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CRÍTICA: Platoon (1986)

Imagem: Mubi / Reprodução

Platoon (1986), dirigido por Oliver Stone, é uma obra seminal do cinema de guerra que transcende o gênero ao oferecer uma visão crua, visceral e profundamente pessoal do conflito no Vietnã. Lançado em um momento em que os Estados Unidos ainda lidavam com as cicatrizes psicológicas e culturais da Guerra do Vietnã, o filme se destaca por sua autenticidade, impulsionada pela experiência de Stone como veterano, e por sua abordagem moralmente complexa, que evita glorificar a guerra ou demonizar seus participantes. Estrelado por Charlie Sheen, Willem Dafoe e Tom Berenger, Platoon é tanto um retrato da brutalidade do combate quanto uma meditação sobre a perda da inocência, a divisão moral e o impacto da guerra na psique humana. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, design de produção, temas e impacto cultural —, oferecendo uma avaliação detalhada de sua relevância histórica e cinematográfica.

Platoon segue Chris Taylor (Charlie Sheen), um jovem voluntário americano que chega ao Vietnã em 1967, cheio de idealismo e ingenuidade. Integrado a um pelotão de infantaria na selva, Chris enfrenta não apenas o inimigo vietcongue, mas também as tensões internas entre seus companheiros, divididos entre dois sargentos opostos: Elias (Willem Dafoe), um líder compassivo e humanista, e Barnes (Tom Berenger), um comandante endurecido e implacável. À medida que Chris testemunha atrocidades cometidas por ambos os lados, incluindo um massacre em uma vila vietnamita, ele é forçado a confrontar sua própria moralidade e a brutalidade da guerra. O filme culmina em uma batalha devastadora que testa as lealdades do pelotão e marca a transformação de Chris de um novato idealista em um sobrevivente desiludido.

Lançado em 19 de dezembro de 1986, Platoon foi um marco no cinema de guerra, vindo na esteira de filmes como Apocalypse Now (1979) e The Deer Hunter (1978), mas distinguindo-se por sua perspectiva de trincheira, baseada nas experiências reais de Oliver Stone no Vietnã. Produzido com um orçamento modesto de US$ 6 milhões, o filme arrecadou mais de US$ 138 milhões globalmente e venceu quatro Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor. No Brasil, Platoon estreou em 1987, resonando com um público que via paralelos entre a desilusão do Vietnã e os desafios políticos da redemocratização. Sua abordagem realista e crítica consolidou-o como um clássico, influenciando gerações de cineastas e permanecendo relevante em discussões sobre guerra e moralidade.

A narrativa de Platoon é estruturada como uma jornada de amadurecimento, narrada em primeira pessoa por Chris Taylor através de cartas fictícias à sua avó. Essa narração em voz off, embora criticada por alguns como redundante, serve para ancorar o espectador na perspectiva de Chris, cuja ingenuidade inicial é gradualmente destruída pela realidade da guerra. O filme segue uma progressão linear, dividida em três atos: a chegada de Chris ao Vietnã, sua integração no pelotão e a batalha final, que funciona como um clímax moral e físico.

Stone utiliza uma abordagem quase documental, com cenas de combate caóticas e uma atenção meticulosa aos detalhes da vida na selva — o calor, os insetos, a exaustão. A narrativa é pontuada por momentos de introspecção, como as conversas noturnas no acampamento, onde os soldados fumam maconha e discutem a guerra, e por sequências de violência gráfica, como o massacre na vila, que ecoa eventos reais como o massacre de My Lai. A tensão entre Elias e Barnes, que representam polos morais opostos, é o cerne do conflito interno do pelotão, transformando Platoon em uma alegoria sobre a luta entre o bem e o mal dentro da humanidade.

O estilo narrativo de Stone é visceral e imersivo, rejeitando a romantização da guerra vista em filmes anteriores, como The Green Berets (1968). A comparação com Apocalypse Now é inevitável, mas enquanto o filme de Coppola adota um tom surreal e filosófico, Platoon é mais direto, focando na experiência cotidiana dos soldados rasos. Algumas críticas apontam que a narração de Chris pode ser excessivamente didática, explicando sentimentos que as imagens já transmitem, mas a força da narrativa reside em sua capacidade de capturar a desorientação e o trauma da guerra sem oferecer respostas fáceis.

Oliver Stone, que serviu no Vietnã em 1967-68, traz uma autenticidade inigualável a Platoon. Sua direção é marcada por uma urgência emocional e um compromisso com a verdade, resultado de sua experiência pessoal e de uma pesquisa rigorosa que incluiu entrevistas com veteranos. Stone exigiu que o elenco, composto principalmente por jovens atores, passasse por um treinamento militar intensivo nas Filipinas, onde o filme foi rodado, para capturar a exaustão e o desespero dos soldados. Essa imersão resultou em performances e cenas de combate que parecem dolorosamente reais.

Imagem: Mubi / Reprodução

A visão artística de Stone é definida por um equilíbrio entre realismo e simbolismo. A selva vietnamita, com sua vegetação densa e luz filtrada, é filmada como um espaço opressivo que engole os soldados, enquanto momentos como a morte de Elias, com os braços abertos em uma pose quase crística, elevam a narrativa a um nível alegórico. Stone também faz uso de contrastes, como a tranquilidade das cenas no acampamento contra a brutalidade das batalhas, para destacar a dualidade da experiência da guerra.

Apesar de sua força, a direção de Stone foi criticada por alguns como excessivamente melodramática, especialmente na trilha sonora e em momentos como a morte de Elias, que pode parecer estilizada demais. Além disso, a representação dos vietnamitas, embora limitada pela perspectiva americana, é às vezes estereotipada, com os civis e soldados inimigos recebendo pouco desenvolvimento. No entanto, essas limitações não diminuem o impacto da direção de Stone, que transforma Platoon em um testemunho poderoso sobre os custos da guerra.

O elenco de Platoon entrega performances memoráveis, com Charlie Sheen, Willem Dafoe e Tom Berenger formando o coração emocional do filme. Sheen, como Chris Taylor, captura a transformação de um jovem idealista em um homem marcado pelo trauma. Sua atuação, embora menos experiente que a de seus colegas, é crível, com momentos de vulnerabilidade que refletem a perda de inocência do personagem. A cena em que Chris confronta Barnes no clímax é um destaque, mostrando sua evolução de passividade para ação.

Willem Dafoe, como Elias, é a alma moral do filme. Sua interpretação combina força e compaixão, com um olhar que transmite empatia mesmo em meio ao caos. A cena de sua morte, icônica e frequentemente referenciada, é elevada pela intensidade de Dafoe, que transforma Elias em um símbolo de resistência à desumanização. Tom Berenger, como Barnes, oferece uma performance igualmente poderosa, retratando um homem endurecido pela guerra, cuja brutalidade é tanto aterrorizante quanto tragicamente humana. O confronto entre Elias e Barnes é um dos pontos altos do filme, com Dafoe e Berenger criando uma tensão palpável.

O elenco de apoio, incluindo Johnny Depp, Forest Whitaker e John C. McGinley, adiciona profundidade ao pelotão, com cada ator trazendo nuances aos seus papéis. A química entre os soldados, forjada durante o treinamento, é evidente nas cenas de camaradagem e conflito, criando a sensação de uma unidade real. A ausência de grandes estrelas na época da produção reforça a autenticidade, com os atores desaparecendo em seus papéis.

A fotografia de Robert Richardson, que mais tarde colaboraria com Stone em JFK e Nascido em 4 de Julho, é um dos pilares de Platoon. Filmado nas Filipinas, o filme utiliza a selva como um cenário opressivo, com uma paleta de verdes escuros e marrons que reflete o isolamento e o perigo. Richardson emprega iluminação natural, com luz filtrada pelas árvores criando sombras que aumentam a sensação de claustrofobia. As cenas de combate são caóticas, com movimentos de câmera rápidos e enquadramentos instáveis que capturam a desorientação da guerra.

O design de produção, liderado por Bruno Rubeo, é minimalista, mas eficaz, com os acampamentos improvisados e as vilas vietnamitas recriadas com atenção aos detalhes históricos. Os uniformes rasgados, as armas sujas e os rostos cobertos de suor dos soldados reforçam o realismo, enquanto objetos como rádios e cigarros evocam a cultura dos anos 60. A vila queimada durante o massacre é um dos cenários mais impactantes, com sua destruição servindo como um símbolo da devastação causada pela guerra.

A trilha sonora de Platoon é dominada pela icônica “Adagio for Strings” de Samuel Barber, que se tornou sinônimo do filme. A composição, usada em momentos-chave como a morte de Elias, adiciona uma camada de tragédia e eleva a narrativa a um nível universal. No entanto, alguns críticos, como Roger Ebert, apontaram que o uso repetitivo do “Adagio” pode ser excessivamente manipulador, embora sua potência emocional seja inegável.

O design de som, supervisionado por Gordon Daniel, é igualmente impressionante, com o rugido de helicópteros, o estalar de tiros e o som da selva — insetos, pássaros, chuva — criando uma imersão total. As explosões e os gritos dos soldados são mixados para refletir a confusão do combate, enquanto os momentos de silêncio, como as pausas entre batalhas, intensificam a tensão. Músicas diegéticas, como “Tracks of My Tears” de Smokey Robinson, tocadas nos rádios do pelotão, adicionam um toque de nostalgia e humanidade.


