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CRÍTICA: O Mal não existe (2023)

Imagem: Mubi / Divulgação

O Mal Não Existe (Aku wa Sonzai Shinai, 2023), dirigido pelo aclamado cineasta japonês Ryûsuke Hamaguchi, é uma obra que transcende as expectativas de um drama ecológico, transformando-se em uma meditação profunda sobre a relação entre humanidade, natureza e moralidade. Após o sucesso global de Drive My Car (2021), que conquistou o Oscar de Melhor Filme Internacional, Hamaguchi retorna com um filme que combina contemplação estética, narrativa enigmática e uma crítica sutil, mas contundente, ao capitalismo predatório. Ambientado na vila rural de Mizubiki, próxima a Tóquio, o filme explora as tensões entre uma comunidade local e uma empresa que planeja construir um acampamento de luxo, ou “glamping”, ameaçando o equilíbrio ambiental e social do vilarejo. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, design de produção, temas e impacto cultural — em uma exploração detalhada que atende ao pedido de um texto extenso e envolvente.

O Mal Não Existe segue Takumi (Hitoshi Omika), um lenhador e faz-tudo que vive com sua filha, Hana (Ryo Nishikawa), na vila de Mizubiki, uma comunidade rural cercada por florestas e riachos cristalinos. A vida dos moradores é marcada pela simplicidade e pela harmonia com a natureza, com atividades como cortar lenha, coletar água de nascentes e cultivar alimentos definindo o ritmo cotidiano. Esse equilíbrio é ameaçado quando uma empresa de entretenimento de Tóquio anuncia planos para construir um acampamento de luxo na região, um projeto que promete atrair turistas urbanos em busca de uma “fuga” para a natureza, mas que coloca em risco o abastecimento de água e a biodiversidade local. A resistência dos moradores, liderada por Takumi, e as interações com os representantes da empresa, Takahashi (Ryuji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani), formam o cerne do conflito, que evolui de uma disputa prática para uma alegoria sobre o impacto humano no meio ambiente.

Lançado no Festival de Veneza de 2023, onde conquistou o Grande Prêmio do Júri (Leão de Prata), O Mal Não Existe é uma colaboração entre Hamaguchi e a compositora Eiko Ishibashi, cuja trilha sonora desempenha um papel central na narrativa. O filme, com 106 minutos de duração, estreou nos cinemas brasileiros em julho de 2024 e foi amplamente discutido por sua abordagem contemplativa e por um desfecho ambíguo que dividiu opiniões. Sua relevância no cenário cinematográfico atual reside na capacidade de abordar questões ambientais sem cair em clichês, enquanto mantém a assinatura estilística de Hamaguchi: um cinema que privilegia a observação, a ambiguidade e a profundidade emocional.

A narrativa de O Mal Não Existe é estruturada em três atos distintos, cada um com aproximadamente 30 minutos, uma precisão quase matemática que contrasta com a aparente fluidez do filme. O primeiro ato é puramente contemplativo, introduzindo o espectador ao universo de Mizubiki através de longos travellings pelas copas das árvores e cenas do cotidiano de Takumi e Hana. Essa abertura, que pode desanimar espectadores menos pacientes, estabelece a conexão visceral entre a comunidade e a natureza, com a câmera de Hamaguchi adotando a perspectiva da floresta, como se a própria natureza observasse os humanos.

O segundo ato apresenta o conflito central, com a chegada dos representantes da empresa para uma reunião com os moradores. A cena da assembleia é um dos pontos altos do filme, combinando humor sutil e tensão crescente. Os moradores, inicialmente receptivos, questionam o projeto com argumentos fundamentados sobre o impacto ambiental, revelando a superficialidade dos planos da empresa. Hamaguchi utiliza diálogos naturais, cheios de hesitações e mal-entendidos, para expor as contradições do discurso corporativo, sem recorrer a vilões caricatos.

O terceiro ato marca uma virada inesperada, transformando o filme em um suspense ecológico com tons místicos. Sem revelar spoilers, o desfecho abandona a contemplação inicial e mergulha em uma narrativa sombria e enigmática, que deixa mais perguntas do que respostas. Essa mudança brusca de tom foi criticada por alguns como desconcertante, mas é precisamente essa ambiguidade que torna o filme memorável, desafiando o espectador a interpretar o que constitui o “mal” do título.

