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[RESENHA #486] Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade


ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Desde sua publicação, em 1924, Memórias sentimentais de João Miramar vem sendo saudado como um dos textos mais instigantes da prosa brasileira. Construído a partir de 163 fragmentos de gêneros diversos, o romance de Oswald de Andrade é um dos abre-alas do modernismo e um precursor das poéticas contemporâneas. O romance retraça a vida de João Miramar, uma espécie de caricatura do homem das classes mais favorecidas - herdeiro da cultura do café, fascinado pelas coisas estrangeiras, distante do cotidiano brasileiro. É uma sátira, selvagem e por vezes melancólica, do veio memorialista da literatura brasileira, em que os filhos das famílias mais abastadas reescrevem sua própria trajetória.

Ficção / Literatura Brasileira

Oswald de Andrade é sem dúvida um dos principais escritores brasileiros. No entanto, seus livros não são tão lidos hoje quanto antes. Quando se fala em modernidade brasileira, pensa-se principalmente em Mário de Andrade, no campo literário, Villa-Lobos na música, Tarsila na pintura... Os livros de Oswald são citados, mas talvez mais por obrigação do que vontade de falar deles. No entanto, são livros mais agradáveis ​​de ler - ou assim eu acho. Por exemplo, Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924, sobre o qual falarei bastante aqui, é um texto riquíssimo em termos de criação literária (acredito que seja mais rico que o livro de Mária de Andrade), por criar o so- chamou talvez a língua brasileira, ao invés do uso do português, para desconstruir o esquema do romance romântico, que muitas vezes acaba enfadonho, como a Iracema de José de Alencar para o uso de uma nova estética - Haroldo de Campos aborda o escritor paulista James Joyce e o cubismo de Picasso, Braque e Gertrude Stein (esta última é uma cubista literária).

Uma das primeiras resenhas escritas do livro de Oswald de Andrade foi publicada na revista Estética do Rio de Janeiro na edição de janeiro/março de 1925. Aqui chamam a atenção os autores e fundadores do periódico, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto a alguns aspectos da construção oswaldiana:

"A infância de Miramar, suas lembranças da São Paulo da época, com os 'gritos do invencível São Bento', a escola de d. Matilde, que lembra um livro com cem personagens e a história de Roldão, Mário de Glório, ' o grande professor do senhor Carvalho', que foi para o inferno, tudo isso aparece num esquema leve e pitoresco. Se, em vez de colocar esses episódios na página 15 ou 16, onde estão, o autor os tivesse colocado na página 119, onde termina o romance, o conjunto teria perdido pouco. Isso não quer dizer que faltou unidade, ação e estrutura ao livro. É a própria personagem de João Miramar que lhe dá unidade e liga todos os episódios. A construção é feita no espírito do leitor. Oswald fornece peças soltas. Eles só podem ser combinados de uma certa maneira. É só juntar e pronto”.1

Quando os críticos dizem que não importa se a narrativa da infância de João Miramar aparece no início ou no final do livro, eles mostram sua construção cubista, ou seja, sua fragmentação sem perder sua linha condutora e unificadora: a própria Miramar. Ora, este estilo cubista só é possível a partir do momento em que o leitor existe, ou melhor, a partir do momento em que o livro se vê como tal e assume que o leitor existe. Essa linguagem fragmentada é, portanto, uma metalinguagem. Ele desmascara o livro como material e como construto estético, desconstrói aquela linearidade romântica da trama e vê o romance, ora modernista ou moderno, como romance e como livro, criando essa metalinguagem que finalmente possibilita a linguagem cubista. . Haroldo de Campos faz a seguinte análise a respeito:

"No caso da prosa miramarina de Oswald de Andrade, o estilo cubista, a operação combinatória ou metonímica nela realizada situa-se ao lado do cubismo histórico, em relação ao mundo exterior ainda é residualmente icônico. No fundo, propõe, através de uma crítica da figura e da forma habitual de representar o mundo das coisas, e através de uma livre manipulação dos pretextos simbólicos disto e daquilo, um novo realismo à altura da civilização da velocidade e da máquina, a civilização. incluiu a cinematografia como sua contribuição mais marcante no elenco das artes. Assim, quando Oswald escreve "um cachorro em manga de camisa latiu na porta barbuda", ele dá à porta as qualidades do porteiro que foi abri-la e define o todo por partes (ou seja, o porteiro pela barba e o mangas de camisa). ) ), está em plena operação metonímica, selecionando elementos fornecidos pela realidade externa e convertendo-os em figuras, para depois combiná-los e hierarquizá-los livremente em uma nova ordem, ditada pelos critérios de sua sensibilidade criativa".