Imagem: GoToon! / Reprodução

Platoon é uma exploração profunda da moralidade em tempos de guerra, com Elias e Barnes representando os dois lados da alma humana. Elias, com sua compaixão e relutância em cometer atrocidades, é um símbolo da humanidade preservada, enquanto Barnes, com sua brutalidade e pragmatismo, encarna a desumanização causada pelo conflito. Chris, como o narrador, é o espectador, preso entre esses dois polos e forçado a escolher seu caminho.

O filme também aborda a perda da inocência, com a jornada de Chris refletindo a desilusão de uma geração que acreditava na guerra como uma causa nobre. A selva, com sua beleza e perigo, é uma metáfora para a guerra, um espaço onde as regras da civilização desaparecem. O massacre na vila vietnamita, inspirado em My Lai, é um dos momentos mais perturbadores, expondo a capacidade dos soldados comuns de cometerem atos monstruosos sob pressão.

A crítica ao imperialismo americano é sutil, mas presente, com o filme questionando a justificativa da intervenção no Vietnã. A diversidade do pelotão, com soldados negros, brancos e latinos, reflete as tensões raciais dos EUA na época, enquanto a camaradagem entre eles sugere uma unidade forjada pela adversidade. A cena final, com Chris refletindo sobre sua experiência, é uma meditação sobre a sobrevivência e a responsabilidade de carregar as lições da guerra.

Platoon foi um sucesso crítico e comercial, com uma aprovação de 88% no Rotten Tomatoes e elogios de críticos como Pauline Kael, que o chamou de “um grito de angústia”. No Brasil, o filme foi recebido com entusiasmo, especialmente por sua relevância em um período de redemocratização, com críticos do Jornal do Brasil destacando sua honestidade brutal. No entanto, alguns veteranos criticaram o filme por exagerar a violência interna do pelotão, enquanto outros o elogiaram por capturar a essência do Vietnã.

O impacto cultural de Platoon foi profundo, influenciando filmes de guerra como Saving Private Ryan (1998) e Black Hawk Down (2001). Sua abordagem realista redefiniu o gênero, afastando-o da glorificação e aproximando-o da crítica social. No Brasil, o filme ressoou com discussões sobre militarismo e violência, especialmente em um contexto de transição política. A cena da morte de Elias tornou-se um ícone cultural, referenciada em filmes, músicas e memes.

Comparado a A Zona de Interesse (2023), Platoon é mais visceral e narrativo, mas ambos exploram a moralidade em contextos extremos. Em relação a Saltburn (2023), que também apresenta Barry Keoghan, Platoon é mais sóbrio, mas compartilha a intensidade emocional. O Mal Não Existe (2023), de Ryûsuke Hamaguchi, oferece um contraponto contemplativo, enquanto Acabe com Eles (2024) ecoa os temas de violência e culpa em um cenário rural.

Platoon é uma obra-prima do cinema de guerra que combina autenticidade, intensidade emocional e uma crítica poderosa ao custo humano do conflito. Oliver Stone, com sua direção visceral, atuações brilhantes de Willem Dafoe, Tom Berenger e Charlie Sheen, e uma fotografia imersiva, cria um filme que é tanto um testemunho histórico quanto uma meditação atemporal sobre a moralidade. Apesar de algumas críticas ao seu tom melodramático, Platoon permanece um marco do cinema, capturando a desilusão de uma geração e desafiando o espectador a confrontar as complexidades da guerra. No Brasil, sua relevância persiste em debates sobre violência e responsabilidade, enquanto seu impacto global o consagra como um clássico indispensável. Platoon não é apenas um filme sobre o Vietnã, mas uma reflexão profunda sobre o que significa ser humano em meio ao caos.

CRÍTICA: A Zona de interesse (2023)

Imagem: Divulgação

A Zona de Interesse (The Zone of Interest, 2023), dirigido por Jonathan Glazer, é uma obra-prima inquietante que redefine o cinema sobre o Holocausto ao abordar o tema não através das atrocidades explícitas, mas pelo vazio moral de quem vive ao lado delas. Baseado no romance homônimo de Martin Amis, o filme mergulha na vida cotidiana da família de Rudolf Höss (Christian Friedel), o comandante de Auschwitz, que reside em uma casa idílica adjacente ao campo de extermínio. Com uma abordagem austera, Glazer utiliza a banalidade do dia a dia para explorar a cumplicidade silenciosa no genocídio, criando uma experiência cinematográfica que é tanto um estudo histórico quanto uma meditação filosófica sobre a desumanização. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, design de produção, temas e impacto cultural —, oferecendo uma avaliação abrangente de sua relevância, potência e legado no cinema contemporâneo.

A Zona de Interesse centra-se na família Höss, que vive uma existência aparentemente normal em uma casa confortável cercada por jardins, a poucos metros do campo de concentração de Auschwitz, na Polônia ocupada pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Rudolf Höss (Christian Friedel), um oficial da SS, supervisiona as operações do campo, enquanto sua esposa, Hedwig (Sandra Hüller), cuida da casa, dos filhos e de um estilo de vida burguês que inclui chás, jantares e passeios familiares. A rotina doméstica dos Höss é constantemente interrompida por sinais do horror além do muro: fumaça das chaminés, gritos abafados e o som de tiros. Quando Rudolf é transferido para outra função, a família enfrenta a possibilidade de abandonar sua “vida perfeita”, revelando as tensões internas e a frieza com que encaram sua cumplicidade.

Lançado no Festival de Cannes de 2023, onde venceu o Grande Prêmio do Júri, A Zona de Interesse foi aclamado por sua abordagem inovadora ao Holocausto, evitando imagens explícitas do campo para focar na perspectiva dos perpetradores. Produzido pela A24 e coproduzido entre Reino Unido, Polônia e Estados Unidos, o filme estreou nos cinemas brasileiros em fevereiro de 2024 e foi indicado a cinco Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor, vencendo nas categorias de Melhor Filme Internacional e Melhor Som. Sua relevância transcende o contexto histórico, oferecendo um comentário atemporal sobre a normalização da violência e a indiferença moral em tempos de crise.

A narrativa de A Zona de Interesse é deliberadamente minimalista, rejeitando arcos dramáticos tradicionais em favor de uma abordagem observacional que captura a rotina dos Höss com precisão clínica. O filme é estruturado como uma série de vinhetas, com cenas curtas que mostram atividades cotidianas — Hedwig experimentando roupas, as crianças brincando no jardim, Rudolf revisando documentos — interrompidas por sons distantes do campo. Essa ausência de um enredo convencional é intencional, refletindo a banalidade do mal, conceito popularizado por Hannah Arendt, que argumentava que os crimes nazistas foram cometidos por indivíduos comuns que seguiam ordens sem questionar.

Glazer evita qualquer tentativa de humanizar ou redimir os Höss, mantendo o espectador a uma distância emocional que amplifica o desconforto. A narrativa não oferece catarse ou resolução, culminando em uma cena final que conecta o passado ao presente de maneira sutil, mas devastadora, com imagens do museu de Auschwitz hoje. Essa escolha reforça a ideia de que o filme não é apenas sobre o Holocausto, mas sobre a capacidade humana de ignorar o sofrimento alheio em nome do conforto pessoal.

O estilo narrativo é profundamente influenciado pelo cinema experimental e pelo “slow cinema”, com longas tomadas estáticas e uma ausência quase total de música diegética. A comparação com outros filmes sobre o Holocausto, como A Lista de Schindler (1993) ou O Filho de Saul (2015), destaca a singularidade de A Zona de Interesse, que troca a representação direta da violência por uma crítica indireta, mas igualmente poderosa. No entanto, o ritmo lento e a falta de desenvolvimento emocional podem frustrar espectadores que esperam uma narrativa mais convencional, embora sejam precisamente essas escolhas que tornam o filme tão impactante.

Jonathan Glazer, conhecido por filmes como Under the Skin (2013) e Sexy Beast (2000), entrega sua obra mais madura e ambiciosa com A Zona de Interesse. Sua direção é marcada por uma precisão austera, com cada quadro meticulosamente planejado para maximizar o contraste entre a beleza superficial da vida dos Höss e o horror implícito além do muro. Glazer passou anos pesquisando o projeto, consultando arquivos históricos e sobreviventes, além de filmar na Polônia com uma equipe que incluiu técnicos locais para garantir autenticidade.

Uma das escolhas mais notáveis de Glazer é o uso de câmeras escondidas, instaladas dentro da casa dos Höss, que capturam as cenas sem a presença direta da equipe de filmagem. Essa técnica cria uma sensação de voyeurismo, como se o espectador estivesse espionando a intimidade de uma família que escolheu ignorar o genocídio a poucos metros de distância. A decisão de nunca mostrar o interior do campo de Auschwitz reforça o foco na perspectiva dos perpetradores, obrigando o público a imaginar o horror através de pistas sonoras e visuais.

A direção de Glazer também se destaca pelo uso de sequências térmicas em preto e branco, que mostram uma garota polonesa escondendo comida para prisioneiros, um raro momento de resistência no filme. Essas cenas, filmadas com uma câmera infravermelha, contrastam com a frieza do resto da narrativa, sugerindo uma faísca de humanidade em meio à desumanização. Apesar de sua genialidade, a abordagem de Glazer foi criticada por alguns como excessivamente distante, com a falta de contexto histórico dificultando a compreensão para espectadores menos familiarizados com o Holocausto. Ainda assim, sua visão artística é inegavelmente poderosa, transformando uma história específica em uma reflexão universal sobre a cumplicidade.

O elenco de A Zona de Interesse entrega performances contidas, mas devastadoras, que capturam a frieza e a normalidade dos Höss. Christian Friedel, como Rudolf, é a personificação da eficiência burocrática, com uma atuação que equilibra formalidade e indiferença. Sua interpretação é particularmente marcante nas cenas em que discute logística do campo com a mesma naturalidade com que planeja o jantar, destacando a banalidade de sua crueldade.

