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[RESENHA #534] O fato e a coisa, de Torquato Neto

 

Neto, Torquato, 1944-1972 / O fato e a coisa / Torquato Neto. -- São Paulo: Círculo de poemas, 2022.

Hoje, 50 anos após a trágica morte de Torquato Neto, sua coleção de poemas é uma homenagem ao seu grande legado. Seu amor por sua cidade natal, Teresina, bem como suas viagens por Salvador e Rio de Janeiro, são retratados em seus versos. Referências de Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes aparecem em suas obras, refletindo o intenso período de produção literária. Torquato também abraçou a jornada tropicalista, compartilhando amizade com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e Nara Leão, e cantando em seus poemas: "Viva Caetano e Bethânia / (...) Viva que eu os conheço / E eu os amo de longe ou perto". Esta coletânea de versos é uma homenagem ao trabalho de Torquato Neto e às vidas que tocou.

“Tenho rins e eles me dizem que estou vivo”, escreve Torquato num de seus versos. Passado todo esse tempo, sua obra segue viva e se espalha cada vez mais entre nós, fazendo a cabeça e o coração de gerações.

O autor delineia em uma prosa tocante versos que caminham com lembranças, a amizade com o passado, os anseios, os medos e suas aflições, bem como suas inspirações na música, na escrita popular e nas letras de grandes nomes.

O autor nos brinda com poemas que explicam sua escolha para o título. Assim sendo:

Explicação do fato

Impossível envergonhar-me de ser homem.
Tenho rins e eles me dizem que estou vivo.
Obedeço a meus pés
e a ordem é seguir e não olhar à frente.
Minúsculo vivente entre rinocerontes
me reconheço falho
e insisto.

[...]

e eu decido que não posso envergonhar-me de ser homem
a criança antiga é dique barrando o meu escoo
e diz que não, não me envergonhe.

não me envergonho.
Tenho runs mãos boca órgão genital e glândulas de secreção interna: impossível.


Apresentação da Coisa

Estão guardados em mim o olhar
e o falar. Mas não saem.
Trancados em sete portas
e não saem, não têm as chaves necessárias
ou a equivalente ousadia.

[...]

Fosse dado a cavernosas reflexões
em torno do cavernosíssimo problemas insolúveis
e seria assim. Fosse o tal que nunca leu sequer Gibi
mas cita Sócrates e Dante
e seria assim, sem mais nem menos.
Ora! isto sou eu com a soma dos meus complexos e
                                                                          [aflições;

Analisando a historiografia das coisas, aqui, nos cabe uma reflexão. Torquato Neto desenhou uma fórmula que se perpetua: o fato e a coisa. Deve-se analisar todas as situações [fatos] --boas e ruins, sob a perspectiva da coisa [o motivo, desencadeador] por meio de um exercício de reflexão que nos cabe por meio da leitura e do vivenciar.

O exercício da reflexão pode se tornar palpável no poema posição de ficar, disponível na página 29 da obra:

No princípio era o verbo amar.
Mas os sentimentos extinguiram-se
e retesaram-se os membros: não houve amor desde então
Agora, sabemos inútil procurar nos livros a fórmula
                                                     [derradeira deste verbo.
As coisas fizeram-se lúcidas
notou-se o fato
e sentiu-se medo.

O poema reflete sobre a necessidade humana de atenção e afago, mas alerta-nos sobre uma busca implacável por meio do desgaste. No princípio - -- em uma alusão religiosa -- era o verbo [ amar ] [Jesus], mas os sentimentos extinguiram-se [a condenação] [crucificação] [ a expíação] e não houve amor desde então -- o verbo amar, representado na figura que se encontra nas entrelinhas esgotou-se por meio do julgo, e assim, esgotou-se sua fonte em meio aos livros e à humanidade, mas o poema segue analisando a problemática da coisa:

[...]
e no entanto nada procuramos.
Temos as mãos fechadas, não as forcem.
Nossas celas as sabemos impenetráveis, não forcem.
Temos tanto sono, mas o venceremos, 
não nos forcem.

[...]
Desaprendemos tudo.
Ambíguo em nós mesmos, amamos agora o silêncio das
                                                                          [covas
e as esperamos: este o nosso fim.

A poética de Torquato Neto coloca-nos a pensar sobre o fato e a coisa. O autor desenha em suas linhas os paradigma centrais da reflexão por meio do exercício de viver os fatos por intermédio das coisas. A partir de uma perspectiva poética, Torquato Neto faz um elo entre o mundo real e o mundo da imaginação, buscando mostrar que não há limites para a criatividade humana. Através de suas reflexões, o autor constrói uma narrativa onde os fatos e as coisas se unem e se complementam. Com isso, ele nos mostra que não existem regras para a criação, e que podemos inventar novas formas de ver o mundo e as possibilidades que este nos oferece.

Um cidadão comum

Sempre subindo a ladeira do nada,
Topar em pedras que nada revelam.
Levar às costas o fardo do ser
E ter certeza que não vai ser pago.