É esse "esquema luminoso e pitoresco" de que falavam Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda em 1925. Acrescentando-lhes esta passagem de Haroldo de Campos, fica claro que existe na prosa de Oswald de Andrade (e em a poesia também, mas não vou tratar disso), uma fusão entre a criação literária (estética) e a observação crítica do mundo. É como se fosse preciso criar uma nova linguagem para falar desse novo mundo que tem cinema, automóveis, aviões etc. E os modernistas paulistas daquele período da década de 1920 ainda falavam em criar uma linguagem brasileira, semelhante mas diferente do português. No entanto, ainda não era um consenso que deva ser dito como 'brasileiro', como se depreende das críticas de Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque:

"Seria péssimo se todo mundo começasse a 'escrever brasileiro' a partir de agora e naturalmente cada um do seu jeito. A prova é o próprio Miramar brasileiro, uma tentativa que só frutificou em termos de destruição. Terminou com um erro de português. Mas ele criou a falácia brasileira de que o livro está cheio.”3

Exemplo disso é o capítulo “89. Literatura":

“Fui a Aradopolis, ao lado da fazenda de lembrancinhas de casamento Nova-Lombardia, primeiro com o Dr. Pilatos e meu querido Phileas em uma jornada histórica…”

O verbo conjugado "fordei" (suponho que o infinitivo seria "fordar") sugere que Miramar e seus amigos foram a Aradopole em um carro Ford, um dos símbolos da indústria moderna. E "Fordei in First" significa que você usou a primeira marcha para chegar ao seu destino. Além disso, "fordei" assume uma função cômica, pois remete, em última instância, à "fazenda das memórias nupciais da Nova Lombardia", implicando o verbo "foder", transformado em "fordei" ("fordar", que pode ser cognato, também com a forma nominativa do verbo foder: foda).

Outra passagem interessante que gostaria de destacar está no capítulo “80. Resultado da Profecia':

“As notícias da guerra, mutiladas como soldados em fuga, chegaram com a França quando esta foi invadida e Paris ameaçada.”

Há certamente uma fusão entre a forma como as notícias chegam e o que dizem, já que as mutilações e os soldados em fuga certamente fazem parte dos temas, que é precisamente como as notícias chegam na prosa de Miramarine. Isso significa que eles chegam fragmentados (mutilados), muitas vezes não oficialmente (em fuga). Este, aliás, é mais um exemplo de cubismo de Oswald de Andrade, que aqui se refere a si mesmo quando fala de "notícias de guerra mutiladas como soldados em fuga". Como soldados mutilados, também as notícias chegaram mutiladas (e aqui podemos falar das várias razões desta mutilação: censura, dificuldades na transmissão da notícia, especulações, etc...) e igualmente mutilado está este período reunido.

Gostaria de chamar a atenção para outro ponto, também relacionado à linguagem: "Como prefácio", escrito por Machado Penumbra, que introduz o livro com sua linguagem incisiva. Talvez seja representativo dessa pomposa escrita acadêmica. Ele pode ter sido um daqueles contra o renascimento literário proposto pelo modernista, mas aprova-o, como se depreende de um dos últimos parágrafos do prefácio:

“O facto é que a obra plasmática de uma língua modernista nascida da mistura do português com os contributos de outras línguas que imigraram entre nós, embora tenda paradoxalmente para a construção da simplicidade latina, não deixa de ser interessante e original. Há apenas uma coisa que me oponho aos embargos legítimos - e isso é quebrar as regras normais de pontuação. Isso leva a uma confusão deplorável, embora sem dúvida evoque uma sensação de "grande forma de frase", como diz Miramar pro domo sua".

