Em 1969, a literatura americana viu o surgimento de um fenômeno peculiar. Mario Puzo, um escritor talentoso mas endividado até o pescoço com agiotas devido ao vício em jogos, escreveu The Godfather com um único propósito: ganhar dinheiro rápido. O livro, embora viciante, era considerado por muitos críticos da época como literatura "pulp" ou de aeroporto — sensacionalista, focado em sexo gráfico e com tramas secundárias duvidosas. Ninguém, nem mesmo Puzo, imaginava que aquelas páginas dariam origem àquilo que o American Film Institute mais tarde consagraria como o segundo maior filme da história americana (atrás apenas de Cidadão Kane).
A adaptação de O Poderoso Chefão para os cinemas é, ironicamente, uma história tão tensa quanto a trama da família Corleone. A Paramount Pictures estava em crise, desesperada por um sucesso, mas cética quanto a filmes de máfia. O gênero estava "morto" em Hollywood, visto como veneno de bilheteria após o fracasso de The Brotherhood (1968). A análise histórica, baseada em relatos de livros seminais como The Kid Stays in the Picture de Robert Evans (o chefe da Paramount na época), revela que o estúdio queria um diretor ítalo-americano apenas para evitar protestos da Liga dos Direitos Civis dos Ítalo-Americanos e para dar um "cheiro de espaguete" autêntico ao filme.
Francis Ford Coppola: O Diretor Relutante
Francis Ford Coppola, então com apenas 31 anos, não queria fazer o filme. Ele considerava o livro de Puzo "vulgar". Foi a dívida de sua própria produtora, a American Zoetrope (que ele fundara com George Lucas), que o forçou a aceitar o trabalho. No entanto, uma vez a bordo, Coppola tomou a decisão criativa que salvaria a obra: ele decidiu ignorar o aspecto "thriller barato" do livro e focar no que ele via como a verdadeira essência da história — uma metáfora shakespeariana sobre o capitalismo americano e a sucessão de um rei e seus três filhos.
A Adaptação do Roteiro: O Que Foi Cortado e o Que Foi Salvo
A transição do papel para a tela exigiu uma "limpeza" narrativa brutal. Críticos e analistas de roteiro frequentemente apontam que o trabalho de Coppola e Puzo (que colaboraram no roteiro) foi um exemplo magistral de "subtração".
O Corte da Trama Ginecológica: No livro, há uma subtrama extensa e bizarra envolvendo a personagem Lucy Mancini e uma cirurgia vaginal, além de um romance com um médico em Las Vegas. Coppola eliminou isso inteiramente, focando Lucy apenas como o catalisador da entrada de Sonny na emboscada no pedágio. Essa decisão elevou o tom do filme, removendo o aspecto "trash" da fonte original.
Johnny Fontane Reduzido: No livro, o cantor Johnny Fontane (supostamente inspirado em Frank Sinatra) tem capítulos inteiros dedicados aos seus problemas em Hollywood. No filme, ele serve apenas como um dispositivo de trama para introduzir o poder de Don Corleone (a famosa cena da cabeça do cavalo) e depois desaparece. Isso manteve o foco na família principal.
A Abertura: A cena inicial do filme, com o agente funerário Bonasera dizendo "I believe in America" (Eu acredito na América) no escuro total, não abre o livro. Foi uma invenção genial de roteiro para estabelecer o tema central imediatamente: a falha do Sonho Americano e a necessidade de uma justiça alternativa.
A Batalha pelo Elenco
Se a adaptação do texto foi cirúrgica, a escolha do elenco foi uma guerra. A Paramount queria qualquer um, menos Marlon Brando. O ator era considerado "veneno de bilheteria" e difícil de lidar. O estúdio sugeriu Laurence Olivier ou Danny Thomas. Coppola lutou, chegando a filmar um teste improvisado na casa de Brando, onde o ator colocou lenços de papel na boca e murmurou, transformando-se no Don. Quando os executivos viram a fita, não reconheceram Brando.
A situação de Al Pacino foi ainda pior. O estúdio o chamava de "o anão" e queria Robert Redford ou Ryan O'Neal para o papel de Michael Corleone, buscando um visual mais "americano". Coppola insistiu que Michael precisava ter o "mapa da Sicília" no rosto. A produção estava prestes a demitir Pacino nas primeiras semanas de filmagem, achando sua atuação passiva e fraca. Foi a Cena do Restaurante (onde Michael mata Sollozzo e McCluskey) que salvou o ator e o filme. Coppola adiantou a filmagem dessa cena para provar aos executivos que a "passividade" de Pacino era, na verdade, uma bomba-relógio interna. A atuação dos olhos de Pacino naquela cena, o nervosismo sutil antes do disparo, convenceu o estúdio e se tornou um dos momentos mais icônicos da atuação de método no século XX.
A Estética da Escuridão
A cinematografia de Gordon Willis foi outro ponto de discórdia que virou revolução. Apelidado de "O Príncipe das Trevas", Willis filmou os interiores da casa dos Corleone com uma subexposição radical, onde os olhos dos personagens muitas vezes não eram vistos, apenas as órbitas escuras. A Paramount odiou, dizendo que o filme estava "muito escuro". Willis e Coppola mantiveram a posição, argumentando que aquilo refletia a alma dos personagens e os negócios escusos feitos nas sombras, contrastando violentamente com a luz estourada e alegre das cenas do casamento lá fora. Essa estética chiaroscuro definiu o visual de filmes de crime pelas décadas seguintes.
