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O Iluminado: A Guerra Fria entre o Coração de Stephen King e o Cérebro de Stanley Kubrick

Em 1977, Stephen King publicou O Iluminado, seu terceiro romance e o primeiro best-seller de capa dura. O livro era profundamente pessoal. Escrito após a morte de sua mãe e enquanto King lutava contra o alcoolismo, a obra era uma metáfora mal disfarçada de seus próprios medos: o medo de falhar como pai, o medo de que seus demônios internos (a bebida) pudessem machucar sua família. Para King, o Overlook Hotel era uma bateria externa de maldade que explorava a fraqueza muito humana de Jack Torrance. O livro é "quente", emocional, cheio de empatia pelos seus personagens trágicos e, fundamentalmente, uma história de fantasmas sobrenaturais.

Stanley Kubrick, vindo do fracasso comercial de Barry Lyndon (1975), procurava um projeto comercialmente viável. Ele queria fazer "o filme de terror definitivo". Quando a Warner Bros. lhe enviou pilhas de livros de terror, diz a lenda que sua secretária o ouvia jogando um após o outro contra a parede após ler as primeiras páginas, até que o silêncio imperou quando ele pegou O Iluminado. Kubrick não se importava com fantasmas. Ele via na obra de King uma estrutura para explorar algo que lhe interessava muito mais: o fracasso da unidade familiar nuclear americana, o isolamento psicológico (cabin fever) e a natureza cíclica da violência humana.

A Cirurgia Cerebral no Roteiro

Para Kubrick, o livro de King era "fraco" em execução, mas brilhante em conceito. Ele descreveu a escrita de King como "nem um pouco literária", mas admirava a capacidade do autor de criar ganchos narrativos. A análise da adaptação começa com a decisão de Kubrick de contratar a romancista gótica Diane Johnson para co-escrever o roteiro, ignorando um rascunho inicial feito pelo próprio King.

O objetivo de Johnson e Kubrick era remover o "melodrama" de King. Eles realizaram uma "cirurgia cerebral" na história. Onde King explicava tudo – o passado abusivo de Jack, a história detalhada dos fantasmas do hotel, as regras do "brilho" (the shining) – Kubrick optou pela ambiguidade radical. Análises de cinema publicadas em revistas como a Cinefantastique na época notaram que Kubrick transformou uma história sobre "mal externo" (o hotel possuindo Jack) em uma história sobre "mal interno" (o hotel como um espelho da psicose preexistente de Jack). O filme sugere constantemente que talvez não haja fantasmas; talvez tudo seja a manifestação da mente fraturada de Jack Torrance, amplificada pelo isolamento.

Jack Nicholson: O Louco Instantâneo

A maior divergência narrativa, e o ponto central do ódio de Stephen King pelo filme, é o arco de Jack Torrance.

  • No Livro: Jack é um homem bom que luta desesperadamente contra sua doença (alcoolismo) e contra a influência do hotel. Sua descida à loucura é lenta, trágica e dolorosa. O leitor torce por ele até o fim, quando uma parte dele retoma a consciência brevemente para salvar o filho.

  • No Filme: Desde a primeira cena na entrevista de emprego, o Jack Torrance de Jack Nicholson já parece desequilibrado. Suas sobrancelhas arqueadas e seu sorriso maníaco sugerem um homem que não precisa ser empurrado para a loucura; ele já está na beira do abismo, esperando um empurrãozinho.

Críticos como Roger Ebert observaram que Nicholson não interpreta uma queda, mas uma revelação. Ele chega ao Overlook não para ser corrompido, mas para finalmente ser quem ele realmente é. King odiou a escalação de Nicholson (ele queria alguém como Jon Voight ou Michael Moriarty, que pudessem projetar "normalidade" inicialmente), argumentando que o público, ao ver Nicholson, já sabia que ele ficaria louco, eliminando o suspense trágico.

O Martírio de Shelley Duvall


Se o tratamento de Jack foi uma reescrita, o tratamento de Wendy Torrance foi uma demolição controlada, tanto na tela quanto nos bastidores. A Wendy do livro é uma loira, ex-líder de torcida, resiliente e engenhosa. Ela luta de igual para igual contra os horrores do hotel para proteger Danny.

Kubrick, buscando uma abordagem mais misógina e "realista" sobre vítimas de abuso doméstico na década de 1970, queria uma Wendy que fosse um feixe de nervos, submissa e aterrorizada. Ele escalou Shelley Duvall. O que aconteceu no set tornou-se infame na história do cinema. Kubrick isolou Duvall do resto do elenco, criticava sua atuação constantemente na frente da equipe e a forçava a viver em um estado de pânico real por mais de um ano de filmagens.

A famosa cena da escada, onde Wendy recua balançando um taco de beisebol enquanto Jack avança, detém o recorde mundial do Guinness para o maior número de tomadas para uma cena com diálogo: 127 vezes. O choro e a exaustão de Duvall na tela não são atuação; são documentais. A crítica feminista moderna reavalia O Iluminado como um filme que, embora genial, foi construído sobre o abuso psicológico de sua atriz principal para obter uma performance de terror genuíno. Kubrick conseguiu o que queria: uma Wendy que irrita o público com sua histeria, tornando a agressão de Jack desconfortavelmente compreensível para o espectador antes de se tornar horrorosa.

