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[RESENHA #618] História do inferno, de George Minois

APRESENTAÇÃO

Neste livro, o olhar arguto e global de Georges Minois traz ao leitor contemporâneo uma súmula das concepções de inferno que acompanharam as principais civilizações humanas. Veremos também que, mesmo em face do declínio das crenças tradicionais e da Igreja católica, dos questionamentos à ideia de inferno nos próprios ambientes eclesiásticos, o conceito ainda se faz presente e relevante, como se a história do inferno fosse também a história do homem confrontado com sua própria existência.

RESENHA

A ideia de inferno é recorrente nas civilizações, encontrada nos textos mais antigos, presente nas concepções religiosas e até mesmo em visões ateístas contemporâneas. O uniforme é multiforme, adaptando-se às diferentes sociedades, e pode ser visto como um lugar sinistro ou como um lugar ou estado de extrema angústia existencial durante a vida. Desde os primórdios da humanidade, a ideia de inferno está associada aos sofrimentos, ódios, às contradições e à impotência inerentes à condição humana — ligada ou não ao julgamento e castigo, a ameaça do inferno contempla os temores de cada civilização, muitas das vezes espelhando seus fracassos sociais e suas ambiguidades. Dentre as diversas concepções de inferno, a mais detalhada e desesperadora talvez seja do inferno cristão, em que o sofrimento permeado por remorso e pela eternidade das penas afeta os sentidos e a mente. É uma construção racional, um contraponto a uma religião baseada na ideia de salvação do espírito, e que supostamente respeita o livre arbítrio humano. Antes da ideação do inferno cristão, porém, outras reflexões religiosas imaginavam um além-como continuação triste da vida terrena, onde os infelizes desta terra continuariam sofrendo. Neste livro, o olhar arguto e global de George Minois traz ao leitor contemporâneo uma sumula das concepções de inferno que acompanharam as principais civilizações do mundo.[texto da orelha da obra]

História do inferno é um livro de estudos/ficção/análise da construção da imagem do inferno em suas múltiplas faces e variáveis existentes na sociedade, religião e/ou pensando popular. Escrito pelo autor e historiador francês George Minois, esta é a terceira edição da obra, publicado no Brasil pela editora Fundação Editora UNESP.

A história do inferno é um dos grandes fomentadores dos debates religiosos acerca do globo. O inferno possui diversas descrições acerca das religiões existentes, algumas, atribuindo o inferno apenas as atitudes de seus frequentadores como sendo uma forma de punição a desobediência. Na religião cristã, o inferno é o local de punição dos impios e dos pecadores, já para religiões como testemunhas de jeová, o inferno nada mais é do que a sepultura e a morte da consciência humana, não existindo punição, paraíso ou inferno. Pouco se sabe acerca da construção da figura do inferno, porém, Minois trabalha com maestria para explicar o seu surgimento nas religiões antigas e contemporâneas. 

O inferno é abordado tanto como uma questão religiosa quanto como uma invenção popular. O autor mescla esses dois conceitos para demonstrar que foi a pressão popular que levou a Igreja a estabelecer uma doutrina oficial sobre o assunto. Mediante imagens narrativas alucinantes, o texto revisita visões macabras e torturas inimagináveis, para depois analisar como os teólogos racionalizaram tudo isso, transformando o inferno em uma arma de dissuasão e prova da justiça divina implacável.

Heróis, poetas e visionários empreenderam jornadas ao inferno e trouxeram consigo descrições horripilantes que refletiam os fantasmas de sua época: um lugar de sobrevivência desesperada, de punição eterna ou simplesmente um espaço abstrato. A diversidade dessas representações constitui um dos aspectos mais transcendentais e enigmáticos da história humana. O que me recorda das mais diversas narrativas religiosas acerca da morte e da punição, uma das características mais marcantes da modernidade atual é a divisão de ideias acerca do final da vida e do pós-morte, e que, claro, é minuciosamente analisado por Minois nesta obra.

O autor analisa o surgimento do inferno nas civilizações orais, como na áfrica, xamânicos, germânico, escandinavo, mesopotâmicos, egípcios, hinduístas e as várias descrições do inferno na literatura e no pensamento filosófico.

