brasileiro e o pícaro espanhol, já que ambos são aventureiros de origem humilde que têm por característica básica a astúcia. De fato, o malandro aparece como uma variante tipicamente nacional do pícaro, devendo-se levar em consideração o diferente contexto social que originou os dois tipos de personagens.
Assim sendo, melhor seria considerar as Memórias como um romance excêntrico, desses que, conforme acentuou Mario de Andrade, surgem à margem da corrente média das literaturas. A sua força estaria precisamente na captação da dinâmica de relações que rege a sociedade brasileira, em que ordem e desordem convivem em uma relação dialética e onde não há espaço para valores absolutos. É nesse contexto que surge Leonardo, um dos primeiros espécimes de malandro da literatura nacional, cujas aventuras são ainda capazes de instigar a imaginação do leitor contemporâneo.
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