Quando Oswald de Andrade escreve essa passagem, de certa forma apresenta uma possível crítica que sua obra pode receber, sem perder o ponto irônico na adoção dessa linguagem modernista por Penumbra, que a meu ver é um conservador chave na mão. caudas.

Memórias sentimentais de João Miramar foi publicado em 1924, ano chave do modernismo para o filósofo Eduardo Jardim de Moraes. O autor divide o modernismo brasileiro em duas fases: 1. - de 1917 a 1924, “caracterizado como uma polêmica entre modernismo e pastismo. Foi uma fase de actualização - modernização, em que se fez sentir fortemente a absorção das realizações das vanguardas europeias da época e que se prolongou até ao ano de 24".7 A segunda fase iniciou-se em 1924, "quando o modernismo começou a aceitar a a questão do desenvolvimento de uma cultura nacional era primordial e perdurou até 1929.”8 Portanto, o livro de Oswald de Andrade, aqui analisado, está bem no meio dessa divisão. Ao mesmo tempo em que faz parte da primeira fase - e isso fica evidente quando se nota a presença do cubismo, como já mostrado, na estética criadora do autor - ele já aponta para a segunda - sobretudo com sua linguagem brasileira.

A Penumbra de Machado de que falei pode ser interpretada como um membro desse pastismo contra o qual o modernismo luta em sua primeira fase. O tom irônico desse personagem é justamente a aceitação da obra de Miramar. E nisso já podemos ver um passo rumo à segunda fase, “elaboração da cultura nacional”, pois o prefácio aceita a linguagem modernista criada pelo autor, mas não concorda com a pontuação.

Na fase 1917-1924, o que importava era a modernização e atualização da arte brasileira, como diz Eduardo Jardim:

“O importante que foi valorizado acima de tudo foi o fato de a obra ser moderna ou apresentada em nosso meio cultural. E ser moderno significava tudo o que se opunha aos cânones do passado, que até então dominavam a cultura nacional.”

Nesse sentido, esta resenha da revista Estética já mostra claramente que Memórias sentimentais de João Miramar é considerado um livro moderno:

“O Miramar é moderno. Um modernista. Sua frase tenta ser verdadeira, mais do que bonita. Miramar escreve mal, escreve mal, escreve mal: um grande escritor. Transposição de planos, imagens, memórias. Miramar está confuso para melhor esclarecer. Brinque com as palavras. Brinque com as ideias. Brinque com as pessoas. Principalmente ele é um brincalhão." 

Logo no início desta seção, os autores, representantes da jovem crítica modernista, afirmam claramente: “Miramar é moderno. Modernista". A partir daí, pode-se dizer do livro: "Miramar escreve mal, escreve mal, escreve mal: um grande escritor". Por que um grande escritor quando escreve mal, mal e mal? Precisamente porque é um modernista e pretende opor-se aos "cânones pastistas".

Mais tarde, na segunda fase modernista, iniciada em 1924, após a modernização-atualização da arte brasileira, a questão da brasilidade em geral passou a ocupar o centro das atenções, como diz Eduardo Jardim Moraes no terceiro capítulo de seu livro (o mais interessante do meu ponto de vista):

"Esta mudança de abordagem, comum a todos os métodos modernos, começou a tornar-se evidente, mostrando que o problema da inovação estética, existente em anos anteriores, cedeu, a partir de 1924, ao interesse desenvolvimentista até 1930. na definição da literatura nacional, em segundo lugar expandindo e desenvolvendo a primeira literatura, construindo projeto de projeto de cultura nacional em sentido amplo”.

Sérgio Buarque de Holanda, agora encara o problema de outra forma. Para ele, que divide as classes modernas de outra forma, via na primeira forma, correspondente ao período da década de 1920, uma tendência “regional”:

"Mas a tentativa de 'regionalizar' a primeira geração moderna não foi apenas inconsciente e não se limitou à arte e à poesia. Na época, era desejo do país conduzir alguns dos grandes. Seus representantes viajam sozinhos ou em grupos, pelas antigas cidades de Minas Gerais, do Nordeste, do Extremo Norte e até do Acre. É também o que determina, em grande parte, a constante preocupação e sua repercussão em nossas culturas tradicionais e populares, seu interesse por nossas casas coloniais, sua avaliação de Aleijadinho, seu estudo da humanidade, desenvolvimento da música cult e popular, esforços de aprendizagem e edição de voz brasileira”.