Para o autor, o inferno surgiu primeiramente no imaginativo popular caracterizado e atribuído, sobretudo, as categorias mais pobres e afetadas pela escassez de oportunidades, em uma tentativa de seguir uma linha tênue de obediência para adquirirem um lugar ao sol perante o perdão de Deus e fugir da danação eterna, uma vez que, este seria o primeiro passo para driblar a história terrena repleta de pobreza e sofrimento, marcado pela ausência de conhecimento e oportunidades. (p.60).

O desejo de revanche não é estranho a essa curiosidade: os sacrifícios exigidos a essa via pelos fiéis, devem ser compensados tanto por um gozo futuro, tanto, quanto uma punição para aqueles que foram felizes neste mundo. (p.60)

Essa obra é indispensável para aqueles que se interessam pela evolução da cultura, pois “História do Inferno” oferece um diagnóstico preciso da nossa contemporaneidade. Mostra o desaparecimento do inferno tradicional e sua identificação com as angústias cotidianas da consciência moderna. Uma descrição mais detalhada acerca da obra de Minois, culminaria, digo com certeza, em uma série de spoilers que acabariam com os estudos elaborados pelo professor, desta forma, fica a indicação para uma leitura pura e fluida acerca deste genuíno estudo.

O AUTOR

Georges Minois é professor de História e historiador das mentalidades religiosas. Dele, a Editora Unesp publicou História do riso e do escárnio (2003), A idade de ouro (2011), História do ateísmo (2014), História do futuro (2016), História do suicídio (2018), História da solidão e dos solitários (2019), As origens do mal (2021) e Henrique VIII (2022).


[RESENHA #617] A última volta do rio, de Nei Lopes

Apresentação

A última volta do Rio é o lamento de um preto carioca da gema que viveu os anos de ouro da Cidade Maravilhosa e hoje sofre com as mazelas que a estão destruindo, tais como o crime, a corrupção, o racismo religioso e a intolerância.

Maurício de Oliveira, o Cicinho, foi o primeiro de sua família a cursar o ginasial. Saído do Irajá, na zona norte do Rio de Janeiro, formou-se em Direito e tornou-se procurador federal. Acompanhou todas as mudanças que o Rio de Janeiro sofreu ao longo dos anos: da transferência da capital para o interior do país (e as disputas que se seguiram) ao surgimento de novos atores políticos — e religiosos — na dinâmica da cidade. Conforme apontou Marcelo Moutinho, na orelha do livro, o percurso de Cicinho “reflete, no microcosmo individual, a trajetória de um país em permanente cataclismo [...], cheio de impasses, esquadrinhados por Nei com verve e ironia”.

Nei Lopes vem se empenhando em produzir uma literatura ficcional no qual o indivíduo negro e o povo negro, em geral, sejam protagonistas quase absolutos das tramas que desenvolve, sempre ambientadas a partir dos subúrbios do Rio de Janeiro. Este A última volta do Rio consolida definitivamente a força narrativa do autor.

“Aquela do presidente preto nunca mais saiu da cabeça do Maurício. Ele sabia que o Brasil tinha preto, bom de bola, cantor, dançarino, enfermeiro… Mas presidente da República? Como? A novidade então virou o 'segredo do Castelo' ou 'da Esplanada'. Que ainda hoje, embora não seja oficialmente um bairro, é um importante local do Centro da cidade. Aliás, antes da mudança, era o centro do Centro, por abrigar os prédios das grandes decisões, onde se julgavam os destinos, onde se ouvia a música mais refinada, viam-se os melhores filmes estrangeiros, tomava-se o chope mais bem tirado, cobiçavam-se as mulheres mais bonitas e invejavam-se os homens mais bem trajados. Aqui é que era o Rio, com R maiúsculo.”

RESENHA


Maurício de Oliveira, também conhecido como Cicinho, nasceu tendo sido criado em Irajá, uma região da zona norte do Rio de Janeiro. Ele foi o primeiro de sua família a completar o ensino médio e seguiu adiante, obtendo um diploma em Direito e se tornando procurador federal. Ao longo dos anos, ele testemunhou todas as transformações pelas quais o Rio passou, desde a transferência da capital para o interior do país, com todas as disputas que se seguiram, até o surgimento de novos atores políticos e religiosos na dinâmica da cidade. A jornada de Cicinho reflete individualmente a trajetória de um país em constante turbulência, repleto de impasses, que Nei Lopes explora com perspicácia e ironia.