Imagem: Reprodução

Sandra Hüller, como Hedwig, é o coração emocional do filme, embora sua emoção seja cuidadosamente reprimida. Hüller, que também estrelou Anatomia de uma Queda (2023), traz uma complexidade assustadora ao papel, retratando Hedwig como uma mulher que se orgulha de sua “vida perfeita” enquanto ignora o sofrimento ao seu redor. Sua entrega de falas como “Nós somos os pioneiros” é ao mesmo tempo cômica e aterrorizante, revelando a cegueira moral de uma mulher que se vê como vítima de circunstâncias.

Os atores infantis, que interpretam os filhos dos Höss, adicionam uma camada de desconforto, com suas brincadeiras inocentes contrastando com os sons do campo. A ausência de grandes nomes no elenco reforça a autenticidade do filme, com Friedel e Hüller ancorando a narrativa sem recorrer a exageros dramáticos. A escolha de atores alemães, falando em alemão com sotaques precisos, adiciona uma camada de realismo que intensifica o impacto emocional.

A fotografia de Łukasz Żal, indicado ao Oscar por Guerra Fria (2018), é um dos elementos mais impressionantes de A Zona de Interesse. O filme utiliza uma paleta de cores suaves, com tons pastéis que contrastam com a escuridão do tema. A casa dos Höss, com seus jardins bem cuidados e interiores impecáveis, é filmada com enquadramentos simétricos que evocam ordem e harmonia, criando um contraste perturbador com os sinais do campo — fumaça, cinzas e luzes vermelhas ao longe.

Żal emprega longas tomadas estáticas, muitas vezes filmadas de ângulos amplos, para enfatizar a normalidade da vida dos Höss. A câmera raramente se move, reforçando a sensação de estagnação moral. As sequências térmicas, com sua estética monocromática, adicionam um elemento quase sobrenatural, enquanto as cenas finais no museu de Auschwitz, filmadas com uma luz fria e clínica, conectam o passado ao presente de maneira poderosa.

O design de produção, liderado por Chris Oddy, é meticuloso, com a casa dos Höss recriada com base em registros históricos. A proximidade da casa com o campo é enfatizada pelo muro alto que separa os dois espaços, uma barreira física e simbólica que representa a negação dos Höss. Detalhes como as roupas de Hedwig, muitas vezes feitas de tecidos roubados de prisioneiros, adicionam camadas de crítica à narrativa.

A trilha sonora de Mica Levi, colaboradora de longa data de Glazer, é minimalista e perturbadora, composta por drones e sons dissonantes que aparecem esporadicamente. A música é usada com parcimônia, surgindo em momentos de tensão, como a abertura do filme, que apresenta uma tela preta acompanhada por um som grave que prepara o espectador para o desconforto. Levi, conhecida por seu trabalho em Under the Skin, cria uma atmosfera de inquietação que complementa a narrativa sem dominá-la.

O design de som, premiado com o Oscar, é o verdadeiro protagonista sonoro do filme. Liderado por Johnnie Burn, o som do campo de Auschwitz — gritos abafados, tiros, o rugido das fornalhas — permeia cada cena, mesmo as mais banais. Esses sons são cuidadosamente mixados para serem percebidos, mas não dominarem, criando uma tensão constante que contrasta com a tranquilidade visual da casa dos Höss. O ruído de um rio, que Hedwig menciona como “relaxante”, é ironicamente o mesmo rio onde cinzas de vítimas eram despejadas, um detalhe que amplifica a crítica à indiferença.

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A Zona de Interesse é uma meditação sobre a banalidade do mal, explorando como indivíduos comuns podem se tornar cúmplices de atrocidades através da indiferença e da racionalização. O filme não retrata os Höss como monstros, mas como pessoas que normalizaram o horror em nome do conforto e da ambição. Hedwig, por exemplo, vê sua vida em Auschwitz como uma conquista, enquanto Rudolf trata o extermínio como uma tarefa administrativa, uma mentalidade que ecoa a burocratização do genocídio descrita por Arendt.

O filme também aborda a desumanização, não apenas das vítimas do Holocausto, mas dos próprios perpetradores, que sacrificam sua humanidade para manter o status quo. O muro que separa a casa do campo é um símbolo poderoso da negação, enquanto o jardim de Hedwig, cultivado com tanto cuidado, representa a fachada de normalidade que encobre a barbárie. As sequências térmicas, com a garota polonesa, oferecem um contraponto de esperança, sugerindo que a resistência, mesmo que pequena, é possível em meio à escuridão.

A relevância contemporânea do filme é inegável, com paralelos traçados entre a indiferença dos Höss e a apatia moderna diante de crises como mudanças climáticas, desigualdade social e conflitos globais. A cena final, com imagens do museu de Auschwitz, reforça a ideia de que o passado não é apenas história, mas um alerta para o presente.

A Zona de Interesse foi amplamente aclamado, com uma aprovação de 93% no Rotten Tomatoes e elogios de publicações como The New Yorker, que o descreveu como “um dos filmes mais importantes sobre o Holocausto já feitos”. No Brasil, o filme foi celebrado em críticas do AdoroCinema e CinePOP, que destacaram sua abordagem inovadora e o impacto emocional do som. No entanto, alguns espectadores, conforme comentários no X, acharam o filme “frio” ou “difícil de assistir” devido à sua distância emocional e ritmo lento.

O impacto cultural do filme foi significativo, com debates sobre sua relevância em um mundo marcado por polarização e negação histórica. No Brasil, A Zona de Interesse ressoou com discussões sobre memória e responsabilidade, especialmente em um contexto de revisões históricas controversas. Sua vitória no Oscar e exibições em festivais como a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo reforçaram seu status como uma obra essencial.

Comparado a Saltburn (2023), A Zona de Interesse é mais contido e filosófico, mas ambos exploram a moralidade em contextos extremos. Em relação a O Mal Não Existe (2023), de Ryûsuke Hamaguchi, há paralelos na crítica à indiferença humana, embora Glazer opte por uma abordagem mais austera. A influência de Acabe com Eles (Bring Them Down, 2024) é menos direta, mas a presença de temas como violência e culpa sugere uma conexão temática com as tensões rurais exploradas anteriormente.

A Zona de Interesse é uma obra-prima que desafia o espectador a confrontar a banalidade do mal através de uma abordagem austera e inovadora. Jonathan Glazer, com sua direção precisa, atuações brilhantes de Christian Friedel e Sandra Hüller, fotografia hipnotizante e um design de som revolucionário, cria um filme que é ao mesmo tempo histórico e atemporal. Embora sua distância emocional e ritmo lento possam ser desafiadores, essas escolhas reforçam sua potência como uma crítica à indiferença humana. No Brasil, o filme ressoa como um lembrete da importância da memória e da responsabilidade coletiva, enquanto sua relevância global o torna um marco do cinema contemporâneo. A Zona de Interesse não é apenas um filme para ser assistido, mas uma experiência para ser refletida, discutida e carregada como um alerta contra a normalização do horror.

CRÍTICA: Saltburn (2020)

Imagem: Jovem Nerd / Divulgação

Saltburn (2023), dirigido por Emerald Fennell, é uma obra audaciosa que mistura thriller psicológico, sátira social e drama gótico, ambientada no cenário opulento da aristocracia britânica. Após sua estreia com Promising Young Woman (2020), que venceu o Oscar de Melhor Roteiro Original, Fennell retorna com um filme que desafia convenções narrativas e estéticas, explorando temas como obsessão, privilégio, inveja e desejo. Estrelado por Barry Keoghan, Jacob Elordi e Rosamund Pike, Saltburn é uma experiência cinematográfica polarizadora, marcada por uma estética exuberante, atuações intensas e uma narrativa que oscila entre o provocador e o excessivo. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, design de produção, temas e impacto cultural —, oferecendo uma avaliação detalhada de suas qualidades, controvérsias e relevância no cinema contemporâneo.

Saltburn acompanha Oliver Quick (Barry Keoghan), um estudante de classe média que ingressa na Universidade de Oxford em 2006. Isolado em um ambiente dominado pela elite britânica, Oliver desenvolve uma obsessão por Felix Catton (Jacob Elordi), um aristocrata carismático e popular. Após conquistar a amizade de Felix, Oliver é convidado para passar o verão na propriedade da família Catton, Saltburn, uma mansão gótica no interior da Inglaterra. Lá, ele conhece a excêntrica mãe de Felix, Elspeth (Rosamund Pike), o pai, Sir James (Richard E. Grant), a irmã, Venetia (Alison Oliver), e o primo, Farleigh (Archie Madekwe). O que começa como uma história de ascensão social e desejo se transforma em um jogo psicológico de manipulação, traição e violência, com reviravoltas que desafiam as expectativas do público.

Lançado em novembro de 2023 pela Amazon MGM Studios, Saltburn estreou no Festival de Telluride e rapidamente se tornou um fenômeno cultural, impulsionado por seu impacto nas redes sociais, onde cenas provocativas — como a infame sequência da banheira e a dança final — geraram debates acalorados. Com uma trilha sonora nostálgica dos anos 2000 e uma estética que evoca tanto o glamour quanto o grotesco, o filme conquistou um público jovem, mas dividiu a crítica, com elogios à sua ousadia e críticas ao seu excesso estilístico. No Brasil, Saltburn foi distribuído pela Prime Video, alcançando grande popularidade, especialmente entre espectadores que apreciam narrativas transgressoras.

