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Como "O Senhor dos Anéis" Quebrou a Maldição da Fantasia e Redefiniu o Cinema

Quando J.R.R. Tolkien vendeu os direitos de filmagem de O Senhor dos Anéis e O Hobbit para a United Artists em 1969, ele o fez principalmente para pagar uma conta de impostos, mas com uma convicção silenciosa: a obra era "infilmável". Durante décadas, essa crença prevaleceu. A densidade da mitologia, a complexidade linguística e a escala geográfica da Terra Média eram vastas demais para a tecnologia analógica e para o tempo de atenção do público de cinema. Houve tentativas, como a animação de Ralph Bakshi em 1978, que, embora cultuada, falhou em capturar a magnitude da obra, resultando em um projeto incompleto.

Foi apenas na virada do milênio que um diretor neozelandês, conhecido até então por filmes de terror "trash" e dramas intimistas (como Almas Gêmeas), convenceu Hollywood a fazer a aposta mais arriscada da história do cinema moderno. Peter Jackson não queria apenas fazer um filme; ele propôs filmar os três livros simultaneamente. Esta análise mergulha nos bastidores, na narrativa e na recepção crítica dessa empreitada monumental, baseando-se em arquivos de produção, críticas da época (como as do The New York Times, Empire e Variety) e retrospectivas contemporâneas.

O "Inferno" do Desenvolvimento e a Aposta da New Line

A história da pré-produção é, por si só, um drama shakespeariano. Inicialmente, o projeto estava na Miramax, sob a tutela de Harvey Weinstein. A visão de Weinstein, motivada por cortes orçamentários, era condensar a trilogia inteira em um único filme de duas horas. O roteiro preliminar dessa versão "mutilada" sugeria cortes drásticos: o Abismo de Helm e a defesa de Gondor seriam fundidos, e personagens vitais como Saruman seriam reduzidos a notas de rodapé.

Jackson e sua parceira criativa, Fran Walsh, recusaram-se a destruir a obra. Em um movimento lendário, eles tiveram apenas um fim de semana para vender o projeto para outro estúdio ou perderiam os direitos. A apresentação foi feita para Robert Shaye, da New Line Cinema. Enquanto Jackson propunha timidamente dois filmes, Shaye olhou para o material e disse a famosa frase: "O livro tem três volumes. Por que faríamos apenas dois filmes?".

Ali nascia o projeto de US$ 281 milhões (uma verba considerada modesta para três blockbusters nos padrões atuais, mas astronômica para a época, considerando o risco). A crítica especializada internacional, ao saber do projeto, manteve um ceticismo palpável. Portais como o Ain’t It Cool News (pioneiro nos vazamentos de roteiros na época) tornaram-se campos de batalha entre puristas de Tolkien e entusiastas do cinema.

A Adaptação de "A Sociedade do Anel": Cirurgia Narrativa

O roteiro, escrito por Jackson, Walsh e Philippa Boyens, enfrentou o desafio de adaptar o "Livro Um". A maior crítica dos puristas literários recaiu sobre a compressão do tempo e a exclusão de Tom Bombadil.

No livro, passam-se 17 anos entre o momento em que Bilbo deixa o Condado e a partida de Frodo. No filme, a urgência é imediata. Análises narrativas, como as publicadas no The Guardian anos depois, defendem essa escolha de Jackson como vital para a linguagem cinematográfica. O cinema exige tensão cinética; a literatura permite a contemplação pastoral.

A exclusão de Tom Bombadil — uma entidade enigmática, poderosa e cantante que salva os Hobbits na Floresta Velha — é talvez o ponto mais debatido. Do ponto de vista de roteiro, Bombadil é um "anti-clímax" dramático: ele é imune ao Anel, o que diminui a ameaça do objeto. Remover Bombadil permitiu que o filme focasse na ameaça iminente dos Nazgûl, transformando a primeira metade de A Sociedade do Anel em quase um filme de horror/suspense, gênero que Jackson dominava.

O Elenco e a Mudança de Tonalidade

A recepção da crítica quanto ao elenco foi quase unânime, mas não sem controvérsias iniciais. Ian McKellen (Gandalf) e Christopher Lee (Saruman) trouxeram uma "gravitas" shakespeariana que legitimou a fantasia aos olhos da crítica adulta. No entanto, a escalação de Viggo Mortensen como Aragorn foi um acidente de última hora — Stuart Townsend havia sido demitido dias antes das filmagens por parecer "jovem demais".