Nei Lopes tem se dedicado a produzir uma literatura ficcional na qual o indivíduo negro e o povo negro, em geral, sejam protagonistas quase absolutos das tramas, sempre ambientadas nos subúrbios do Rio de Janeiro. “A Última Volta do Rio” consolida definitivamente o poder narrativo do autor. Autor, compositor e cantor, Nei Lopes nos presenteia mais uma vez com uma obra magistral que tende a se mostrar encantadoramente repleta de nuances de um Rio de Janeiro de outrora.

Com uma prosa histórica, o autor delineia as ruas e as paisagens da cidade maravilhosa em seu ápice, e claro, seu declínio social em relação à crescente onda de intolerância racial, social, política e religiosa. Uma obra que me lembrou muito a alma encantadora das ruas, de João do Rio, publicado originalmente em 1908, onde o autor, observa de forma minuciosa e crítica as transformações que a modernidade trouxe para a cidade do Rio de Janeiro, bem como as transformações que tomaram conta da crescente populacional. Há aqui, um paradoxo, entre o encontro e a narrativa de dois autores distintos que descrevem períodos relativamente próximos da história da cidade maravilhosa, bem como suas nuances e descrições políticas e sociais acerca do desenvolvimento das problemáticas sociais que tomaram conta dos tempos atuais na grande metrópole. 

O título da obra do autor também é uma forma de demonstrar que a vida é como o curso de um rio, ou seja, sempre em constante mudança e jamais sendo interrompida. Assim como em a ultima volta do rio, o contexto histórico dá obra baseia-se na construção enraizada no crescimento populacional e na miscigenação de povos, ocasionando em conflitos sociais poderosos e destrutivos, como a intolerância e o racismo.

A história construída pelo autor mostra-nos a vida e o crescimento de seu personagem, Cicinho [apelido carinhoso de Maurício de Oliveira, gentilmente dado por sua mãe], desde à chegada na cidade maravilhosa a seu ingresso na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, bem como sua sede por dias melhores. 

A memória de sua família materna guardava histórias de um bisavô escravizado, chamado Casemiro, cujo filho, já no começo do século XX, progredira e enriquecera já na capital federal, à custa do próprio esforço. (pag. 61)
A narrativa também explora a criação da divisão social estabelecida com os avanços [ou retrocessos] na cidade maravilhosa:

Certamente foram essas elites que, tomando a natureza como parâmetro, optaram pela separação da cidade em duas partes: uma vírgula, predominantemente litorânea, abrigando preferencialmente os ricos e remediados; e a outra, do outro lado da grande montanha, reservada aos cidadãos tios como segunda classe. (p. 113)
A criação e crítica acerca da criação do termo urbano, processo de urbanização da cidade:

Da mesma forma que a recente difusão do termo urbano, como sinônimo de cosmopolita e universal, é uma criação dos modernos de hoje, a generalização da ideia de subúrbio como lugar carente, sem ordem nem conforto, habitado por pessoas pobres, sem educação ou refinamento, parece ser uma criação das antigas elites cariocas. (p.112-113)
A obra também descreve o agravamento do racismo e o atravessamento do racismo nas mulheres e nas populações negras:

Que, no Brasil, as mulheres negras sempre foram e continuam sendo mais vitimadas pelo racismo que seus correspondentes masculinos. E que isso é culpa do racismo que estruturou a nossa sociedade desde os tempos coloniais, e ainda permanece vitimando boa parte do nosso povo. Que a culpa disso se deve também ao machismo, que impede as mulheres de desfrutar o que elas mesmo produziram e produzem... (p.127).
Em síntese, a obra criada pelo autor é um retrato claro e palpável das problemáticas sociais e dos problemas advindos da ausência de conhecimento de um povo acerca da real cultura brasileira, que, como sabemos, é fruto da miscigenação dos povos e da caracterização única criada pelos vínculos e pelos elos que alimentam a população do Brasil como um todo. Uma obra provocativa e apimentada para leitores ávidos em busca de uma reflexão e de uma leitura extremamente prazerosa.