A estrutura narrativa reflete a influência do “slow cinema”, com longas tomadas que convidam à imersão, mas também dialoga com o suspense, remetendo ao trabalho de Kiyoshi Kurosawa, mentor de Hamaguchi. A ausência de catarse tradicional e a recusa em oferecer explicações fáceis reforçam a ideia de que a narrativa é menos sobre resolução e mais sobre provocar reflexão.

Ryûsuke Hamaguchi consolida sua reputação como um dos grandes cineastas da atualidade com O Mal Não Existe. Sua direção é marcada por uma sensibilidade única, que combina precisão técnica com uma abordagem intuitiva. Inspirado pela colaboração com Eiko Ishibashi, Hamaguchi concebeu o filme como um diálogo entre imagens e música, com a trilha sonora moldando a narrativa desde a fase de roteiro. Essa inversão do processo criativo — onde as imagens foram criadas para complementar a música, e não o contrário — resulta em uma obra que é tanto visual quanto sensorial.

Hamaguchi faz escolhas ousadas, como os cortes abruptos que interrompem a trilha sonora e as cenas, criando um senso de estranhamento que ecoa o conceito freudiano de Das Unheimliche (o estranho familiar). A transição de um drama realista para um conto alegórico no terceiro ato demonstra sua coragem em desafiar convenções, mesmo que isso custe a acessibilidade do filme. A influência de sua formação em estética e cinema, bem como sua admiração por diretores como Robert Bresson e Eric Rohmer, é evidente na maneira como ele equilibra minimalismo e complexidade emocional.

Apesar de suas qualidades, a direção de Hamaguchi não está isenta de críticas. O ritmo lento do primeiro ato pode alienar espectadores que esperam um conflito mais imediato, e a falta de desenvolvimento profundo para personagens secundários, como Takahashi e Mayuzumi, pode frustrar quem busca maior conexão emocional. No entanto, essas escolhas são consistentes com a proposta do filme, que prioriza a temática ambiental e a alegoria em detrimento de arcos individuais.

O elenco de O Mal Não Existe entrega performances contidas, mas poderosas, que refletem o estilo naturalista de Hamaguchi. Hitoshi Omika, que também trabalhou como assistente de direção em outros filmes de Hamaguchi, é a âncora do filme como Takumi. Sua interpretação é minimalista, com poucas falas e gestos sutis que transmitem uma mistura de estoicismo, ternura e intensidade reprimida. A cena da assembleia, onde Takumi confronta os representantes da empresa com argumentos precisos, destaca a força de Omika, que transforma um homem comum em um símbolo de resistência.

Ryo Nishikawa, como Hana, é uma revelação. Sua presença na tela, marcada por curiosidade infantil e uma conexão intuitiva com a natureza, adiciona leveza ao filme e serve como um fio condutor emocional. A relação entre Takumi e Hana, embora pouco verbalizada, é o coração do filme, com momentos como o passeio na floresta ilustrando a transmissão de valores entre gerações.

Imagem: Mubi / Divulgação

Ryuji Kosaka e Ayaka Shibutani, como os representantes da empresa, trazem humanidade aos seus papéis, evitando estereótipos. Suas performances capturam a ambiguidade moral de pessoas presas em um sistema capitalista, com momentos de dúvida e empatia que complicam a dicotomia entre “heróis” e “vilões”. O elenco secundário, composto por moradores da vila, adiciona autenticidade, com diálogos improvisados que reforçam a sensação de uma comunidade real.

A fotografia de Yoshio Kitagawa é um dos elementos mais impressionantes de O Mal Não Existe. O filme abre com um travelling prolongado pelas copas das árvores, filmado de baixo para cima contra um céu branco, criando uma sensação de imersão na floresta. A paleta de cores, dominada por tons de branco, verde e cinza, reflete a pureza e a fragilidade do ambiente natural, enquanto as tomadas noturnas do terceiro ato, com um azul escuro intenso, evocam mistério e ameaça.