A narrativa de Saltburn é estruturada em três atos distintos, cada um com uma mudança de tom que reflete a evolução da obsessão de Oliver. O primeiro ato, ambientado em Oxford, apresenta o contraste entre a insegurança de Oliver e o magnetismo de Felix, estabelecendo a dinâmica de poder que permeia o filme. Fennell utiliza uma narração em voz off de Oliver, que guia o espectador por sua perspectiva, criando uma intimidade desconfortável que se intensifica à medida que suas intenções se tornam ambíguas. O segundo ato, na mansão Saltburn, mergulha no hedonismo da família Catton, com festas extravagantes e interações carregadas de tensão sexual e manipulação. O terceiro ato, marcado por reviravoltas chocantes, transforma o filme em um thriller gótico, com um desfecho que é ao mesmo tempo catártico e divisivo.

O estilo narrativo de Fennell é intencionalmente provocador, misturando humor negro, sátira e elementos de horror psicológico. Inspirada em obras como The Talented Mr. Ripley e Brideshead Revisited, Saltburn explora a inveja de classe e o desejo de pertencimento, mas o faz com uma abordagem moderna, cheia de referências pop e uma estética que flerta com o camp. A estrutura não linear, com flashbacks e revelações tardias, mantém o espectador desorientado, enquanto a voz off de Oliver adiciona uma camada de ironia, sugerindo que ele está no controle da narrativa desde o início.

No entanto, a narrativa tem suas falhas. Alguns críticos, como os do The New York Times, apontaram que o filme sacrifica profundidade emocional em favor de choques visuais, com reviravoltas que parecem mais calculadas para gerar buzz do que para enriquecer a história. Além disso, a sátira social, embora mordaz, às vezes carece de sutileza, com a caricatura da elite britânica beirando o exagero. Apesar disso, a habilidade de Fennell em criar momentos memoráveis compensa essas limitações, tornando Saltburn uma experiência inesquecível, mesmo para quem questiona sua coerência.

Emerald Fennell demonstra uma confiança impressionante em sua segunda obra como diretora. Sua visão artística é definida por uma estética maximalista, que combina opulência visual com momentos de desconforto visceral. Fennell descreveu Saltburn como uma “carta de amor à Inglaterra gótica”, inspirada por romances como Rebecca de Daphne du Maurier e filmes como The Servant (1963). A mansão Saltburn, com seus corredores labirínticos e salas ornamentadas, é um personagem à parte, refletindo tanto a decadência da aristocracia quanto a obsessão de Oliver por apropriar-se desse mundo.

Imagem: Divulgação / Reprodução

A direção de Fennell brilha em sua capacidade de equilibrar tons contrastantes. As cenas de festa, com luzes vibrantes e música pulsante, capturam o hedonismo da elite, enquanto os momentos mais íntimos, como a sequência da banheira, são filmados com uma crueza que beira o horror. Sua decisão de usar um formato de tela 1.33:1, incomum para um filme contemporâneo, cria uma sensação de claustrofobia, mesmo em espaços amplos, reforçando o tema da prisão psicológica. A colaboração com o diretor de fotografia Linus Sandgren (La La Land) resulta em uma paleta de cores ricas, com tons de vermelho, dourado e azul que evocam tanto luxo quanto perigo.

Apesar de sua ousadia, a direção de Fennell foi criticada por alguns como autoindulgente. O excesso de cenas chocantes, como a sequência do cemitério, pode parecer gratuito, e a falta de um arco emocional mais profundo para personagens secundários, como Venetia e Farleigh, limita o impacto da narrativa. Ainda assim, a habilidade de Fennell em criar imagens icônicas e provocar reações viscerais garante que Saltburn permaneça gravado na memória do espectador.

O elenco de Saltburn é um dos seus maiores trunfos, com performances que elevam o material provocador de Fennell. Barry Keoghan, como Oliver, entrega uma atuação transformadora, navegando com maestria entre vulnerabilidade, astúcia e psicopatia. Sua presença física, marcada por olhares intensos e gestos calculados, torna Oliver um protagonista fascinante e perturbador. A cena da dança final, ao som de “Murder on the Dancefloor” de Sophie Ellis-Bextor, é um testemunho de sua habilidade em dominar a tela.

Jacob Elordi, como Felix, é igualmente magnético, trazendo carisma e uma ingenuidade trágica ao papel. Sua química com Keoghan é elétrica, com cada interação carregada de tensão homoerótica que alimenta a narrativa. Rosamund Pike, como Elspeth, rouba cenas com seu humor mordaz e uma performance que equilibra excentricidade e frieza. Sua entrega de falas como “I was a lesbian for a while, you know” é um exemplo perfeito do tom camp que permeia o filme.

Richard E. Grant, Alison Oliver e Archie Madekwe completam o elenco com atuações sólidas, embora seus papéis sejam menos desenvolvidos. Grant, como Sir James, oferece momentos de humor seco, enquanto Oliver e Madekwe, como Venetia e Farleigh, trazem nuances de vulnerabilidade e ressentimento. A química coletiva do elenco, especialmente nas cenas de jantar, cria uma dinâmica familiar que é ao mesmo tempo sedutora e disfuncional, refletindo a decadência da elite.

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A fotografia de Linus Sandgren é um dos elementos mais elogiados de Saltburn. O filme alterna entre imagens de tirar o fôlego, como os planos aéreos da mansão iluminada por fogos de artifício, e momentos de intimidade desconfortável, como os close-ups na banheira. Sandgren utiliza luz natural para destacar a beleza da paisagem rural inglesa, enquanto as cenas internas são banhadas em tons dourados e vermelhos, evocando uma opulência que beira a decadência. O formato 1.33:1, com bordas pretas, intensifica a sensação de confinamento, mesmo em espaços vastos, enquanto os enquadramentos simétricos reforçam o controle obsessivo de Oliver.

O design de produção, liderado por Suzie Davies, é igualmente impressionante. A mansão Saltburn, filmada na Drayton House em Northamptonshire, é um labirinto de salas ornamentadas, espelhos e tapeçarias que refletem o peso da história aristocrática. Objetos como o labirinto de jardim e as estátuas de pedra adicionam um toque gótico, enquanto detalhes modernos, como CDs e pôsteres dos anos 2000, ancoram o filme em sua época. A atenção aos detalhes, desde os figurinos extravagantes até a decoração kitsch, cria um mundo que é ao mesmo tempo aspiracional e grotesco.

A trilha sonora de Saltburn é uma cápsula do tempo dos anos 2000, com faixas como “Mr. Brightside” do The Killers, “Low” de Flo Rida e “Murder on the Dancefloor” de Sophie Ellis-Bextor, que se tornou um viral nas redes sociais após a estreia do filme. A escolha de músicas pop reflete o hedonismo da época e adiciona um contraste irônico às cenas mais sombrias, enquanto a partitura original de Anthony Willis, com cordas dramáticas, intensifica o tom gótico. A integração da trilha com a narrativa é exemplar, com a dança final de Oliver sendo um dos momentos mais icônicos do cinema recente.

O design de som é igualmente eficaz, com o ruído de copos tilintando, passos ecoando nos corredores e o crepitar de fogueiras criando uma atmosfera imersiva. Sons específicos, como a sucção na cena da banheira, são amplificados para provocar desconforto, enquanto o silêncio em momentos-chave, como o confronto no labirinto, aumenta a tensão. A combinação de música e som reforça o equilíbrio entre o glamour e o grotesco que define o filme.

Saltburn é uma exploração multifacetada de temas como classe, desejo, inveja e poder. A narrativa de ascensão social de Oliver é uma crítica à rigidez do sistema de classes britânico, com a família Catton representando uma aristocracia que é ao mesmo tempo sedutora e decadente. Fennell utiliza a mansão Saltburn como um símbolo do privilégio herdado, um espaço que Oliver deseja possuir, mesmo que isso exija a destruição de seus ocupantes.

O desejo homoerótico é outro tema central, com a relação entre Oliver e Felix carregada de tensão sexual que nunca é plenamente consumada. Cenas como a da banheira e do cemitério exploram o desejo como uma força destrutiva, enquanto a dança final sugere uma apropriação total do espaço e da identidade de Felix. A inveja, por sua vez, é retratada como um motor narrativo, com Oliver manipulando as fraquezas da família Catton para alcançar seus objetivos.

O filme também satiriza a superficialidade da elite, com diálogos mordazes que expõem a desconexão dos Catton com a realidade. Elspeth, por exemplo, representa uma aristocracia que se vê como benevolente, mas é incapaz de reconhecer sua própria crueldade. O simbolismo gótico, como o labirinto e os espelhos, reforça a ideia de uma narrativa circular, onde o passado e o presente se entrelaçam em um ciclo de destruição.

Saltburn recebeu críticas mistas, com uma aprovação de 71% no Rotten Tomatoes. Publicações como The Hollywood Reporter elogiaram sua estética e atuações, especialmente a de Keoghan, enquanto o The Guardian criticou sua falta de sutileza e excesso de choques. No Brasil, o filme foi amplamente discutido em plataformas como o AdoroCinema, que destacou sua capacidade de provocar debate, embora alguns críticos locais, como os do Omelete, tenham apontado que a sátira perde força no terceiro ato.

O impacto cultural de Saltburn foi amplificado pelas redes sociais, com memes e vídeos no TikTok e no X transformando cenas como a dança final em fenômenos virais. A trilha sonora, especialmente “Murder on the Dancefloor”, experimentou um ressurgimento nas paradas musicais, enquanto a estética do filme inspirou tendências de moda e decoração. No contexto brasileiro, Saltburn ressoou com audiências jovens que apreciam narrativas transgressoras, com paralelos traçados com filmes como Parasita (2019), que também explora desigualdade de classe.