O AUTOR

Nei Lopes nasceu em 1942, no subúrbio carioca de Irajá. Ex-advogado, destacou-se como compositor de música popular e depois como escritor, notadamente com os romances Rio Negro, 50 e O preto que falava iídiche, e com os contos de Nas águas desta baía há muito tempo, todos pela Editora Record. Acumula publicações e premiações, como o 58º Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Livro de Não Ficção e Livro do Ano, conquistado com o Dicionário da História Social do Samba (Civilização Brasileira), escrito em coautoria com Luiz Antonio Simas. Em 2022, aos 80 anos, já doutor honoris causa pela UFRRJ e pela UFRGS, recebeu a mesma homenagem da UERJ e da UFRJ.

[RESENHA #616] A ilha, de Adrian Mckinty

APRESENTAÇÃO

Depois de se mudar de uma cidade pequena para Seattle, a jovem Heather se casou com Tom Baxter, um médico recém-viúvo com um filho e uma filha adolescentes. A relação entre Heather e os jovens não é boa, por isso acompanhar Tom a um congresso na Austrália em uma espécie de férias em família parece a oportundiade perfeita para se aproximarem. No entanto, assim que chegam ao destino, tudo que os adolescentes exaustos e com jet lag querem é distância da madrasta. Então a família descobre a ilha Holandesa, um lugar fora da rota turística que parece uma verdadeira aventura, longe dos celulares e do Instagram. Por isso, Tom, Heather e os jovens logo arrumam um jeito de entrar na balsa que faz a travessia do continente até lá.

Mas, assim que colocam os pés na ilha, onde todos os moradores pertencem a uma mesma família, o clã O’Neill, parece que há algo de errado. E um terrível acidente faz a situação dos Baxter passar de um leve desconforto para um pesadelo indescritível. Heather e os adolescentes acabam se separando de Tom, sendo forçados a escapar sozinhos de perseguidores implacáveis. Agora, cabe a Heather garantir a própria segurança e a dos enteados, mesmo que eles não confiem nela, porque, nessa ilha inóspita, a família O’Neill não é o único perigo à espreita.

Por toda a sua vida, Heather foi subestimada, mas ela sabe que é a única capaz de manter a família unida e se tornar a mãe tão desesperadamente necessária àqueles jovens, mesmo que isso signifique fazer o impensável para mantê-los vivos.

RESENHA


Durante uma viagem de uma família americana para ver coalas e a vida selvagem australiana, eles se encontram em uma situação de vida ou morte após causarem um acidente de carro que resulta na morte de uma mulher inocente. Agora, a família está sendo perseguida pela família da vítima, que busca vingança. Enquanto tentam sobreviver aos elementos e se esconder, eles também precisam encontrar uma maneira de contatar a polícia para obter ajuda. Essa história emocionante é um thriller que explora temas como vida, morte e conexões com a natureza, enquanto a família luta para escapar das consequências de suas ações.

O roteiro criado por Mckinty trabalha as relações familiares conflituosas, aqui, Heather [padrasta e atual esposa de Tom] e Tom Baxter, com seus filhos, Olivia, 14, e, Owen, 12, partem para Austrália em uma viagem de negócios, porém, acabam se envolvendo em um acidente que acaba com a morte de uma mulher inocente.  A viagem que seria perfeita para estreitar os laços de Heather com os filhos de seu atual marido, acaba marcada por uma série de eventos trágicos e repletos de tensões ao serem perseguidos pela família da mulher morta, e ao que tudo indica, o mistério está apenas começando. A obra foi recebida com louvor pela crítica, inclusive, pelo autor premiado Stephen King, que declarou esta obra como implacável.

Os Baxters são uma família comum, lidando com os desafios típicos enfrentados por muitas outras famílias. Tom, um médico bem-sucedido, teve sua vida virada de cabeça para baixo quando perdeu sua esposa em um trágico acidente há pouco mais de um ano. Para surpresa de todos, Tom se casou novamente rapidamente, desta vez com Heather, uma massoterapeuta muito mais jovem. Embora Heather pareça amar Tom, ela também carrega preocupações sobre sua origem humilde, que estava prestes a perder seu emprego antes de Tom entrar em sua vida. Os dois filhos de Tom, Olivia e Owen, estão enfrentando dificuldades para se ajustar à nova figura materna que seu pai trouxe repentinamente para suas vidas. Essa dinâmica familiar complexa reflete as tensões e os desafios enfrentados por muitas famílias modernas.