Enquanto a narrativa desconstruía os personagens de King, a produção visual de Kubrick construía um novo tipo de horror. O Iluminado não se baseia em sustos repentinos (jump scares), mas em uma atmosfera de pavor implacável (dread).

A Geometria do Pavor e a Steadicam

O verdadeiro antagonista do filme não é Jack, mas o Overlook Hotel. A direção de arte de Roy Walker criou o maior cenário interno já construído até então nos estúdios Elstree em Londres. O hotel é brilhante, bem iluminado e vasto – o oposto dos castelos góticos escuros e cheios de teias de aranha do horror tradicional. Kubrick queria que o terror acontecesse sob a luz implacável de lâmpadas fluorescentes.

A análise arquitetônica do filme, popularizada no documentário Room 237 e em ensaios de vídeo online, revela que Kubrick desenhou o hotel para ser impossível. Portas levam a lugar nenhum, janelas existem em paredes que deveriam ser internas, corredores mudam de lugar. O público sente, subconscientemente, que algo está errado com o espaço, aumentando a desorientação.

A ferramenta essencial para explorar esse espaço foi a Steadicam, uma invenção recente de Garrett Brown. Antes dela, câmeras em movimento ou tremiam (câmera na mão) ou estavam presas a trilhos (dolly). A Steadicam permitiu movimentos fluidos, flutuantes, que podiam passar por portas e subir escadas. Kubrick usou isso para criar a perspectiva de um observador fantasmagórico. As famosas cenas de Danny em seu triciclo, com a câmera deslizando logo atrás dele, alternando entre o ruído das rodas no piso de madeira e o silêncio no tapete, criam uma tensão hipnótica que define o filme. A câmera não é um observador humano; é o olhar frio do próprio hotel.

O Final: Fogo vs. Gelo

A mudança mais simbólica e definitiva entre o livro e o filme ocorre no clímax.

  • No Livro (Fogo): A caldeira do hotel, que Jack negligenciou durante todo o inverno, superaquece e explode, destruindo o hotel e Jack com ele. É um final catártico, quente, apaixonado. O mal é purgado pelo fogo, e há uma nota de esperança para Wendy e Danny.

  • No Filme (Gelo): Não há problema com a caldeira. O clímax ocorre no labirinto de cercas vivas congelado. Jack persegue Danny, se perde e morre congelado, sozinho, transformando-se em uma estátua de gelo com uma expressão grotesca.

Kubrick alterou isso por duas razões. Primeiro, razões práticas: os animais de topiaria (cercas vivas em forma de leões e coelhos) que ganham vida no livro eram impossíveis de serem feitos de forma convincente com os efeitos especiais de 1980. Kubrick os substituiu pelo labirinto gigante, que serviu como metáfora visual perfeita para a mente labiríntica de Jack. Segundo, e mais importante, razões temáticas: Kubrick achava o final do livro "clichê". Ele preferia um final niilista. O gelo representa o frio emocional da visão de Kubrick, a estagnação da morte e a falta de redenção para Jack Torrance.

A Recepção Inicial: O Fracasso que Virou Clássico

É difícil acreditar hoje, mas quando O Iluminado estreou no fim de semana do Memorial Day em 1980, a recepção foi morna, beirando a hostilidade. A revista Variety reclamou que Kubrick havia se juntado a Jack Nicholson para "destruir tudo o que era bom no best-seller de Stephen King". Críticos acharam o filme lento, monótono e, crucialmente, "não assustador". O filme foi até indicado a dois Framboesas de Ouro (Razzie Awards) na sua edição inaugural: Pior Diretor para Kubrick e Pior Atriz para Duvall (indicações que foram retratadas décadas depois, com os organizadores admitindo o erro).

O público esperava um filme de terror sangrento no estilo de O Exorcista ou O Massacre da Serra Elétrica. Em vez disso, receberam um quebra-cabeça art-house de 2 horas e meia sobre a desintegração masculina.

O Legado e a Reavaliação

A mudança na percepção de O Iluminado veio com o tempo e a tecnologia. O lançamento em VHS permitiu que as pessoas assistissem ao filme repetidamente, pausando e analisando cada quadro. Foi aí que a obsessão meticulosa de Kubrick começou a ser notada. Detalhes de fundo, mudanças no cenário, a simetria obsessiva da mise-en-scène – tudo isso revelou um filme que não era apenas sobre um homem com um machado, mas sobre o genocídio indígena americano (o hotel é construído sobre um cemitério indígena), o Holocausto, ou a própria natureza do cinema.

Stephen King nunca mudou de ideia. Ele famosamente descreve o filme como "um Cadillac grande e bonito, sem motor dentro". Ele chegou a produzir sua própria minissérie de TV em 1997, extremamente fiel ao livro, que foi bem recebida na época, mas hoje é amplamente esquecida, parecendo datada e visualmente plana em comparação com a obra de Kubrick.

A conclusão histórica é que King escreveu o melhor livro sobre o tema, e Kubrick fez o melhor filme. Eles são obras incompatíveis. O Iluminado de Kubrick é, tecnicamente, uma péssima adaptação em termos de fidelidade, mas é um exemplo supremo de como o cinema pode usar a literatura apenas como um ponto de partida para criar uma obra de arte autônoma, fria e imortal.

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