Comparado a Acabe com Eles (Bring Them Down, 2024), Saltburn compartilha a atuação de Barry Keoghan e a exploração de tensões sociais, mas difere em seu cenário aristocrático e tom satírico. Em relação a O Mal Não Existe (2023), de Ryûsuke Hamaguchi, Saltburn é mais extrovertido e menos contemplativo, mas ambos questionam a moralidade humana em contextos específicos. A influência de Fallen Angels (1995), de Wong Kar-wai, pode ser vista na estética visual de Fennell, embora Saltburn seja mais narrativo e menos poético.

Saltburn é uma obra provocadora que combina ousadia estética, atuações brilhantes e uma crítica mordaz à sociedade de classes. Emerald Fennell entrega um filme que é ao mesmo tempo um espetáculo visual e uma sátira social, embora sua tendência ao excesso possa alienar alguns espectadores. Com Barry Keoghan liderando um elenco estelar, uma fotografia deslumbrante e uma trilha sonora inesquecível, Saltburn se estabelece como um marco do cinema contemporâneo, especialmente para uma geração que abraça narrativas transgressoras. No Brasil, o filme encontrou um público entusiasmado, refletindo sua capacidade de transcender fronteiras culturais. Apesar de suas imperfeições, Saltburn é uma experiência cinematográfica que desafia, seduz e permanece na memória, consolidando Emerald Fennell como uma das vozes mais ousadas de sua geração.

CRÍTICA: O Mal não existe (2023)

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O Mal Não Existe (Aku wa Sonzai Shinai, 2023), dirigido pelo aclamado cineasta japonês Ryûsuke Hamaguchi, é uma obra que transcende as expectativas de um drama ecológico, transformando-se em uma meditação profunda sobre a relação entre humanidade, natureza e moralidade. Após o sucesso global de Drive My Car (2021), que conquistou o Oscar de Melhor Filme Internacional, Hamaguchi retorna com um filme que combina contemplação estética, narrativa enigmática e uma crítica sutil, mas contundente, ao capitalismo predatório. Ambientado na vila rural de Mizubiki, próxima a Tóquio, o filme explora as tensões entre uma comunidade local e uma empresa que planeja construir um acampamento de luxo, ou “glamping”, ameaçando o equilíbrio ambiental e social do vilarejo. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, design de produção, temas e impacto cultural — em uma exploração detalhada que atende ao pedido de um texto extenso e envolvente.

O Mal Não Existe segue Takumi (Hitoshi Omika), um lenhador e faz-tudo que vive com sua filha, Hana (Ryo Nishikawa), na vila de Mizubiki, uma comunidade rural cercada por florestas e riachos cristalinos. A vida dos moradores é marcada pela simplicidade e pela harmonia com a natureza, com atividades como cortar lenha, coletar água de nascentes e cultivar alimentos definindo o ritmo cotidiano. Esse equilíbrio é ameaçado quando uma empresa de entretenimento de Tóquio anuncia planos para construir um acampamento de luxo na região, um projeto que promete atrair turistas urbanos em busca de uma “fuga” para a natureza, mas que coloca em risco o abastecimento de água e a biodiversidade local. A resistência dos moradores, liderada por Takumi, e as interações com os representantes da empresa, Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), formam o cerne do conflito, que evolui de uma disputa prática para uma alegoria sobre o impacto humano no meio ambiente.

Lançado no Festival de Veneza de 2023, onde conquistou o Grande Prêmio do Júri (Leão de Prata), O Mal Não Existe é uma colaboração entre Hamaguchi e a compositora Eiko Ishibashi, cuja trilha sonora desempenha um papel central na narrativa. O filme, com 106 minutos de duração, estreou nos cinemas brasileiros em julho de 2024 e foi amplamente discutido por sua abordagem contemplativa e por um desfecho ambíguo que dividiu opiniões. Sua relevância no cenário cinematográfico atual reside na capacidade de abordar questões ambientais sem cair em clichês, enquanto mantém a assinatura estilística de Hamaguchi: um cinema que privilegia a observação, a ambiguidade e a profundidade emocional.

A narrativa de O Mal Não Existe é estruturada em três atos distintos, cada um com aproximadamente 30 minutos, uma precisão quase matemática que contrasta com a aparente fluidez do filme. O primeiro ato é puramente contemplativo, introduzindo o espectador ao universo de Mizubiki através de longos travellings pelas copas das árvores e cenas do cotidiano de Takumi e Hana. Essa abertura, que pode desanimar espectadores menos pacientes, estabelece a conexão visceral entre a comunidade e a natureza, com a câmera de Hamaguchi adotando a perspectiva da floresta, como se a própria natureza observasse os humanos.

O segundo ato apresenta o conflito central, com a chegada dos representantes da empresa para uma reunião com os moradores. A cena da assembleia é um dos pontos altos do filme, combinando humor sutil e tensão crescente. Os moradores, inicialmente receptivos, questionam o projeto com argumentos fundamentados sobre o impacto ambiental, revelando a superficialidade dos planos da empresa. Hamaguchi utiliza diálogos naturais, cheios de hesitações e mal-entendidos, para expor as contradições do discurso corporativo, sem recorrer a vilões caricatos.

O terceiro ato marca uma virada inesperada, transformando o filme em um suspense ecológico com tons místicos. Sem revelar spoilers, o desfecho abandona a contemplação inicial e mergulha em uma narrativa sombria e enigmática, que deixa mais perguntas do que respostas. Essa mudança brusca de tom foi criticada por alguns como desconcertante, mas é precisamente essa ambiguidade que torna o filme memorável, desafiando o espectador a interpretar o que constitui o “mal” do título.

A estrutura narrativa reflete a influência do “slow cinema”, com longas tomadas que convidam à imersão, mas também dialoga com o suspense, remetendo ao trabalho de Kiyoshi Kurosawa, mentor de Hamaguchi. A ausência de catarse tradicional e a recusa em oferecer explicações fáceis reforçam a ideia de que a narrativa é menos sobre resolução e mais sobre provocar reflexão.

Ryûsuke Hamaguchi consolida sua reputação como um dos grandes cineastas da atualidade com O Mal Não Existe. Sua direção é marcada por uma sensibilidade única, que combina precisão técnica com uma abordagem intuitiva. Inspirado pela colaboração com Eiko Ishibashi, Hamaguchi concebeu o filme como um diálogo entre imagens e música, com a trilha sonora moldando a narrativa desde a fase de roteiro. Essa inversão do processo criativo — onde as imagens foram criadas para complementar a música, e não o contrário — resulta em uma obra que é tanto visual quanto sensorial.

Hamaguchi faz escolhas ousadas, como os cortes abruptos que interrompem a trilha sonora e as cenas, criando um senso de estranhamento que ecoa o conceito freudiano de Das Unheimliche (o estranho familiar). A transição de um drama realista para um conto alegórico no terceiro ato demonstra sua coragem em desafiar convenções, mesmo que isso custe a acessibilidade do filme. A influência de sua formação em estética e cinema, bem como sua admiração por diretores como Robert Bresson e Eric Rohmer, é evidente na maneira como ele equilibra minimalismo e complexidade emocional.

Apesar de suas qualidades, a direção de Hamaguchi não está isenta de críticas. O ritmo lento do primeiro ato pode alienar espectadores que esperam um conflito mais imediato, e a falta de desenvolvimento profundo para personagens secundários, como Takahashi e Mayuzumi, pode frustrar quem busca maior conexão emocional. No entanto, essas escolhas são consistentes com a proposta do filme, que prioriza a temática ambiental e a alegoria em detrimento de arcos individuais.

O elenco de O Mal Não Existe entrega performances contidas, mas poderosas, que refletem o estilo naturalista de Hamaguchi. Hitoshi Omika, que também trabalhou como assistente de direção em outros filmes de Hamaguchi, é a âncora do filme como Takumi. Sua interpretação é minimalista, com poucas falas e gestos sutis que transmitem uma mistura de estoicismo, ternura e intensidade reprimida. A cena da assembleia, onde Takumi confronta os representantes da empresa com argumentos precisos, destaca a força de Omika, que transforma um homem comum em um símbolo de resistência.

Ryo Nishikawa, como Hana, é uma revelação. Sua presença na tela, marcada por curiosidade infantil e uma conexão intuitiva com a natureza, adiciona leveza ao filme e serve como um fio condutor emocional. A relação entre Takumi e Hana, embora pouco verbalizada, é o coração do filme, com momentos como o passeio na floresta ilustrando a transmissão de valores entre gerações.

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Ryuji Kosaka e Ayaka Shibutani, como os representantes da empresa, trazem humanidade aos seus papéis, evitando estereótipos. Suas performances capturam a ambiguidade moral de pessoas presas em um sistema capitalista, com momentos de dúvida e empatia que complicam a dicotomia entre “heróis” e “vilões”. O elenco secundário, composto por moradores da vila, adiciona autenticidade, com diálogos improvisados que reforçam a sensação de uma comunidade real.

A fotografia de Yoshio Kitagawa é um dos elementos mais impressionantes de O Mal Não Existe. O filme abre com um travelling prolongado pelas copas das árvores, filmado de baixo para cima contra um céu branco, criando uma sensação de imersão na floresta. A paleta de cores, dominada por tons de branco, verde e cinza, reflete a pureza e a fragilidade do ambiente natural, enquanto as tomadas noturnas do terceiro ato, com um azul escuro intenso, evocam mistério e ameaça.