O roteiro acertou em cheio no gatilho na abertura repleta de previsibilidade, porém, cunhou um caminho nada incerto ou previsível na sucessão de acontecimentos. Os baxters decidem tirar um tempo para família em uma ilha onde habitam reclusos que não gostam de forasteiros, só ai, teme-se o pior e isso torna-se um pouco previsível, porém, o autor trabalhou de forma magistral no desenvolvimento de uma narrativa completamente envolvente, cativante e repleta de mistérios. Então, tomamos como ponto de partida a questão: você contaria sobre a morte de alguém que você cometeu sem querer? Talvez você responda sim, mas ao analisar os fatos e os arredores, a resposta provavelmente seria não.

A obra é, se não o melhor, um dos melhores roteiros já escritos na atualidade. Mckinty brinca com o emocional e com a previsibilidade dos fatos para angariar do leitor uma reação inesperada. Um livro inesquecível em uma leitura completamente complexa e repleta de reviravoltas.

O AUTOR

Adrian McKinty nasceu e cresceu em Belfast, na Irlanda do Norte. Estudou filosofia na Universidade de Oxford antes de se mudar para Nova York em meados dos anos 1990. Seu livro de estreia, Dead I Well May Be, publicado em 2003, foi finalista do Gold Dagger Award e do Edgar Award. Em 2011, depois de se mudar para a Austrália com a esposa e as filhas, McKinty começou a publicar a série Sean Duffy, aclamada pela crítica. Em 2019, depois de virar motorista de Uber e quase desistir da carreira de escritor, publicou o premiado best-seller internacional A corrente, que figurou em quase trinta listas de melhores livros do ano, incluindo a da Time, e foi publicado no Brasil pela Editora Record. Os livros de McKinty foram traduzidos para mais de trinta idiomas e ele ganhou o Edgar Award, o International Thriller Writers Award, o Ned Kelly Award (três vezes), o Anthony Award, o Barry Award, o Macavity Award e o Theakston’s Old Peculier Crime Novel of the Year Award.

[RESENHA #615] O homem que compreendeu a democracia: A vida de Alexis de Tocqueville, de Oliver Zunz


APRESENTAÇÃO

De origem nobre e nascido no final do turbulento período de Terror da Revolução Francesa, Alexis de Tocqueville teve muitos de seus familiares presos e até mortos na guilhotina no período que antecedeu o estabelecimento da Primeira República Francesa, em 1794. E mesmo testemunhando o morticínio que levou à mudança de regime, foi uma voz importante de defesa do sistema democrático em detrimento da aristocracia.

Em 1831, aos 25 anos, Alexis de Tocqueville viajou para os Estados Unidos e observou a realidade palpável de uma democracia em funcionamento. Impactado pelos acontecimentos de seu tempo, tornou-se um estudante apaixonado e participante ativo da política liberal, passando a dedicar sua vida e carreira de escritor e político para acabar com o despotismo na França e levar o país a uma nova era democrática.

Olivier Zunz, um dos maiores especialistas em Tocqueville, observa as tentativas desse grande pensador de aplicar as lições de sua obra clássica A democracia na América na política francesa, além de mostrar como os Estados Unidos, e não só a França, ocuparam um lugar central no pensamento e nas ações de Tocqueville ao longo de sua trajetória. No final da vida, com seu país de origem sob o jugo de um regime autoritário e os Estados Unidos divididos pela escravidão, Tocqueville temia que o experimento democrático estivesse prestes a falhar. No entanto, sua paixão pela democracia nunca perdeu o vigor. Faleceu dois anos após o início da Guerra Civil nos Estados Unidos, a tempo de testemunhar uma ação de profunda transformação da sociedade americana.

O homem que compreendeu a democracia é uma biografia completa e inovadora do aristocrata francês que se tornou um dos maiores defensores da democracia. Ao pesquisar a combinação única entre a filosofia e a ação política de Tocqueville, em fontes francesas e americanas, Zunz oferece um retrato cheio de nuances do homem que lutou incansavelmente a favor do único sistema que acreditava poder proporcionar tanto liberdade quanto igualdade.