Só para esclarecer a taxonomia modernista: a primeira classificação enfatizada por Sérgio Buarque inclui a segunda por Eduardo Jardim. Apesar dessas diferenças, os dois autores concordam sobre o nacionalismo. Outro ponto em que ambos os autores concordam é sobre a influência dos líderes europeus no modernismo brasileiro, o que parece contraditório, já que na Europa eles buscam obras clássicas fora do continente. Por exemplo, Picasso seguiu a arte clássica africana, enquanto Blaise Cendrars foi para o Brasil.

Então, se esse é um movimento que sai e olha para o original, como o pioneiro brasileiro via sua pátria? O historiador explica:

"no Brasil, onde alguns desses 'exóticos' não são necessariamente coisas que vêm de outros países, mas, ao contrário, estão integrados à condição humana de nossos ancestrais, investigá-los pode e deve ser confundido com a investigação de nossas origens , e a investigação de nossas origens. a glorificação, com a glorificação de nossa estranheza." 

Ou seja, é a aparência, a atenção dos modernistas brasileiros às últimas produções artísticas européias, que é a causa da atenção dada ao pano de fundo, a rara e antiga cultura popular brasileira. Então, quando Eduardo Jardim falou do primitivismo como solução para os problemas da Europa, ele estava certo quando disse:

“É claro que quando foi transferida para o Brasil, essa solução teve as mudanças que os próprios brasileiros desejavam. O terreno cultural em que surgiu esse problema no Brasil e na Europa é muito diverso e por isso o simples fato de haver uma conexão entre as regiões culturais da Europa e do Brasil não nos permite distinguir integrando o caso do Brasil usando os mesmos dados . Analisamos os casos dos melhores europeus.” 14

É por essa "terra cultural" do Brasil, diferente da terra da Europa, que os modernos daqui, como diz Sérgio Buarque, veem no Brasil algo de inusitado e estranho nesse país. A propósito, Oswald de Andrade dedicou seu Pau Brasil "A Blaise Cendrars na época do descobrimento do Brasil". Esse episódio é narrado por Aracy Amaral, em seu livro Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas.15 O autor quis acompanhar a visita do poeta francês ao Brasil, mostrando sua influência sobre Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, quando o casal era ainda se formando. Os Cendrars podem ter sido os protagonistas da famosa viagem do grupo modernista de São Paulo ao interior de Minas Gerais e da consequente (re)descoberta do Brasil. Foi nesse período que surgiu, entre outros, o Aleijadinho, até então desconhecido e esquecido, como menciona Sérgio Buarque no referido artigo.

A preocupação era, portanto, que os modernistas brasileiros tinham de atingir os pioneiros europeus (e Cendrars, na época, era um dos principais executores da poesia de vanguarda francesa, ou seja, mundial), é mostrada neste caso o encontro de Cendrars com Oswald , que leva ao descobrimento do Brasil. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, "Mais uma vez o Brasil foi 'encontrado', e reencontrado por acaso".

Na análise de Eduardo Jardim Moraes:

“Agora que nos atualizamos/modernizamos com a 22ª missão, o papel que se nos apresenta é regional, em sentido global, e puramente em nosso tempo. requer uma pré-aplicação do processo de desmonte da cultura brasileira em aspectos abstratos da realidade. Aqui se faz um trabalho em dois níveis: no primeiro nível, é preciso penetrar na misteriosa cultura estrangeira que existe há quatro séculos, e depois , no segundo nível, criar uma visão.um novo olhar sobre a realidade, de um mundo redescoberto.Essa é a ideia do pau-brasil: "Ver com olhos livres para ver": Mas essa ideia só vai acontecer quebrando ideias falsas., formulando outras ideias para colocá-las em seu devido lugar, para finalmente alcançar a livre apreensão da verdade da nação. nosso passado e presente educacional. Mas agora esse debate oferece uma perspectiva diferente. Já não se trata de lutar contra o passado em nome da inovação/modernidade, mas de introduzir um nacionalismo no processo de renovação: só seremos modernos se não os ouvirmos.”