Kitagawa utiliza enquadramentos que posicionam a natureza como protagonista, com os personagens frequentemente vistos à distância, como se fossem parte de um ecossistema maior. A transição do travelling inicial, que representa harmonia, para o plano final, com uma floresta envolta em escuridão, é um exemplo magistral de como a fotografia reforça a narrativa. O design de produção é minimalista, com locações reais em Mizubiki que destacam a autenticidade do vilarejo, desde as casas rústicas até os riachos cristalinos.

A trilha sonora de Eiko Ishibashi é um componente essencial do filme, funcionando como um personagem à parte. Composta por cordas sinistras e melodias minimalistas, a música cria uma dualidade de serenidade e aflição, refletindo o equilíbrio precário entre harmonia e conflito. Ishibashi, que colaborou com Hamaguchi em Drive My Car, utiliza silêncios estratégicos e cortes abruptos para intensificar o estranhamento, especialmente nas cenas de transição.

O design de som é igualmente notável, com o ruído da floresta — o canto dos pássaros, o fluxo da água, o vento nas árvores — criando uma paisagem sonora imersiva. Sons ocasionais, como tiros distantes de caçadores, introduzem uma sensação de ameaça sutil, enquanto o silêncio nas cenas noturnas amplifica a tensão. A integração entre trilha e som ambiente é tão orgânica que o espectador é levado a sentir a floresta como um espaço vivo e vulnerável.

O Mal Não Existe é, em sua essência, uma fábula ecológica que questiona a relação da humanidade com a natureza. O título, aparentemente ingênuo, é uma provocação: o “mal” não é uma entidade distinta, mas uma força difusa que emerge das ações humanas, particularmente do capitalismo irresponsável. O projeto de glamping simboliza a exploração predatória, com sua promessa de “conexão com a natureza” mascarando interesses financeiros. Hamaguchi critica a superficialidade do turismo ecológico, que transforma ecossistemas em mercadorias, sem considerar o impacto nas comunidades locais.

O filme também explora a ideia de equilíbrio, um conceito central na filosofia japonesa. Takumi, em uma cena, explica que a chave para a sobrevivência da vila é respeitar os ciclos naturais, uma lição que a empresa ignora. A presença de cervos, descritos como pacíficos, mas perigosos quando feridos, serve como uma metáfora para a natureza: bela e generosa, mas capaz de retaliar quando agredida. Hana, com sua curiosidade infantil, representa o futuro da humanidade, enquanto sua vulnerabilidade no terceiro ato simboliza o custo da negligência ambiental.

A ambiguidade moral é outro tema crucial. Hamaguchi evita maniqueísmos, retratando os representantes da empresa não como vilões, mas como indivíduos presos em um sistema que os desumaniza. A cena em que Takahashi expressa admiração pela vida simples de Takumi ilustra o desejo humano por conexão autêntica, mesmo em meio à alienação corporativa. O desfecho, com sua violência enigmática, sugere que o “mal” pode não ser externo, mas uma força interna desencadeada pelo desequilíbrio.

O Mal Não Existe foi amplamente elogiado pela crítica internacional, com destaque para sua estreia em Veneza, onde recebeu uma ovação de oito minutos. Publicações como The Guardian e Variety destacaram sua complexidade e poder sensorial, enquanto o ScreenDaily o descreveu como “absorvente” e “silenciosamente poderoso”. No Brasil, o filme foi celebrado em plataformas como o AdoroCinema e o CinePOP, que elogiaram sua crítica social e a coragem de Hamaguchi em adotar um desfecho provocador. No entanto, algumas críticas, como as publicadas no AdoroCinema, apontaram o ritmo lento e o final ambíguo como barreiras para o público geral, com espectadores menos familiarizados com o “slow cinema” expressando frustração.

No contexto brasileiro, O Mal Não Existe ressoa com questões locais, como a preservação da Amazônia e os conflitos entre comunidades tradicionais e interesses corporativos. A cena da assembleia, com moradores confrontando forasteiros, ecoa debates sobre megaprojetos em áreas indígenas, tornando o filme relevante para audiências que enfrentam dilemas semelhantes. Sua exibição na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e a distribuição pela Imovision reforçaram seu impacto no circuito de arte, embora seu apelo comercial seja limitado pelo estilo contemplativo.

O filme também dialoga com outras obras que abordam tensões rurais, como Acabe com Eles (Bring Them Down, 2024), que explora rivalidades familiares na Irlanda rural, e As Bestas (2022), que trata de conflitos entre locais e forasteiros na Galícia. Em comparação, O Mal Não Existe se distingue por sua abordagem filosófica e pela integração de elementos místicos, que o aproximam de uma parábola. A influência de Fallen Angels (1995), de Wong Kar-wai, é menos direta, mas a ênfase de Hamaguchi na trilha sonora e na estética sensorial sugere uma conexão com o cinema asiático que privilegia a experiência sobre a narrativa linear.

O Mal Não Existe é uma obra-prima contemplativa que consolida Ryûsuke Hamaguchi como um dos cineastas mais inovadores da atualidade. Com sua narrativa enigmática, fotografia deslumbrante e trilha sonora hipnótica, o filme oferece uma experiência sensorial que provoca reflexão sobre a relação entre humanidade e natureza. Embora seu ritmo lento e desfecho ambíguo possam dividir opiniões, essas escolhas reforçam sua força como uma fábula ecológica que desafia clichês e convida o espectador a questionar o que constitui o “mal”. Para o público brasileiro, a obra ressoa com questões ambientais e sociais urgentes, enquanto sua universalidade a torna um marco do cinema contemporâneo. O Mal Não Existe não é apenas um filme para ser assistido, mas uma jornada para ser sentida, discutida e lembrada.

CRÍTICA: Fallen Angels (1995)

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Fallen Angels (Do lok tin si | 墮落天使), dirigido por Wong Kar-wai e lançado em 1995, é uma obra-prima do cinema de Hong Kong que encapsula a essência da solidão urbana, do desejo efêmero e da alienação em uma metrópole vibrante e caótica. Como um companheiro espiritual de Chungking Express (1994), o filme explora duas narrativas entrelaçadas que, embora distintas, convergem tematicamente para pintar um retrato poético e visceral da vida noturna de Hong Kong nos anos que antecedem a transferência de soberania para a China em 1997. Com sua estética neon, cinematografia inovadora e trilha sonora hipnótica, Fallen Angels é tanto uma experiência sensorial quanto uma meditação filosófica sobre conexão humana, amor e identidade. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, design de produção, temas e impacto cultural —, oferecendo uma avaliação abrangente de sua relevância e legado.

Fallen Angels apresenta duas histórias paralelas ambientadas no submundo noturno de Hong Kong. A primeira segue Wong Chi-ming (Leon Lai), um assassino de aluguel que deseja abandonar a vida de crimes, sua agente (Michelle Reis), que é secretamente apaixonada por ele, e Blondie (Karen Mok), uma prostituta com quem ele desenvolve uma relação intensa e volátil. A segunda narrativa centra-se em Ho Chi-mo (Takeshi Kaneshiro), um ex-presidiário mudo que vive à margem da sociedade, ocupando lojas fechadas à noite para vender produtos e interagindo com Charlie (Charlie Yeung), uma jovem obcecada por um ex-namorado. As histórias, embora não se cruzem diretamente, compartilham uma atmosfera de desconexão e melancolia, com o pano de fundo de uma Hong Kong pré-transição que reflete a ansiedade coletiva da época.

Lançado em 6 de setembro de 1995, Fallen Angels foi inicialmente concebido como o terceiro segmento de Chungking Express, mas Wong Kar-wai optou por desenvolvê-lo como um filme independente devido às diferenças tonais e à sua duração. A obra é frequentemente descrita como o “lado escuro” de Chungking Express, trocando o romantismo esperançoso do antecessor por uma visão mais niilista e fragmentada. Com diálogos em cantonês, mandarim e taiwanês, o filme reflete a diversidade linguística de Hong Kong, enquanto sua estética neon e ritmo frenético capturam a energia de uma cidade em transformação.

A narrativa de Fallen Angels é estruturada em duas histórias distintas que se alternam sem uma conexão explícita, exceto por breves momentos de sobreposição, como a presença de personagens em espaços compartilhados, como lanchonetes ou túneis. Wong Kar-wai utiliza uma abordagem não linear, com cortes rápidos, narração em voz off e flashbacks que criam uma sensação de desorientação. Essa fragmentação reflete o estado emocional dos personagens, que vagam por uma cidade que parece ao mesmo tempo íntima e alienante. A narração, em particular, é um recurso central, oferecendo acesso aos pensamentos mais profundos dos personagens, como quando Ho Chi-mo reflete sobre o amor: “Em 30 de maio de 1995, finalmente me apaixonei pela primeira vez. Estava chovendo naquela noite.”

A estrutura narrativa é menos sobre progressão linear e mais sobre capturar momentos fugazes. Wong Kar-wai prioriza a textura emocional em detrimento de um enredo tradicional, uma escolha que pode frustrar espectadores acostumados a histórias convencionais. No entanto, essa abordagem é precisamente o que torna o filme único: ele não busca resolver os conflitos dos personagens, mas sim imergir o espectador em suas experiências. A ausência de um clímax tradicional reforça a ideia de que a vida, como a cidade, é um ciclo contínuo de encontros e despedidas.

A comparação com Chungking Express é inevitável, mas Fallen Angels se distingue por seu tom mais sombrio e por sua exploração de personagens mais marginais. Enquanto Chungking Express celebra o potencial de conexões humanas, Fallen Angels sugere que essas conexões são frequentemente ilusórias, marcadas por mal-entendidos e desejos não correspondidos. A narrativa, portanto, funciona como uma montagem poética, onde cada cena é uma pincelada em um quadro maior sobre a condição humana.