RESENHA

O livro é uma biografia fascinante que nos leva a um mergulho profundo na vida e no pensamento de um dos mais importantes pensadores políticos da história.

Em “O Homem que Entendeu a Democracia”, Olivier Zunz oferece uma série de detalhes como esses, não deixando escapar nenhum deles. Essa biografia nos apresenta, por vezes com apenas alguns traços reveladores, o jovem aristocrata ambicioso, mas deprimido, cuja extensa família foi massacrada pela guilhotina. Também nos mostra o escritor romântico que trabalhava incansavelmente para dar às suas frases uma simplicidade declamatória, buscando transmitir a verdade revelada através de um único exemplo. Além disso, revela o político liberal que passou seus melhores anos tentando equilibrar o controle sobre a reação monarquista e a revolução socialista, embora muitas vezes tenha sido suspeito de simpatizar com a primeira e nunca com a segunda. Embora Zunz admire claramente Tocqueville, ele não evita abordar o imperialismo apaixonado do próprio Tocqueville, que chegou ao ponto de apoiar a guerra de terra arrasada na Argélia. O autor não se esquiva de abordar essa faceta controversa do pensamento de Tocqueville, oferecendo uma análise crítica e equilibrada de suas ideias e ações.

Essa biografia é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a vida e o legado de Alexis de Tocqueville. Zunz nos proporciona uma visão abrangente e perspicaz desse importante pensador político, destacando tanto suas contribuições significativas para a teoria democrática quanto suas contradições e complexidades. Tocqueville, conhecido por seu trabalho seminal “A Democracia na América”, é retratado de maneira magistral por Zunz, que apresenta uma pesquisa meticulosa e uma narrativa envolvente. O autor nos transporta para a França do século XIX, onde De Tocqueville nasceu e viveu em meio a uma época de grandes transformações sociais e políticas.

A verdadeira essência da biografia, apesar de todas as suas vinhetas reveladoras e contexto histórico, é o pensamento de Tocqueville, acima de tudo, expresso em sua obra "Democracia na América". Tocqueville foi capaz de compreender profundamente a natureza da democracia através de uma combinação de conversas com advogados eruditos e políticos aristocráticos em quem ele confiava, suas preocupações com a política tumultuada de seu país de origem e seu brilhante senso de intuição como psicólogo político. Sua interpretação dos Estados Unidos como uma profecia da vida democrática foi moldada por essas influências e experiências. Tocqueville foi capaz de enxergar além das aparências superficiais e capturar a essência da democracia em sua análise. Ele compreendeu que a democracia não se limitava apenas ao sistema político, mas também abrangia aspectos sociais, culturais e econômicos.

Tocqueville começou a desenvolver seu pensamento antes mesmo de ter um amplo conhecimento sobre o assunto. Ele possuía uma capacidade única de pensar de forma crítica e inovadora, o que moldou sua curta, porém intensa, vida de trabalho como político e intelectual.Zunz explora a formação intelectual de Tocqueville, desde sua educação aristocrática até sua experiência como magistrado e político. O autor nos mostra como as viagens de Tocqueville pelos Estados Unidos influenciaram profundamente seu pensamento, despertando nele uma compreensão única sobre a natureza da democracia e suas implicações para a liberdade e a igualdade. Além disso, o livro examina o contexto histórico em que De Tocqueville viveu, destacando os desafios enfrentados pela França pós-Revolução Francesa e as tensões entre a monarquia e a democracia emergente. Zunz nos mostra como esses eventos moldaram as ideias de Tocqueville e o levaram a se tornar um crítico perspicaz da sociedade e da política de sua época.

Nascido em 1805, Tocqueville cresceu em meio às memórias do período conhecido como o Terror. Sua família foi profundamente afetada pelos eventos da Revolução Francesa, com seus avós, tia, tio e bisavô sendo decapitados em 1794. Seus pais também foram presos e aguardaram a execução, mas sobreviveram devido à queda de Robespierre e ao fim das execuções. Essas experiências deixaram uma marca indelével em Tocqueville, mesmo com a riqueza e conexões de sua família, ele sempre se sentiu politicamente inseguro. Durante as décadas turbulentas de luta dinástica, ele frequentemente se viu em uma posição precária. Tocqueville era um aristocrata que percebia, com razão, que a aristocracia estava sendo gradualmente eliminada e suspeitava que havia nascido em um mundo que não tinha mais lugar para ele. Essa sensação de pertencer a um mundo em extinção moldou sua visão política e sua busca por compreender a natureza da democracia.