Kitagawa utiliza enquadramentos que posicionam a natureza como protagonista, com os personagens frequentemente vistos à distância, como se fossem parte de um ecossistema maior. A transição do travelling inicial, que representa harmonia, para o plano final, com uma floresta envolta em escuridão, é um exemplo magistral de como a fotografia reforça a narrativa. O design de produção é minimalista, com locações reais em Mizubiki que destacam a autenticidade do vilarejo, desde as casas rústicas até os riachos cristalinos.

A trilha sonora de Eiko Ishibashi é um componente essencial do filme, funcionando como um personagem à parte. Composta por cordas sinistras e melodias minimalistas, a música cria uma dualidade de serenidade e aflição, refletindo o equilíbrio precário entre harmonia e conflito. Ishibashi, que colaborou com Hamaguchi em Drive My Car, utiliza silêncios estratégicos e cortes abruptos para intensificar o estranhamento, especialmente nas cenas de transição.

O design de som é igualmente notável, com o ruído da floresta — o canto dos pássaros, o fluxo da água, o vento nas árvores — criando uma paisagem sonora imersiva. Sons ocasionais, como tiros distantes de caçadores, introduzem uma sensação de ameaça sutil, enquanto o silêncio nas cenas noturnas amplifica a tensão. A integração entre trilha e som ambiente é tão orgânica que o espectador é levado a sentir a floresta como um espaço vivo e vulnerável.

O Mal Não Existe é, em sua essência, uma fábula ecológica que questiona a relação da humanidade com a natureza. O título, aparentemente ingênuo, é uma provocação: o “mal” não é uma entidade distinta, mas uma força difusa que emerge das ações humanas, particularmente do capitalismo irresponsável. O projeto de glamping simboliza a exploração predatória, com sua promessa de “conexão com a natureza” mascarando interesses financeiros. Hamaguchi critica a superficialidade do turismo ecológico, que transforma ecossistemas em mercadorias, sem considerar o impacto nas comunidades locais.

O filme também explora a ideia de equilíbrio, um conceito central na filosofia japonesa. Takumi, em uma cena, explica que a chave para a sobrevivência da vila é respeitar os ciclos naturais, uma lição que a empresa ignora. A presença de cervos, descritos como pacíficos, mas perigosos quando feridos, serve como uma metáfora para a natureza: bela e generosa, mas capaz de retaliar quando agredida. Hana, com sua curiosidade infantil, representa o futuro da humanidade, enquanto sua vulnerabilidade no terceiro ato simboliza o custo da negligência ambiental.

A ambiguidade moral é outro tema crucial. Hamaguchi evita maniqueísmos, retratando os representantes da empresa não como vilões, mas como indivíduos presos em um sistema que os desumaniza. A cena em que Takahashi expressa admiração pela vida simples de Takumi ilustra o desejo humano por conexão autêntica, mesmo em meio à alienação corporativa. O desfecho, com sua violência enigmática, sugere que o “mal” pode não ser externo, mas uma força interna desencadeada pelo desequilíbrio.

O Mal Não Existe foi amplamente elogiado pela crítica internacional, com destaque para sua estreia em Veneza, onde recebeu uma ovação de oito minutos. Publicações como The Guardian e Variety destacaram sua complexidade e poder sensorial, enquanto o ScreenDaily o descreveu como “absorvente” e “silenciosamente poderoso”. No Brasil, o filme foi celebrado em plataformas como o AdoroCinema e o CinePOP, que elogiaram sua crítica social e a coragem de Hamaguchi em adotar um desfecho provocador. No entanto, algumas críticas, como as publicadas no AdoroCinema, apontaram o ritmo lento e o final ambíguo como barreiras para o público geral, com espectadores menos familiarizados com o “slow cinema” expressando frustração.

No contexto brasileiro, O Mal Não Existe ressoa com questões locais, como a preservação da Amazônia e os conflitos entre comunidades tradicionais e interesses corporativos. A cena da assembleia, com moradores confrontando forasteiros, ecoa debates sobre megaprojetos em áreas indígenas, tornando o filme relevante para audiências que enfrentam dilemas semelhantes. Sua exibição na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e a distribuição pela Imovision reforçaram seu impacto no circuito de arte, embora seu apelo comercial seja limitado pelo estilo contemplativo.