A análise do personagem de Aragorn revela uma das mudanças mais inteligentes da adaptação. No livro, Aragorn é um rei pronto, que carrega a espada reforjada (Andúril) desde cedo e busca seu trono. No filme, Jackson e os roteiristas deram a ele um "arco de herói relutante". O Aragorn do cinema teme a fraqueza de seu sangue (a falha de Isildur). Essa "humanização" e dúvida interna foram elogiadas por críticos americanos como Roger Ebert, que notou que isso dava ao público moderno um ponto de conexão emocional que o arquétipo nobre e distante do livro talvez não oferecesse.

Inovação Técnica: Weta e a Criação de um Mundo

Antes de O Senhor dos Anéis, efeitos digitais (CGI) eram frequentemente criticados por parecerem "plásticos" (vide A Ameaça Fantasma, lançado pouco antes). A Weta Digital introduziu o software MASSIVE, que permitiu criar exércitos digitais onde cada "agente" (soldado) tinha inteligência artificial própria para decidir como lutar. Isso mudou a representação de guerras no cinema para sempre.

Mas a recepção visual foi ancorada no uso de "Bigatures" (miniaturas gigantes). A crítica elogiou a "textura" da Terra Média. Ao contrário de produções que usavam telas verdes estéreis, a equipe de Jackson construiu Hobbiton um ano antes das filmagens para que a vegetação crescesse naturalmente. Essa dedicação ao realismo tátil foi citada em quase todas as resenhas positivas de 2001, estabelecendo um novo padrão de direção de arte.

Quando A Sociedade do Anel estreou em dezembro de 2001, a recepção foi eufórica. O filme arrecadou US$ 871 milhões e recebeu 13 indicações ao Oscar. A crítica do Los Angeles Times chamou-o de "o filme que os fãs de fantasia esperaram a vida toda". Mas o verdadeiro teste narrativo — e as maiores divergências com a obra de Tolkien — ainda estavam por vir nos capítulos seguintes.

Se A Sociedade do Anel foi a promessa, As Duas Torres e O Retorno do Rei foram a prova de fogo. É nestes dois capítulos que a adaptação de Peter Jackson toma liberdades criativas que, até hoje, geram debates acalorados em fóruns como The One Ring e Reddit, além de teses acadêmicas sobre adaptação transmidiática.

As Duas Torres e a Polêmica de Faramir

O segundo filme enfrentou o problema clássico do "capítulo do meio": não tem início nem fim claros. Para mitigar isso, os roteiristas precisaram alterar arcos fundamentais. A mudança mais controversa, criticada duramente por Christopher Tolkien (filho do autor), foi a caracterização de Faramir.

No livro, Faramir é o oposto moral de seu irmão Boromir; ele rejeita o Anel imediatamente, dizendo que não o pegaria nem se o encontrasse na estrada. No filme, Faramir decide levar Frodo e o Anel para Gondor como um presente para seu pai, Denethor, mudando de ideia apenas em Osgiliath. Análises de roteiro, como as encontradas no Scriptnotes, defendem a escolha de Jackson: no cinema, se o Anel é a "tentação suprema", encontrar um personagem que o rejeita facilmente no meio da trama desvalorizaria a ameaça. O filme precisava mostrar que ninguém é imune, tornando a resistência de Frodo ainda mais dolorosa. Embora seja uma "heresia" literária, cinematograficamente funcionou para manter a tensão dramática.

Outro ponto de divergência foi a presença dos Elfos no Abismo de Helm. No livro, a batalha é travada apenas pelos Homens de Rohan (com a ajuda de Gimli e Legolas). No filme, um contingente de elfos de Lothlórien chega para lutar e morrer. A crítica entendeu isso como uma forma de mostrar que a Terra Média estava unida contra a sombra, visualmente reforçando a aliança antiga que estava se desfazendo, algo que no livro é mais sutil.