Tocqueville acreditava que a política democrática tendia ao fracasso porque a liberdade oficial de pensamento, como a liberdade de expressão, não resultava em liberdade real, mas sim em um novo tipo de conformismo e união de grupo. Ele observou que os americanos, embora teoricamente livres para expressarem suas opiniões, demonstravam menos independência de pensamento e liberdade de discussão do que as pessoas de outros países que ele conhecia. A autoconfiança tranquila dos cidadãos americanos sufocava a dissidência de forma tão eficiente que até mesmo um órgão de censura invejaria.  Tocqueville argumentava que, em uma democracia, a tirania não se manifestava diretamente no controle físico dos indivíduos, mas sim em sua influência sobre a mente das pessoas. Ele observou que um dissidente temia ser rejeitado e abandonado até mesmo por seus amigos, sendo rotulado como "impuro". Para Tocqueville, a tirania nas democracias se manifestava de forma sutil, afetando a alma das pessoas.

Ele também destacou que as democracias tendiam a oscilar entre explosões de energia radical e a estagnação causada pela ambição modesta, ansiedade e conformidade. Tocqueville via a democracia como um sistema complexo, cheio de contradições e desafios. Seus insights críticos sobre os efeitos da democracia na liberdade individual e na formação da opinião pública continuam sendo relevantes até os dias atuais. 

A observação de Tocqueville sobre as chamadas democracias serem frequentemente algo diferente é realmente reveladora e continua sendo verdadeira até hoje. Ele argumentou que essas democracias tendem a se estabilizar evitando a verdadeira democracia, criando suas próprias aristocracias e estabelecendo barreiras ideológicas contra a soberania popular. Essa evasão da democracia pode ser vista como algo a ser valorizado ou superado, dependendo da perspectiva. A capacidade de Tocqueville de enxergar além da fachada da democracia e identificar essas dinâmicas é um presente notável que ele nos deixou ao longo de quase dois séculos. Sua análise crítica nos leva a questionar as estruturas políticas e sociais que se apresentam como democráticas, mas que, na realidade, podem estar longe de alcançar a verdadeira participação e igualdade de poder.

Essa perspectiva de Tocqueville nos convida a refletir sobre o estado atual das democracias ao redor do mundo e a buscar formas de superar as limitações e evasões que podem estar presentes. Sua visão continua sendo uma fonte valiosa de insights e debates sobre a natureza e o futuro da democracia.Uma das maiores conquistas deste livro é a maneira como Zunz ilustra a relevância contínua do pensamento de Tocqueville atualmente. Ele destaca como suas ideias sobre democracia, participação política e o papel da sociedade civil ainda ressoam em debates contemporâneos.

O AUTOR

Olivier Zunz é professor emérito de História na Universidade da Virgínia. Foi professor visitante no Collège de France e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, entre outros. Recebeu fellowships e bolsas de pesquisa de instituições como Ford Foundation, Japan Foundation Center for Global Partnership, John Simon Guggenheim Memorial Foundation, National Endowment for the Humanities e National Science Foundation. É um dos maiores estudiosos de Alexis de Tocqueville, e organizou obras sobre o autor como The Tocqueville Reader: A Life in Letters and Politics, com Alan Kahan; Alexis de Tocqueville and Gustave de Beaumont in America: Their Friendship and Their Travels; e Recollections (1850-1851).