Sentir prazeres, dores, sentir medo,
Nada entender, querer saber de tudo.
Cantar com voz bonita pra cachorro,
Não ver PERIGO e afundar no caos.

[...]

O AUTOR


Torquato Neto nasceu em 1944, em Teresina, Piauí. Foi poeta, letrista e colunista de jornal. Sempre ligado às vanguardas artísticas, participou ativamente do Tropicalismo ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Nara Leão etc. É autor de algumas das letras mais inventivas da música popular brasileira, como “Geleia geral”, “A coisa mais linda que existe” e “Todo dia é dia D”. Faleceu em 1972, no Rio de Janeiro.


[RESENHA #533] A vida dos espectros, de Franklin Alves Dassie



DASSIE, Franklin Alves. A vida dos espectro / Franklin Alves Dassie. - São Paulo: Circulo de poemas, 2022.

Antes de mais nada, vale ressaltar que esta obra compõe o catálogo do projeto círculo de poemas, uma parceria entre a Editora Fósforo e Luna Parque.

O livro é uma escrita poética do professor niteroiense Franklin Alves Dassie, também autor de grandes títulos como mamíferos (2016); Jlg (2019); grande hospital (2021), dentre outros. A narrativa do autor percorre pela transcrição dos possíveis acontecimentos que marcaram a pintura de Charles Baudelaire (poeta, 1948) e Gustave Courbet (pintor).

A obra é uma reflexão acerca da vida dos espectros, em suma, a vida de todos os que passaram por esta terra algum dia, e que agora, não pertencem mais ao mundo material. O poema de abertura, homônimo ao título, fala-nos que esta é a vida dos espectros, esta é a vida à falar dos espectros, esta é a fala dos espectros. Esta não, outra. Em síntese, somos direcionados ao pensamento de que falar sobre passado, seja século, seja dia, implica em falar dos espectros, e falar que esta é a vida dos espectros, é antecipar o mundo metafísico no material. A vida dos espectros é, senão, o resumo da vida e do plano físico.

Já o autorretrato ou o homem desesperado, apresenta-nos o retrato de dois homens conversando sobre a vida e as problemáticas que à compõe. Dois grandes homens. Um era pintor, o outro, escritor, ambos repletos de promessas, e elas ecoaram pela vida até ecoarem por outras páginas. A partir daqui, o espectro pintor e o espectro escritor passam a delinear outras narrativas dentro desta obra. 

Carlos, presente no poema 09041821, é escritor, perturbado, com uma visão de mundo diferente. Ele ouvia o que ninguém poderia ouvir, e isso o perturbava incessantemente, talvez seja por isso que ele não conseguira realizar o retrato do espectro-pintor. Já Gustavo, presente no poema 10061819, era pintor, e só conseguira pintar se imaginando no caos completo, com uma arma em sua cabeça, era assim que ele pintava, era o que o fazia se sentir vivo, e foi assim que conseguira pintar o espectro-escritor.

Uma imagem é a fala dos espectros - eles falam do passado para o presente que não escuta e que espera um futuro feliz ou dilacerante. (-- in retrato de Baudelaire c.1848, p.10)

Mas, o que são os espectros?

Um espectro é uma imagem. Uma imagem é algo aparentemente simples. Um espectro, portanto, é algo aparentemente simples. (--in mas já?, p.15)

logo, o autor completa o poema com o que esperávamos ser: 

não é fácil saber que em breve seremos espectros e demoraremos séculos - se o mundo não acabar antes - até alguém ser nosso cavalo.

Em suma, Dassie nos entrega um dossiê do resumo da vida: passagem. Uma vida cheia de promessas e caminhos delineados por Carlos & Gustavo. Duas pinturas emblemáticas, dois talentos distintos, duas formas de atuar e ver a vida, e duas finalizações opostas, cada qual existiu à sua maneira, a vida dos espectros é, se não, ser lembrado por todos aqueles que ainda não se tornaram espectros.

A fala até alguém ser nosso cavalo pode ser interpretada de dois sentidos. O termo cavalo, é usado para designar um estado de transe entre uma pessoa e uma entidade, ou espectro, nas religiões de matriz africana, poderemos inferir que o autor fala-nos sobre o processo de falar do passado e ser domado por ele de alguma forma como reflexo no mundo material ao físico, ou, poderemos entender que falar alguém de cavalo é o mesmo que caminhar neste mundo sob as costas de alguém: sob as lembranças que ficaram e sob os ensinamentos que perpetuaram no campo metafísico.

Dassie, um escritor nato de descrições precisas da realidade.

[RESENHA #532] Um pé na cozinha, de Taís de Sant’Anna Machado


MACHADO, Taís de  Sant’Anna. Um pé na cozinha: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil / Taís de Sant’Anna Machado. -- São Paulo: Fósforo, 2022.