O Fenômeno Gollum

A recepção crítica da trilogia mudou de patamar com a introdução completa de Gollum em As Duas Torres. A performance de captura de movimento de Andy Serkis foi revolucionária. Críticos da Time Magazine argumentaram que Gollum deveria ter recebido uma indicação ao Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, desafiando as regras da Academia sobre atuação digital. A dualidade Smeagol/Gollum foi externalizada em diálogos esquizofrênicos brilhantemente dirigidos. Onde o livro descreve o conflito interno, o filme o mostra. Essa escolha visual tornou-se uma referência cultural instantânea, parodiada e reverenciada globalmente.

O Retorno do Rei: Triunfo e Exaustão

O terceiro filme é um colosso de emoção e espetáculo, mas carrega as críticas mais pesadas sobre o ritmo final. A batalha dos Campos de Pelennor é frequentemente citada como a maior batalha de fantasia já filmada. No entanto, as escolhas narrativas de Jackson aqui foram brutais para os leitores.

  1. A Ausência do Expurgo do Condado: No livro, ao retornarem para casa, os Hobbits encontram o Condado dominado por Saruman e precisam lutar uma última vez. É uma lição crucial de Tolkien: a guerra toca a todos, e não se pode voltar para a inocência. Jackson cortou isso inteiramente. No filme, eles voltam para um Condado intocado. A crítica cinematográfica apoiou a decisão: após 10 horas de filme, um "novo vilão" e uma "nova batalha" aos 45 do segundo tempo seriam exaustivos para a audiência geral. O clímax emocional precisava ser no Monte da Perdição.

  2. A Morte de Saruman: Christopher Lee ficou furioso ao saber que sua morte foi cortada da versão de cinema de O Retorno do Rei (aparecendo apenas na versão estendida). Isso deixou o vilão secundário sem um desfecho claro na versão teatral, um ponto negativo apontado por críticos do The Guardian.

  3. Os Múltiplos Finais: Uma das críticas mais comuns, que virou meme na cultura pop, é que o filme "termina três ou quatro vezes". A tela escurece (fade to black) várias vezes: após a coroação, após o retorno ao Condado, nos Portos Cinzentos. Porém, defensores da obra argumentam que cada final fecha o arco de um grupo de personagens e que essa despedida prolongada era necessária para o peso emocional da jornada de 9 anos de produção.

A Consagração no Oscar e o Legado

Em 2004, O Retorno do Rei realizou um feito inédito: ganhou 11 Oscars, vencendo em todas as categorias que disputou, igualando-se a Ben-Hur e Titanic. Foi a primeira vez que um filme de fantasia venceu como Melhor Filme. A indústria entendeu aquilo não apenas como um prêmio para o terceiro filme, mas como um reconhecimento da trilogia inteira — uma "conquista de carreira" para Jackson e sua equipe.

O Impacto na Indústria: A trilogia mudou a economia de Hollywood.

  • Turismo: A Nova Zelândia tornou-se sinônimo de Terra Média, criando uma indústria de turismo bilionária.

  • A Era das Franquias: Provou que o público aceitaria narrativas longas e complexas, abrindo caminho para o Universo Cinematográfico Marvel e, mais diretamente, para a adaptação de Game of Thrones pela HBO (George R.R. Martin citou frequentemente que a morte de Boromir e Gandalf abriu precedente para matar heróis).

  • Versões Estendidas: O sucesso das versões estendidas em DVD criou um novo mercado de home video, onde os fãs pagariam para ver "mais filme", legitimando cortes do diretor longos.

Conclusão: Uma Obra Singular

Vinte anos depois, a trilogia de O Senhor dos Anéis envelheceu surpreendentemente bem. Enquanto muitos blockbusters do início dos anos 2000 sofrem com CGI datado, a mistura de maquetes, próteses e digital da Weta mantém a Terra Média palpável.

A crítica contemporânea reconhece que, apesar dos desvios do livro — a transformação de Gimli em alívio cômico, a simplificação de Denethor ou a exclusão do Expurgo do Condado —, Peter Jackson capturou o coração da obra de Tolkien: a melancolia do fim de uma era, a importância da amizade masculina platônica e a coragem das pessoas comuns diante do mal absoluto. É, sem dúvida, a adaptação mais ambiciosa e bem-sucedida da história do cinema, um alinhamento de planetas que talvez nunca mais se repita na mesma escala.

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