O filme também dialoga com outras obras que abordam tensões rurais, como Acabe com Eles (Bring Them Down, 2024), que explora rivalidades familiares na Irlanda rural, e As Bestas (2022), que trata de conflitos entre locais e forasteiros na Galícia. Em comparação, O Mal Não Existe se distingue por sua abordagem filosófica e pela integração de elementos místicos, que o aproximam de uma parábola. A influência de Fallen Angels (1995), de Wong Kar-wai, é menos direta, mas a ênfase de Hamaguchi na trilha sonora e na estética sensorial sugere uma conexão com o cinema asiático que privilegia a experiência sobre a narrativa linear.

O Mal Não Existe é uma obra-prima contemplativa que consolida Ryûsuke Hamaguchi como um dos cineastas mais inovadores da atualidade. Com sua narrativa enigmática, fotografia deslumbrante e trilha sonora hipnótica, o filme oferece uma experiência sensorial que provoca reflexão sobre a relação entre humanidade e natureza. Embora seu ritmo lento e desfecho ambíguo possam dividir opiniões, essas escolhas reforçam sua força como uma fábula ecológica que desafia clichês e convida o espectador a questionar o que constitui o “mal”. Para o público brasileiro, a obra ressoa com questões ambientais e sociais urgentes, enquanto sua universalidade a torna um marco do cinema contemporâneo. O Mal Não Existe não é apenas um filme para ser assistido, mas uma jornada para ser sentida, discutida e lembrada.

CRÍTICA: Acabe com eles (2024)

Imagem: Reprodução

Acabe com Eles (Bring Them Down, 2024), dirigido por Christopher Andrews em sua estreia como diretor de longas-metragens, é um thriller dramático irlandês que mergulha fundo em temas como rivalidade, trauma, violência e masculinidade tóxica. Ambientado nas paisagens rurais da Irlanda, o filme apresenta uma narrativa complexa, estruturada de forma não linear, que explora as tensões entre duas famílias de fazendeiros e os conflitos internos que as corroem. Com um elenco estelar liderado por Christopher Abbott e Barry Keoghan, a obra se destaca pela intensidade emocional, pela fotografia lúgubre e por uma abordagem ousada que desafia o espectador a montar o quebra-cabeça de uma história trágica. Esta crítica analisa todos os elementos do filme — narrativa, direção, atuações, fotografia, trilha sonora, temas e recepção —, oferecendo uma visão abrangente de suas qualidades e limitações.

Acabe com Eles gira em torno de Michael (Christopher Abbott), um jovem pastor que vive isolado em uma fazenda com seu pai doente, Ray (Colm Meaney). A trama começa com a perda de dois cordeiros, um evento aparentemente trivial que desencadeia uma guerra entre a família de Michael e a de Gary (Paul Ready), um fazendeiro vizinho, e seu filho instável, Jack (Barry Keoghan). O conflito, alimentado por rivalidades antigas, traumas pessoais e tensões familiares, escala para consequências devastadoras, marcadas por violência física e psicológica. A narrativa, que mistura elementos de fábula irlandesa com um estudo de personagens, explora como o ciclo de violência perpetua o sofrimento em uma comunidade rural.

O filme, uma coprodução entre Irlanda, Reino Unido e Bélgica, teve sua estreia no Festival do Rio 2024 e chegou ao streaming em 2025, recebendo atenção por sua abordagem crua e pela escolha de incluir diálogos em gaélico irlandês, uma decisão que reforça sua autenticidade cultural, mas também limita seu apelo comercial. A obra se alinha a outros dramas recentes que abordam a violência masculina, como o espanhol As Bestas e o brasileiro Oeste Outra Vez, mas se diferencia por sua estrutura narrativa inovadora e pela profundidade psicológica de seus personagens.

A narrativa de Acabe com Eles é um dos seus elementos mais distintos e ambiciosos. Christopher Andrews opta por uma montagem não linear, descrita por críticos como “semi-rashomônica”. Diferentemente do clássico Rashomon, que reconta eventos a partir de perspectivas conflitantes, o filme apresenta uma história fragmentada que revela informações aos poucos, como peças de um quebra-cabeça. A primeira metade segue uma linha temporal aparentemente linear, centrada em Michael, mas com lacunas sutis que só se tornam claras na segunda metade, quando o ponto de vista muda para Jack e outros personagens. Essa abordagem cria uma experiência envolvente, mas exige atenção do espectador para conectar os eventos.