Nesse sentido, Memórias Emocionais de João Miramar é um livro muito importante e enriquecedor para a compreensão da modernidade brasileira. Não apenas da década de 1920, mas da chamada "45ª geração" e produtos de arte posteriores. Este livro de Oswald de Andrade é inovador na linguagem brasileira e na integração de estéticas de vanguarda vindas de fora, como o cubismo. Porém, como mostram Sérgio Buarque de Holanda e Eduardo Jardim Moraes, nenhuma integração é inocente: há sempre uma preocupação sobre qual país é e qual é o Brasil. Dessa forma, o cubismo de Oswald trabalha para representar a modernidade de São Paulo, como disse Haroldo de Campos. Carros, filmes, trens, aviões. A velocidade é indicada por um texto de letra variável e sem pontuação. O enquadramento cinematográfico também está aí: diferentes interpretações de cenas que exigem do leitor uma interpretação, como um filme gravado fora de ordem cronológica que se confunde, às vezes até aleatório, deixado de lado. , final. , editor para dar significado e significado. O mesmo vale para Memórias de Miramar, onde o leitor é responsável por “editar” e criar sentido.

[RESENHA #485] O barão nas árvores, de Italo Calvino

CALVINO, Italo. O barão nas árvores. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

O Barão das Árvores de Italo Calvino, traduzido por Nilson Moulin, é um livro simples, fácil e gostoso de ler. Tem também uma resenha musical do grupo Cordel do Fogo Encantado - trata-se da música O listech (também conhecida como O barão das árvores) do terceiro e último álbum Transfiguração. Como diz a canção:

“Contarei a história do barão

Que comia na mesa com seu pai

Era herdeiro primeiro dos currais

Mas gritou num jantar

‘Não quero nada!’

Nesse dia subiu num grande galho

Nunca mais o barão pisou na terra”

A diferença é que no livro Cosme é o herdeiro do Barão de Rondo. O pai era um fidalgo que aspirava a títulos mais elevados, como duque, e por isso fazia questão da etiqueta dos filhos (além de Cosmo, havia Biagio, o irmão mais novo, e Batista, a irmã maluca que gostava de caçar caracóis, ratos e nojentos animais), sempre com a esperança de ser convidado para uma festa ou outro grande evento para promover uma possível candidatura ao ducado. A mãe era chamada de general porque suas preocupações eram de natureza militar.

Por pressão familiar, principalmente do pai, e caprichos da irmã, Cosme decide não comer a sopa de caracóis preparada por Batista no almoço:

“Recordo (a história toda é narrada pelo irmão Biágio) que soprava vento do mar e mexiam-se as folhas. Cosme disse: ‘Já falei que não quero e não quero!’, e afastou o prato de escargots. Nunca tínhamos visto desobediência tão grave” (p. 7).

O episódio ocorreu em 15 de junho de 1767. Naquele dia, antes que o pai o chutasse da mesa, enquanto o irmão comia a nojenta sopa de caracóis de medo, Cosme já havia deixado o almoço e subido em uma árvore do jardim. No mesmo dia, pôde perceber o que se escondia atrás dos muros da fazenda de seu pai, como o jardim Rodargem, os vizinhos e inimigos da família Rondo.


Espiando por entre os galhos, Cosme observa a menina no balanço de Viola e, brincando, diz a ela que ela nunca mais tocará o chão, enquanto ela duvida. No entanto, ele levou isso tão a sério que nunca mais pôs os pés no chão. Desde então, Cosme de Rondo vive nas copas das árvores. Lá ele fazia de tudo: tinha que aprender novos hábitos, como andar de galho em galho, dormir sem cama, fazer as necessidades sem vala, etc...

Cosme viveu assim, independente da vida normal cheia de deveres que todos levavam, conseguiu dedicar-se a várias coisas, mas a mais interessante de todas foi como adquiriu o gosto pela leitura. Um certo bandido João do Mato apresentou-o aos livros; Quer dizer, ele adorava ler, e um dia, num impulso inesperado, jogou uma corda para um bandido subir em uma árvore para escapar dos guardas, deu alguns livros para o terrível João do Mato, que se apaixonou pela leitura. Pediu então livros a Cosmo, cada vez em maior número, a ponto de o herói ter de estabelecer uma correspondência contínua com um livreiro da região, que lhe arranjava os livros mais importantes da época.