[RESENHA #614] Vento de queimada, de André de Leones


APRESENTAÇÃO

Vento de queimada conta a história de Isabel, historiadora por formação e matadora por deformação. Seu pai, um ex-policial pistoleiro ― ou um pistoleiro ex-policial, já que não há como saber o que veio primeiro ―, trabalha para figuras poderosas e influentes no estado de Goiás. A relação dos dois, assim como suas práticas e seus hábitos, não é estruturada de maneira convencional ― neste vínculo, não se sabe quem é responsável por quem, quem deve ser exemplo para quem. O pai, por ser quem é e por fazer o que faz, de tempos em tempos expõe a filha a incidentes que não lhe dizem respeito, inserindo-a num trágico ambiente de ganância e violência. Estamos nos estertores da ditadura militar, no coração da república, e Isabel se vê cercada por “homens de bem” dos mais diversos tipos. E, às vezes, em ambientes assim, só é possível alcançar a saída atirando.

Autor de romances excepcionais, como Eufrates e Hoje está um dia morto (vencedor do Prêmio SESC de Literatura), André de Leones traz em Vento de queimada um retrato de um país composto por beleza, mas também por horror. Descrito por Luisa Geisler, que assina o texto de orelha, como um “Taratino tropical”, o livro é um convite, um chamamento, que vale a pena ouvir e atender.

RESENHA

André de Leones, em seu livro “Vento de Queimada”, convida o leitor a explorar aspectos pouco conhecidos do Brasil dos anos 1980. O romance se desenrola em meio à violência em Goiânia, Brasília, interior de Goiás, São Paulo e outras cidades, possuindo como protagonista Isabel. Nesse período, encontramo-nos nos momentos finais da ditadura, enquanto diversos tipos de criminosos circulam pelos bastidores da cena política nacional. O livro aborda o custo-Brasil, onde cadáveres se acumulam e, às vezes, a única forma de encontrar uma saída é através da violência. É uma narrativa amoral que retrata seres imorais.

Um romance passado na região Centro-Oeste do Brasil, explorando cidades como Brasília, Goiânia e outras menos conhecidas, como Silvânia, Minaçu e Vianópolis. Esses locais, geralmente ausentes na literatura nacional, nos levam a refletir sobre como o Brasil é verdadeiramente um mosaico de países estrangeiros. A história se desenrola em 1983, durante o governo de João Figueiredo (1979 – 85), marcando o fim do longo período de governos militares. Nenhum dos personagens é inocente, seja como assassinos contratados, políticos corruptos ou simplesmente criminosos. Todos eles causam dor e sofrimento em suas vítimas, buscando lucro máximo e tentando sobreviver.

Na trama, Isabel é a protagonista que, com seu pai William Garcia, um ex-policial, atua como matadora de aluguel. William possui uma tatuagem nas costas com a ilustração invertida de “Behemoth e Leviatã”, de William Blake. A dupla trabalha para figuras poderosas e influentes no estado de Goiás, intermediados por Gordon, um estrangeiro, com acesso livre a políticos e empresários brasileiros. Além disso, ele mantém um relacionamento amoroso intenso com Isabel em seus momentos livres. Ao longo da história, os detalhes da peculiar dupla de assassinos, pai e filha, são revelados gradualmente, incluindo os eventos que levaram Isabel a abandonar sua carreira como historiadora. Como ela costuma dizer, “a vida no circo não é fácil”.

“Vento de Queimada” é um roteiro de faroeste brasileiro que utiliza a estrutura dos capítulos como referência às obras de Xenofontes, um historiador e filósofo ateniense que foi discípulo de Sócrates. Os capítulos são intitulados Anábase, Catábase e Parábase, seguindo essa inspiração. Além disso, o texto também faz referências literárias e históricas, especialmente nos diálogos bem-humorados entre Isabel e Gordon. André de Leones, o autor, demonstra um domínio completo das técnicas narrativas, criando um romance criativo e envolvente, recomendado para quem busca entretenimento e reflexão ao mesmo tempo.

Um romance arrebatador que cativará gerações por sua genialidade.

O AUTOR


André de Leones (Goiânia, 1980) é autor dos romances:  Vento de queimada (Record, 2023), Eufrates (José Olympio, 2018), Abaixo do paraíso (Rocco, 2016), Terra de casas vazias (Rocco, 2013), Dentes negros (Rocco, 2011), Como desaparecer completamente (Rocco, 2010) e Hoje está um dia morto (Record, 2006), a coletânea de contos Paz na Terra entre os monstros (Record, 2008) e o livro infantojuvenil Daniel está viajando (Quase Oito, 2019). Vive atualmente em São Paulo.

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