A estrutura não linear não é um mero artifício estilístico; ela reflete a perspectiva limitada de Michael, que, como protagonista, não tem acesso a todos os fatos. Por exemplo, a cena inicial, que mostra um acidente de carro envolvendo a mãe de Michael, Peggy (Susan Lynch), e sua namorada, Caroline (Grace Daly), é revisitada mais tarde, revelando novos detalhes que recontextualizam o evento. Essa escolha narrativa intensifica o impacto emocional, pois o espectador é levado a questionar suas próprias suposições sobre culpa e responsabilidade.

No entanto, a narrativa não linear tem suas falhas. Alguns críticos apontam que a fragmentação pode confundir o público, especialmente porque as transições entre os pontos de vista nem sempre são fluidas. Além disso, os momentos cômicos prometidos na divulgação do filme são raros e, quando ocorrem, parecem deslocados, interrompendo o tom sombrio da obra. Apesar disso, a estrutura narrativa é eficaz ao criar suspense e ao reforçar a ideia de que a verdade é complexa e multifacetada.

Christopher Andrews, que começou sua carreira como assistente de câmera e dirigiu curtas-metragens, demonstra um talento notável em sua estreia. Sua decisão de usar o gaélico irlandês, uma língua pouco acessível até para falantes nativos de inglês, é um risco criativo que sublinha sua recusa em se curvar às convenções do cinema comercial. Andrews equilibra a crueza da violência com momentos de introspecção, criando um filme que é ao mesmo tempo visceral e contemplativo.

Imagem: Reprodução

A direção de Andrews brilha na construção da tensão. A sequência inicial, com o diálogo entre Peggy, Michael e Caroline no carro, começa de forma cotidiana, mas rapidamente se torna angustiante, estabelecendo o tom do filme. O diretor também faz uso inteligente do ambiente rural, transformando as paisagens irlandesas em um personagem à parte. Os campos abertos e as estradas estreitas não apenas contextualizam a história, mas também amplificam a sensação de isolamento e claustrofobia.

No entanto, Andrews não está imune a críticas. Alguns momentos do filme, especialmente na primeira metade, sofrem com um ritmo irregular, com cenas que se prolongam além do necessário. Além disso, a tentativa de incorporar elementos de fábula irlandesa nem sempre se integra perfeitamente à narrativa, resultando em um tom que oscila entre o realismo psicológico e o simbolismo exagerado.

O elenco de Acabe com Eles é um dos seus maiores trunfos. Christopher Abbott entrega uma performance poderosa como Michael, um homem atormentado pela culpa e pela raiva reprimida. Sua interpretação é contida, mas profundamente expressiva, especialmente nas cenas em que confronta as consequências de suas ações. Abbott consegue transmitir a complexidade de um personagem que é tanto vítima quanto agente de violência, tornando Michael um protagonista trágico e humano.

Barry Keoghan, como Jack, oferece uma atuação igualmente impressionante. Conhecido por papéis intensos em filmes como The Banshees of Inisherin e Saltburn, Keoghan traz uma energia volátil ao personagem, que alterna entre vulnerabilidade e agressividade. Sua performance é particularmente marcante nas cenas que exploram a relação conturbada com seu pai, Gary, e com Caroline, revelando as camadas de um jovem preso em um ciclo de violência.

Colm Meaney, como Ray, e Paul Ready, como Gary, também entregam atuações sólidas, embora seus papéis sejam menos desenvolvidos. Meaney, em particular, transmite a amargura de um homem debilitado física e emocionalmente, enquanto Ready explora a inveja e a frustração de um pai que projeta suas falhas no filho. As atrizes Nora-Jane Noone e Susan Lynch, embora com tempo de tela limitado, deixam uma forte impressão, especialmente Lynch, cuja breve aparição como Peggy é carregada de emoção.