João do Mato tornou-se um leitor voraz e exigente: não queria qualquer romance, queria bons romances, bons livros filosóficos, etc. Também aí Cosme começou a ler um livro após o outro. Chegou a estabelecer correspondência com Voltaire, Rousseau e Diderot.

Aqui entra a parte interessante e divertida do livro, quando Italo Calvino começa a brincar com as ideias desses importantes filósofos do século XVIII. Um episódio engraçado ocorre no capítulo 19, com o fim do romance de Cosme e Úrsula, quando, para esquecer a dor que sentiu durante a separação, decidiu dedicar-se aos estudos:

"Na convalescença, imóvel numa nogueira, acalmou-se nos seus estudos mais exigentes. Nessa época, começou a escrever O Projeto de Constituição de um Estado Ideal Baseado na Copa das Árvores, no qual descrevia uma República da Árvore imaginária habitada por homens justos. Ele começou como um tratado sobre leis e governos, mas sua propensão para inventar histórias complicadas acabou levando a melhor sobre ele enquanto escrevia, e o resultado foi uma série de aventuras, duelos e histórias eróticas, que foram inseridas no capítulo sobre sim conjugal. O epílogo do livro deveria ter sido este: o autor que fundou o estado perfeito acima das árvores e persuadiu toda a humanidade a se estabelecer ali e viver feliz, desceu para habitar na terra deserta. Deveria ter sido, mas o trabalho permaneceu incompleto. Enviou o resumo a Diderot e assinou simplesmente: Cosme Rondo, leitor da Enciclopédia. Diderot agradeceu com um bilhete” (pp. 155-156).

A passagem continua a ser uma crítica ao uso irracional das ideias desses filósofos franceses do século XVIII. Isso significa que só quem leu a Enciclopédia pode ter a ideia de escrever tal Projeto de criação de um estado ideal baseado nas árvores, que imagina apenas os homens como habitantes, como aparecem em Rousseau e Diderot. A propósito, a ironia de Italo Calvino pode muito bem ser estendida ao primeiro, que escreve o famoso aforismo sobre o "bom selvagem", já que Cosme vivia aos olhos dos outros como um selvagem. Em muitas passagens do livro, Biagio conta como seu irmão era comparado aos índios da América, com seus hábitos selvagens de viver nas árvores e imitar os sons dos animais, caçar e comer comida fria (como Cosme conseguia esquentar alguma coisa nas árvores). . ?).

Em seguida, no capítulo 20, Biagio relata uma viagem que fez a Paris, onde foi convidado para uma festa em homenagem a Voltaire. Ele diz que sempre evitou falar quem era o irmão por causa das provocações que sofria...

“…Mas eu disse isso em voz alta quando fui convidado para uma recepção em Paris em homenagem a Voltaire. O velho filósofo estava sentado em sua cadeira, mimado por uma multidão de damas, alegre como um pássaro e travesso como um porco-espinho. Quando soube que vinha da Penúmbria, apostrofizou para mim:

– C’est chez vous, mon cher chevalier, qu’il y a ce fameux philosophe qui vit sur les arbres comme un singe? [É em sua terra, meu caro cavaleiro, que tem o famoso filósofo que vive sobre as árvores como um macaco?]

E eu, lisonjeado, não pude me conter ao lhe responder:

– C’est mon frère, monsieur, le baron de Rondeau. [É meu irmão, senhor, o barão de Rondó]

Voltaire ficou muito surpreso, talez pelo fato de que o irmão daquele fenômeno parecesse uma pessoa tão normal, e se pôs a fazer-me perguntas, como:

– Mais c’est pour approcher du ciel, que votre frère reste là-haut? [Mas é para se aproximar do céu, que seu irmão fica lá no alto?]

– Meu irmão afirma – respondi – que aquele que pretende observar bem a terra deve manter a necessária distância. – E Voltaire apreciou muito a resposta.

– Jadis, c’était seulement la Nature qui créait des phénomènes vivants – concluiu –; maintenant c’est la Raison. [Antes, era somente a Natureza quem criava fenômenos vivos; agora é a Razão] – E o velho sábio mergulhou de novo na conversa das suas hipócritas teístas” (pp. 157-158).