Wong Kar-wai é amplamente reconhecido como um dos grandes autores do cinema, e Fallen Angels exemplifica sua habilidade de combinar estilo visual com profundidade emocional. Sua direção é caracterizada por uma confiança ousada, inspirada em cineastas como Jean-Luc Godard, que também desafiavam convenções narrativas. Wong ignora as expectativas do público, criando um filme que é mais sobre sensação do que sobre lógica. Ele descreve Fallen Angels como sua “fantasia de Hong Kong”, uma visão idealizada de uma cidade silenciosa e menos populosa, em contraste com sua realidade frenética.

A colaboração com o cineasta Christopher Doyle é fundamental para o sucesso do filme. Doyle’s cinematografia, com seus ângulos inclinados, lentes grande-angulares e movimentos de câmera fluidos, transforma Hong Kong em um labirinto onírico. Wong também faz uso criativo de mudanças de aspecto, com a restauração em 4K de 2020 apresentando o filme em 2.39:1, uma escolha que intensifica a sensação de confinamento e distorção. Essa decisão, embora controversa entre fãs que preferem a versão original em 1.79:1, reflete a visão de Wong de reimaginar a obra para uma nova geração.

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Apesar de sua genialidade, a direção de Wong tem limitações. Alguns críticos apontam que o foco excessivo no estilo visual pode ofuscar o desenvolvimento dos personagens, deixando-os como arquétipos em vez de figuras plenamente realizadas. Além disso, o ritmo desigual, com momentos que oscilam entre a lentidão contemplativa e a energia maníaca, pode alienar espectadores menos familiarizados com o cinema de arte.

O elenco de Fallen Angels entrega performances que equilibram intensidade emocional e excentricidade estilizada. Leon Lai, como Wong Chi-ming, traz uma frieza calculada ao assassino, mas também momentos de vulnerabilidade que humanizam o personagem. Sua química com Michelle Reis, que interpreta a agente obcecada, é sutil, mas poderosa, especialmente nas cenas em que ela explora o apartamento dele, tentando decifrar sua vida através de objetos descartados. Reis, por sua vez, oferece uma performance hipnótica, capturando a solidão e o desejo reprimido de sua personagem com gestos mínimos e olhares intensos.

Takeshi Kaneshiro é o destaque do filme, trazendo humor e pathos ao papel de Ho Chi-mo. Sua mudez, resultado de um trauma envolvendo abacaxis vencidos, é compensada por uma expressividade física que torna suas cenas memoráveis, especialmente as sequências cômicas em que ele “reabre” lojas à noite. A interação de Kaneshiro com Charlie Yeung é carregada de ternura, mesmo que a relação entre eles permaneça ambígua. Yeung, por sua vez, infunde sua personagem com uma energia caótica que contrasta com a melancolia do filme.

Karen Mok, como Blondie, adiciona uma camada de excentricidade ao filme, com sua peruca loira e atitude descompromissada. Embora seu papel seja menor, ela deixa uma impressão duradoura, especialmente na cena em que dança ao som de “Forget Him” em um restaurante McDonald’s. O elenco, no geral, trabalha dentro dos limites do estilo de Wong, onde os personagens são mais símbolos de estados emocionais do que figuras realistas.

A cinematografia de Christopher Doyle é o coração visual de Fallen Angels. Usando lentes grande-angulares e câmeras portáteis, Doyle captura Hong Kong como um espaço claustrofóbico e vibrante, onde luzes neon e sombras criam um contraste constante. As cenas noturnas, que dominam o filme, são banhadas em tons de verde, vermelho e azul, evocando uma sensação de artificialidade e alienação. A escolha de ângulos inusitados, como close-ups extremos e enquadramentos tortos, reforça a desconexão dos personagens, enquanto os movimentos rápidos da câmera refletem a energia inquieta da cidade.

O design de produção, liderado por William Chang, complementa a cinematografia com cenários que misturam o mundane e o surreal. Apartamentos apertados, lanchonetes 24 horas e túneis subterrâneos são retratados com uma atenção meticulosa aos detalhes, criando um senso de autenticidade que ancora a estética estilizada do filme. A restauração em 4K destaca a textura desses ambientes, desde o brilho das placas de neon até a sujeira das vielas.

A trilha sonora de Fallen Angels é uma parte integrante de sua identidade. Wong Kar-wai faz uso de pop e trip-hop, com destaque para “Because I’m Cool” de Nogabe Randriaharimalala, uma reorquestração de “Karmacoma” do Massive Attack, e uma versão dream pop de “Forget Him” cantada por Shirley Kwan. Essas músicas não apenas estabelecem o tom, mas também funcionam como comentários emocionais, como quando “Forget Him” ecoa os sentimentos não expressos da agente de Wong Chi-ming.

O design de som é igualmente impressionante, com o ruído da cidade — trens, tráfego, conversas abafadas — criando uma paisagem sonora imersiva. A narração em voz off, muitas vezes em tom confessional, adiciona uma camada de intimidade, permitindo que o espectador entre na mente dos personagens. A combinação de música e som transforma Fallen Angels em uma experiência quase sinestésica, onde cada elemento auditivo reforça a narrativa visual.

Fallen Angels é uma meditação sobre a solidão, o desejo e a transitoriedade da vida urbana. O filme explora a ideia de que, em uma cidade superpovoada, as conexões humanas são raras e frequentemente efêmeras. Wong Kar-wai usa Hong Kong como um microcosmo para essas ideias, retratando-a como um “labirinto de obsessões” onde os personagens estão presos em seus próprios mundos internos.

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A alienação é um tema central, refletida na incapacidade dos personagens de formar relacionamentos duradouros. A agente de Wong Chi-ming, por exemplo, expressa seu amor através de gestos indiretos, como limpar o apartamento dele, enquanto Ho Chi-mo busca conexão através de encontros casuais. O filme também aborda a identidade, com personagens que parecem flutuar sem raízes, desconectados de qualquer senso de pertencimento.

O contexto político de Hong Kong pré-1997 adiciona uma camada de simbolismo. A ansiedade em torno da transferência de soberania é palpável, com a cidade retratada como um espaço de incerteza e instabilidade. A cena final, em que a agente e Ho Chi-mo atravessam o Túnel Cross-Harbour em uma motocicleta, é um momento de conexão fugaz que encapsula a esperança e a melancolia do filme: um breve instante de calor humano em um mundo frio e impessoal.

Fallen Angels recebeu aclamação crítica por sua inovação estética e profundidade emocional, embora tenha sido inicialmente menos celebrado que Chungking Express devido à sua natureza mais sombria e experimental. No entanto, ao longo dos anos, o filme conquistou um status cult, especialmente entre fãs de cinema de arte e cinéfilos que apreciam o trabalho de Wong Kar-wai. A restauração em 4K de 2020, supervisionada pelo próprio diretor, reacendeu o interesse na obra, embora as mudanças no aspecto e na coloração tenham gerado debate entre puristas.

No Brasil, Fallen Angels encontrou um público dedicado em festivais de cinema e plataformas de streaming, onde é frequentemente citado como uma introdução ideal ao cinema de Wong Kar-wai. Sua influência pode ser vista em obras contemporâneas que exploram a estética neon e temas de alienação urbana, como Drive (2011) e Blade Runner 2049 (2017). O filme também inspirou discussões acadêmicas sobre a representação de Hong Kong e a pós-modernidade no cinema asiático.

Fallen Angels é uma obra singular que combina estilo visual deslumbrante com uma exploração profunda da condição humana. Wong Kar-wai, apoiado pela cinematografia de Christopher Doyle e pela trilha sonora evocativa, cria um retrato inesquecível de Hong Kong como um espaço de beleza e desespero. Apesar de suas imperfeições, como o ritmo ocasionalmente desigual e a ênfase no estilo em detrimento da narrativa, o filme permanece uma experiência cinematográfica envolvente que ressoa com espectadores em todo o mundo. Para o público brasileiro, Fallen Angels oferece uma janela para a sensibilidade única de Wong Kar-wai, convidando-nos a refletir sobre amor, perda e a busca por conexão em um mundo fragmentado. É, sem dúvida, um marco do cinema que continua a inspirar e encantar quase três décadas após seu lançamento.

CRÍTICA: Acabe com eles (2024)

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Acabe com Eles (Bring Them Down, 2024), dirigido por Christopher Andrews em sua estreia como diretor de longas-metragens, é um thriller dramático irlandês que mergulha fundo em temas como rivalidade, trauma, violência e masculinidade tóxica. Ambientado nas paisagens rurais da Irlanda, o filme apresenta uma narrativa complexa, estruturada de forma não linear, que explora as tensões entre duas famílias de fazendeiros e os conflitos internos que as corroem. Com um elenco estelar liderado por Christopher Abbott e Barry Keoghan, a obra se destaca pela intensidade emocional, pela fotografia lúgubre e por uma abordagem ousada que desafia o espectador a montar o quebra-cabeça de uma história trágica. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, temas e recepção —, oferecendo uma visão abrangente de suas qualidades e limitações.

Acabe com Eles gira em torno de Michael (Christopher Abbott), um jovem pastor que vive isolado em uma fazenda com seu pai doente, Ray (Colm Meaney). A trama começa com a perda de dois cordeiros, um evento aparentemente trivial que desencadeia uma guerra entre a família de Michael e a de Gary (Paul Ready), um fazendeiro vizinho, e seu filho instável, Jack (Barry Keoghan). O conflito, alimentado por rivalidades antigas, traumas pessoais e tensões familiares, escala para consequências devastadoras, marcadas por violência física e psicológica. A narrativa, que mistura elementos de fábula irlandesa com um estudo de personagens, explora como o ciclo de violência perpetua o sofrimento em uma comunidade rural.