A direção de fotografia de Nick Cooke é um dos elementos mais elogiados do filme. Cooke utiliza uma paleta de cores desbotadas, dominada por tons de cinza, para criar uma atmosfera lúgubre e opressiva. Mesmo as poucas cores vibrantes, como o vermelho do sangue ou o verde dos campos, aparecem apagadas, reforçando a sensação de desespero que permeia a narrativa. A fotografia não apenas reflete o estado emocional dos personagens, mas também amplifica o tema da culpa, como se o próprio ambiente estivesse contaminado pela raiva e pela violência.

O design de produção, liderado por Fletcher Jarvis, é igualmente eficaz. As fazendas, com suas estruturas rústicas e desleixadas, contrastam com a vastidão das paisagens irlandesas, criando um equilíbrio entre o confinamento dos espaços internos e a falsa promessa de liberdade do exterior. A escolha de filmar em locações reais, em vez de estúdios, adiciona autenticidade à obra, imergindo o espectador no mundo rural.

A trilha sonora, composta por elementos minimalistas, complementa o tom do filme sem sobrecarregá-lo. A música é usada com parcimônia, aparecendo principalmente em momentos de alta tensão ou introspecção, o que permite que os sons naturais — o vento, o balido das ovelhas, o motor de um carro — dominem a experiência auditiva. O design de som é particularmente eficaz nas cenas de violência, com sons viscerais que intensificam o impacto emocional sem recorrer ao exagero.

Acabe com Eles é, em essência, um estudo sobre a violência e seus efeitos corrosivos. O filme explora como a masculinidade tóxica, o patriarcado e os traumas geracionais perpetuam um ciclo de destruição. A rivalidade entre as duas famílias serve como uma metáfora para conflitos mais amplos, como disputas por poder e recursos, enquanto a perda das ovelhas simboliza a fragilidade da subsistência em um ambiente hostil.

O tema da culpa é central, especialmente na jornada de Michael. Sua incapacidade de processar o acidente que matou sua mãe e desfigurou sua namorada o torna um homem preso ao passado, incapaz de escapar da raiva que o consome. Jack, por outro lado, representa a juventude que herda os pecados dos pais, com sua instabilidade refletindo a negligência e a pressão de Gary. O filme também aborda o papel das mulheres, que, embora marginais na narrativa, são vítimas do sistema patriarcal que domina a comunidade.


A redenção, ou a ausência dela, é outro tema crucial. No clímax, Michael pede desculpas sem tentar justificar suas ações, um momento que Andrews descreve como uma forma de redenção, mas que deixa espaço para interpretações ambíguas. Para alguns, como o próprio Abbott, o gesto sugere esperança; para outros, é um reconhecimento tardio de um mundo perdido.

Acabe com Eles recebeu críticas geralmente positivas, com elogios à direção de Andrews, às atuações e à fotografia. No Festival do Rio, o filme foi destacado por sua abordagem inovadora e pela coragem de abordar temas difíceis. No entanto, a violência gráfica e o ritmo desigual afastaram parte do público, e a estrutura não linear dividiu opiniões, com alguns a considerando brilhante e outros, confusa.

No contexto brasileiro, o filme ressoa com obras como Oeste Outra Vez, que também explora a violência masculina em um ambiente rural. A comparação com o faroeste brasileiro destaca a universalidade dos temas de Acabe com Eles, que transcendem seu cenário irlandês para falar sobre conflitos humanos fundamentais. Sua chegada ao streaming em 2025 ampliou seu alcance, mas a falta de um apelo comercial mais amplo pode limitar seu impacto a longo prazo.

Acabe com Eles é uma estreia impressionante de Christopher Andrews, que combina uma narrativa ousada com atuações poderosas e uma estética marcante. Apesar de suas imperfeições, como o ritmo irregular e a integração inconsistente de elementos cômicos, o filme se destaca como um thriller psicológico que desafia o espectador a confrontar questões desconfortáveis sobre violência, culpa e redenção. Sua abordagem não linear, embora exigente, recompensa quem se dedica a desvendar suas camadas, enquanto a fotografia e o som criam uma experiência imersiva. Para o público brasileiro, a obra oferece paralelos com narrativas locais, enriquecendo o diálogo sobre masculinidade e conflito. Um filme que, embora não seja para todos, deixa uma marca indelével.

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