Michael Corleone: O Anti-Herói Trágico
Diferente de filmes de gângster anteriores (como os dos anos 30 com James Cagney), onde os criminosos eram monstros sociopatas, O Poderoso Chefão seduz o público a torcer pelos "maus". A análise crítica moderna, vista em ensaios da The Criterion Collection, sugere que a grande genialidade da adaptação reside no arco de Michael.
Ele começa como o "cidadão modelo", o herói de guerra uniformizado que diz a Kay: "Essa é a minha família, Kay. Não eu." A tragédia do filme é a lenta e inexorável corrupção dessa alma. A adaptação brilha ao mostrar que Michael não se torna o Don por ganância, mas por amor e dever familiar (após o atentado ao pai). Coppola constrói uma armadilha moral para o espectador: nós queremos que Michael salve o pai, mas para isso, ele deve perder sua alma.
O Final: A Porta que se Fecha (Livro vs. Filme)
A mudança mais significativa e tematicamente poderosa em relação ao livro ocorre na cena final.
No Livro: O romance de Puzo termina com Kay Adams indo à igreja rezar pela alma de Michael. Ela descobre a verdade sobre os assassinatos, mas aceita seu papel, converte-se ao catolicismo e se torna uma matriarca da máfia complacente. É um final que, de certa forma, "perdoa" Michael.
No Filme: Coppola e Puzo (no roteiro) criaram um final devastadoramente frio. Kay pergunta a Michael se ele matou Carlo. Michael mente olhando nos olhos dela: "Não". Kay sai da sala aliviada, indo preparar uma bebida. Ao fundo, ela vê os capos entrarem no escritório, beijarem a mão de Michael e fecharem a porta na cara dela. Críticos como Roger Ebert citaram esse encerramento como um dos mais perfeitos da história. A porta fechando não é apenas uma barreira física; é o isolamento final de Michael. Ele ganhou o mundo, mas perdeu sua família (no sentido emocional). A exclusão de Kay da "sala dos homens" simboliza que a mentira agora é a fundação do casamento deles. Essa alteração transformou um final melodramático (do livro) em uma tragédia grega visual.
A Cena do Batismo: Montagem Intelectual
A sequência do batismo, onde Coppola intercala as imagens sacras de Michael renunciando a Satanás na igreja com as imagens brutais dos assassinatos dos chefes das Cinco Famílias, não existe dessa forma no livro. No texto, os eventos ocorrem, mas a justaposição é uma ferramenta puramente cinematográfica. Essa montagem é estudada em escolas de cinema como o exemplo definitivo de edição associativa. Ela eleva a violência a um nível operático, sugerindo que Michael está, naquele momento, se tornando Deus e Diabo simultaneamente — ele dá a vida (como padrinho do bebê) e tira a vida (como Don).
Recepção e Controvérsia
Quando o filme estreou em março de 1972, o impacto foi sísmico. As filas davam voltas nos quarteirões em Nova York. A Variety previu corretamente que seria um "blockbuster monstro". No entanto, houve críticas. Alguns intelectuais acusaram o filme de romantizar a máfia, fazendo com que assassinos parecessem homens de honra e princípios. A comunidade ítalo-americana, inicialmente receosa, acabou abraçando o filme como um marco de representatividade, orgulhosa de ver italianos (e não anglo-saxões fazendo blackface cultural) na tela, comendo comida real e falando dialeto. A crítica de Pauline Kael, da New Yorker, foi profética: ela notou que o filme fundia o "comércio com a arte", possuindo a tensão popular de um best-seller mas a profundidade visual de um filme de arte europeu.
O Oscar e a Recusa de Brando
O filme ganhou o Oscar de Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Ator. A cerimônia ficou marcada pelo protesto de Marlon Brando, que recusou o prêmio e enviou a ativista nativo-americana Sacheen Littlefeather em seu lugar para protestar contra a representação dos indígenas em Hollywood. Mesmo nesse momento, O Poderoso Chefão estava causando turbulência cultural.
Legado: A Bíblia dos Criminosos
Uma consequência curiosa, relatada em livros de não-ficção sobre a máfia real (como Donnie Brasco), é que os mafiosos reais começaram a imitar o filme. A linguagem ("Vou fazer uma oferta que ele não pode recusar", "Mantenha seus amigos perto, seus inimigos mais perto") não era necessariamente usada pela Cosa Nostra antes de 1972. Puzo admitiu ter inventado muitos dos termos. A arte imitou a vida, e a vida passou a imitar a arte.
O Poderoso Chefão estabeleceu o padrão ouro para a adaptação. Ele provou que um filme pode ser melhor que o livro se o diretor tiver a coragem de trair o texto para ser fiel ao tema. Enquanto o livro de Puzo é uma leitura divertida e datada sobre os anos 40, o filme de Coppola é um tratado atemporal sobre o poder, a corrupção e a família, mantendo-se no topo das listas de melhores filmes há mais de 50 anos.