O filme, uma coprodução entre Irlanda, Reino Unido e Bélgica, teve sua estreia no Festival do Rio 2024 e chegou ao streaming em 2025, recebendo atenção por sua abordagem crua e pela escolha de incluir diálogos em gaélico irlandês, uma decisão que reforça sua autenticidade cultural, mas também limita seu apelo comercial. A obra se alinha a outros dramas recentes que abordam a violência masculina, como o espanhol As Bestas e o brasileiro Oeste Outra Vez, mas se diferencia por sua estrutura narrativa inovadora e pela profundidade psicológica de seus personagens.

A narrativa de Acabe com Eles é um dos seus elementos mais distintos e ambiciosos. Christopher Andrews opta por uma montagem não linear, descrita por críticos como “semi-rashomônica”. Diferentemente do clássico Rashomon, que reconta eventos a partir de perspectivas conflitantes, o filme apresenta uma história fragmentada que revela informações aos poucos, como peças de um quebra-cabeça. A primeira metade segue uma linha temporal aparentemente linear, centrada em Michael, mas com lacunas sutis que só se tornam claras na segunda metade, quando o ponto de vista muda para Jack e outros personagens. Essa abordagem cria uma experiência envolvente, mas exige atenção do espectador para conectar os eventos.

A estrutura não linear não é um mero artifício estilístico; ela reflete a perspectiva limitada de Michael, que, como protagonista, não tem acesso a todos os fatos. Por exemplo, a cena inicial, que mostra um acidente de carro envolvendo a mãe de Michael, Peggy (Susan Lynch), e sua namorada, Caroline (Grace Daly), é revisitada mais tarde, revelando novos detalhes que recontextualizam o evento. Essa escolha narrativa intensifica o impacto emocional, pois o espectador é levado a questionar suas próprias suposições sobre culpa e responsabilidade.

No entanto, a narrativa não linear tem suas falhas. Alguns críticos apontam que a fragmentação pode confundir o público, especialmente porque as transições entre os pontos de vista nem sempre são fluidas. Além disso, os momentos cômicos prometidos na divulgação do filme são raros e, quando ocorrem, parecem deslocados, interrompendo o tom sombrio da obra. Apesar disso, a estrutura narrativa é eficaz ao criar suspense e ao reforçar a ideia de que a verdade é complexa e multifacetada.

Christopher Andrews, que começou sua carreira como assistente de câmera e dirigiu curtas-metragens, demonstra um talento notável em sua estreia. Sua decisão de usar o gaélico irlandês, uma língua pouco acessível até para falantes nativos de inglês, é um risco criativo que sublinha sua recusa em se curvar às convenções do cinema comercial. Andrews equilibra a crueza da violência com momentos de introspecção, criando um filme que é ao mesmo tempo visceral e contemplativo.

Imagem: Reprodução

A direção de Andrews brilha na construção da tensão. A sequência inicial, com o diálogo entre Peggy, Michael e Caroline no carro, começa de forma cotidiana, mas rapidamente se torna angustiante, estabelecendo o tom do filme. O diretor também faz uso inteligente do ambiente rural, transformando as paisagens irlandesas em um personagem à parte. Os campos abertos e as estradas estreitas não apenas contextualizam a história, mas também amplificam a sensação de isolamento e claustrofobia.

No entanto, Andrews não está imune a críticas. Alguns momentos do filme, especialmente na primeira metade, sofrem com um ritmo irregular, com cenas que se prolongam além do necessário. Além disso, a tentativa de incorporar elementos de fábula irlandesa nem sempre se integra perfeitamente à narrativa, resultando em um tom que oscila entre o realismo psicológico e o simbolismo exagerado.

O elenco de Acabe com Eles é um dos seus maiores trunfos. Christopher Abbott entrega uma performance poderosa como Michael, um homem atormentado pela culpa e pela raiva reprimida. Sua interpretação é contida, mas profundamente expressiva, especialmente nas cenas em que confronta as consequências de suas ações. Abbott consegue transmitir a complexidade de um personagem que é tanto vítima quanto agente de violência, tornando Michael um protagonista trágico e humano.

Barry Keoghan, como Jack, oferece uma atuação igualmente impressionante. Conhecido por papéis intensos em filmes como The Banshees of Inisherin e Saltburn, Keoghan traz uma energia volátil ao personagem, que alterna entre vulnerabilidade e agressividade. Sua performance é particularmente marcante nas cenas que exploram a relação conturbada com seu pai, Gary, e com Caroline, revelando as camadas de um jovem preso em um ciclo de violência.

Colm Meaney, como Ray, e Paul Ready, como Gary, também entregam atuações sólidas, embora seus papéis sejam menos desenvolvidos. Meaney, em particular, transmite a amargura de um homem debilitado física e emocionalmente, enquanto Ready explora a inveja e a frustração de um pai que projeta suas falhas no filho. As atrizes Nora-Jane Noone e Susan Lynch, embora com tempo de tela limitado, deixam uma forte impressão, especialmente Lynch, cuja breve aparição como Peggy é carregada de emoção.

A direção de fotografia de Nick Cooke é um dos elementos mais elogiados do filme. Cooke utiliza uma paleta de cores desbotadas, dominada por tons de cinza, para criar uma atmosfera lúgubre e opressiva. Mesmo as poucas cores vibrantes, como o vermelho do sangue ou o verde dos campos, aparecem apagadas, reforçando a sensação de desespero que permeia a narrativa. A fotografia não apenas reflete o estado emocional dos personagens, mas também amplifica o tema da culpa, como se o próprio ambiente estivesse contaminado pela raiva e pela violência.

O design de produção, liderado por Fletcher Jarvis, é igualmente eficaz. As fazendas, com suas estruturas rústicas e desleixadas, contrastam com a vastidão das paisagens irlandesas, criando um equilíbrio entre o confinamento dos espaços internos e a falsa promessa de liberdade do exterior. A escolha de filmar em locações reais, em vez de estúdios, adiciona autenticidade à obra, imergindo o espectador no mundo rural.

A trilha sonora, composta por elementos minimalistas, complementa o tom do filme sem sobrecarregá-lo. A música é usada com parcimônia, aparecendo principalmente em momentos de alta tensão ou introspecção, o que permite que os sons naturais — o vento, o balido das ovelhas, o motor de um carro — dominem a experiência auditiva. O design de som é particularmente eficaz nas cenas de violência, com sons viscerais que intensificam o impacto emocional sem recorrer ao exagero.

Acabe com Eles é, em essência, um estudo sobre a violência e seus efeitos corrosivos. O filme explora como a masculinidade tóxica, o patriarcado e os traumas geracionais perpetuam um ciclo de destruição. A rivalidade entre as duas famílias serve como uma metáfora para conflitos mais amplos, como disputas por poder e recursos, enquanto a perda das ovelhas simboliza a fragilidade da subsistência em um ambiente hostil.

O tema da culpa é central, especialmente na jornada de Michael. Sua incapacidade de processar o acidente que matou sua mãe e desfigurou sua namorada o torna um homem preso ao passado, incapaz de escapar da raiva que o consome. Jack, por outro lado, representa a juventude que herda os pecados dos pais, com sua instabilidade refletindo a negligência e a pressão de Gary. O filme também aborda o papel das mulheres, que, embora marginais na narrativa, são vítimas do sistema patriarcal que domina a comunidade.


A redenção, ou a ausência dela, é outro tema crucial. No clímax, Michael pede desculpas sem tentar justificar suas ações, um momento que Andrews descreve como uma forma de redenção, mas que deixa espaço para interpretações ambíguas. Para alguns, como o próprio Abbott, o gesto sugere esperança; para outros, é um reconhecimento tardio de um mundo perdido.

Acabe com Eles recebeu críticas geralmente positivas, com elogios à direção de Andrews, às atuações e à fotografia. No Festival do Rio, o filme foi destacado por sua abordagem inovadora e pela coragem de abordar temas difíceis. No entanto, a violência gráfica e o ritmo desigual afastaram parte do público, e a estrutura não linear dividiu opiniões, com alguns a considerando brilhante e outros, confusa.

No contexto brasileiro, o filme ressoa com obras como Oeste Outra Vez, que também explora a violência masculina em um ambiente rural. A comparação com o faroeste brasileiro destaca a universalidade dos temas de Acabe com Eles, que transcendem seu cenário irlandês para falar sobre conflitos humanos fundamentais. Sua chegada ao streaming em 2025 ampliou seu alcance, mas a falta de um apelo comercial mais amplo pode limitar seu impacto a longo prazo.

Acabe com Eles é uma estreia impressionante de Christopher Andrews, que combina uma narrativa ousada com atuações poderosas e uma estética marcante. Apesar de suas imperfeições, como o ritmo irregular e a integração inconsistente de elementos cômicos, o filme se destaca como um thriller psicológico que desafia o espectador a confrontar questões desconfortáveis sobre violência, culpa e redenção. Sua abordagem não linear, embora exigente, recompensa quem se dedica a desvendar suas camadas, enquanto a fotografia e o som criam uma experiência imersiva. Para o público brasileiro, a obra oferece paralelos com narrativas locais, enriquecendo o diálogo sobre masculinidade e conflito. Um filme que, embora não seja para todos, deixa uma marca indelével.

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