Um Pé na Cozinha é uma exploração das contribuições feitas por mulheres negras para a culinária brasileira. Adaptado da tese de doutorado de Taís de SantAnna Machado, o livro analisa a forma como a profissionalização das mulheres negras na cozinha doméstica evoluiu desde o pós-abolição até a culinária contemporânea. O livro investiga os significados culturais da expressãoum pé na cozinha e o estereótipo da mãe preta. Ao mesmo tempo, destaca o papel fundamental das mulheres negras na criação de um dos principais elementos da identidade brasileira: o seu rico e diversificado patrimônio gastronômico.

Não existe nota de abertura melhor para explicar esta obra prima, do que as palavras da própria autora no prefácio da obra:

As mulheres negras alimentam o brasil do seio à mesa desde que aqui chegaram, forçadamente, pelos lancinantes processos de escravização empreendidos pelos europeus no continente africano. Esse abastecimento nutritivo continuou sendo de vital importância mesmo com o término formal da escravidão e segue como parte constitutiva da cozinha brasileira. Todavia, o apagamento da importância basilar que tais mulheres tiveram e ainda têm na formação nossa ou nossas culinárias, em âmbitos regionais ou nacional, é lugar-comum na maioria das narrativas gastronômicas do país. (pag. 11)

O subtítulo da obra é claro e preciso: um olhar sócio-histórico para o trabalho de cozinheiras negras no Brasil. É um olhar acerca do tratamento da sociedade ao longo do percurso histórico sobre a cozinha (e o preconceito). A obra é uma adaptação de uma tese de doutorado da autora, que desde sua publicação, 2022, tem aberto espaço para inúmeros debates no campo da alimentação e dos estudos sociais acerca da desvalorização da profissão, das mulheres, da figura negra na cozinha, do racismo, das estruturas de poder que se perpetuaram até os dias atuais e dos relatos carregados de resquícios de um Brasil empobrecido por suas raízes racistas e invisibilizadoras de mulheres negras na geografia histórica.

O livro fala-nos sobre a hierarquização de raça que se perpetuou do Brasil escravista até os dias atuais, tornando a cozinha um espaço violento para as mulheres. A autora investiga as complexas relações entre os movimentos sociais, a historiografia, os estudos críticos de alimentação e as experiências individuais de cozinheiras negras. Ao examinar as condições exaustivas e desumanas em que essas mulheres trabalham, ela também destaca o papel essencial que desempenham na articulação de comunidades. Ao costurar histórias individuais e coletivas, a doutora nos ajuda a entender a ambivalência destes fatores até os dias atuais.

O livro apresenta um trabalho profundo acerca da mulher negra na cozinha, pautando suas linhas gerais na estruturalização da hierarquia racial; racismo; antinegritude e as diversas formas de desvalorização que este percursos histórico tensiona.

A obra de Machado está dividida em duas partes distintas, a parte um desta obra chama-se cozinha não era lugar de gente, que analisa de forma sistemática o tratamento da intimidade adotada pelos patrões com mulheres negras na cozinha, narrando episódios de abusos sexuais e tensões causadas pela hierarquia de poder-raça estabelecida durante. o período escravista. As narrativas percorrem o período da escravidão até o século XX e seus resquícios na culinária profissional.

A segunda parte da obra intitulada a conversa sempre esteve na cozinha, a autora trabalha a história de Benê Ricardo, a vanguardista, que ficou conhecida por se tornar a primeira mulher negra à receber um diploma de chef de cozinha em 1981, no Brasil. A narrativa também aborda. as questões de julgamentos presentes na cozinha profissional e a pressão sofrida pelas mulheres negras pelo poder pre-estabelecido de raça presente nas cozinhas.

Em interlúdio III, uma subdivisão presente. na segunda parte da obra, a autora conta-nos sobre Cenira, que ao chegar no Rio de Janeiro para trabalhar em uma casa, assumiu a responsabilidade de preparar um prato jamais feito por ela: um peru de natal. A história serve para ilustrar que, Cenira, em meio àquele local violento de trabalho, encontrou conforto e ajuda em outras funcionárias negras que estavam na mesma posição. A história se perpetuou como sendo importante à ajuda de uma para com as outras durante este processo e trabalho. A narrativa que se segue é um estudo sobre como a cozinha tornou-se um espaço geográfico caraterístico das mulheres negras.

Taís mostra como, a partir dos anos 20 do pós-abolição, intelectuais predominantemente brancos criaram narrativas idílicas baseadas na estereotipadamãe preta para contar a história da formação do Brasil. Por meio de crítica feminista, Taís desafiará essas narrativas romantizadas, expondo os detalhes das relações desiguais entre patrões e trabalhadoras negras, e como essas relações contrastam com a história de harmonia racial geralmente contada sobre a formação da cozinha brasileira.

As mulheres negras estão assumindo um protagonismo inegável, mudando sua posição nas cozinhas dos restaurantes e residências. O trabalho que exercem torna-as importantes agentes de suas próprias histórias. Através de um estudo profundo da cozinha, é possível perceber a importância que elas têm na construção social do Brasil.

Leitura indicada para todo bom leitor fã de uma escrita impecável, bem como estudantes das áreas de história, geografia, psicologia e sociologia.

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