O episódio brinca com as recepções realizadas nos palácios parisienses, frequentemente frequentadas por figuras como Voltaire. Houve leituras de obras, interpretações de peças musicais e teatrais, cortejo de moças e muita comida e bebida. Mesmo nesses lugares as idéias mais recentes foram discutidas, como Voltaire faz nesta passagem, quando faz uma pequena observação sobre a criação da Razão, que substitui a Natureza. Aqui vale lembrar a ideia de que uma pessoa nasce no século XVIII (essa ideia é de Michel Foucault e está em Les mots et les choice [Palavras e Coisas]), ou seja, é nesse momento que um ser vê a si mesmo como pessoa, como um ser diferente dos outros seres, ou seja, dotado de Razão (é uma ideia que surge já naquele período do Renascimento, na Itália, mas permanece pouco desenvolvida até o Iluminismo).

Depois houve episódios da Revolução Francesa, que o barão das árvores decidiu apoiar. Ele conhece os soldados de Napoleão e depois os soldados russos, que seguiram os passos do exército ocidental derrotado pelo frio da Rússia e recuaram.

Cosimo passou por outras aventuras como combate a piratas e incêndios. Foi declarado bobo e filósofo... Também se apaixonou, mas só quem já leu o livro saberá dessa parte, pois uma das partes mais tocantes não pode faltar nessa simples resenha.

[RESENHA #484] Minha vida, de A.P Tchekhov

TCHEKHOV, Anton Pávlovitch. Minha vida: conto de um provinciano. São Paulo, Editora 34, 2010. Tradução de Denise Sales.

Nesta edição de Minha vida: conto de um provincial, publicada pela Editora 34 e traduzida por Denise Sales, o público de língua portuguesa tem acesso a um dos poucos romances escritos por Anton Pavlovich Chekhov (Антон Павлович Чехов, em russo) (1860 - 1904). A capa, muito bem escolhida, é um fragmento da pintura Les toits, de Paul Cézanne (1839-1906), de 1898, que já deixa no leitor um pouco da atmosfera que encontrará no livro. A ilustração representa algumas casas em algum interior, arborizadas, verdes, que se fundem no horizonte e confundem o telhado com a vegetação ao longe. É uma representação, talvez um cliché, de uma aldeia simples, folclórica e sem grande importância, mas graças a Cézanne ganha em particularidade e evidência. Esta ilustração é uma condensação do livro.

Dois anos antes de Les toits (1898) ficar pronto, em 1896, em uma região semelhante à representada, mas muito distante, a Rússia, Chekhov publicou Minha Vida, romance que conta a história de um russo na primeira pessoa. nobre, Missail Poloznev.

Missail é um nobre que não quer ser nobre. Talvez seja uma pessoa do submundo, como no romance de Dostoiévski, pelo avesso. Quer dizer, ele faz parte da nobreza, mas não vê sentido nessa distinção hierárquica da sociedade russa. Enquanto o homem subterrâneo de Dostoiévski agoniza por querer continuar sua jornada pela rua sem ter que ceder a um homem superior que nem percebe sua existência, Missail quer se libertar das algemas dessa hierarquia sem sentido. e poder fazer o que quiser. Em Dostoiévski, o homem subterrâneo quer andar pela rua sem ter que ceder ao nobre; em Čechov, um nobre quer trabalhar como pintor. Ambos mostram o anacronismo das diferenças sociais presentes no final do século XIX.

Logo no primeiro parágrafo da novela Minha vida, ou melhor, nas quatro primeiras linhas, fica evidente a posição que Missail coloca diante de sua empresa:

“O diretor me disse: ‘Mantenho-o somente em respeito ao seu venerável pai, senão o senhor já teria voado daqui há tempos’. Eu lhe respondi: ‘Lisonjeias-me demais, vossa excelência, julgando-me capaz de voar’” (p. 7).

 Esta posição foi seu nono emprego e a nona vez que ele foi demitido. A personagem conta como eram esses trabalhos:

“Servi em departamentos diversos, mas todos os nove empregos pareciam-se um com o outro como gotas d’água: eu tinha de ficar sentado, escrevendo, ouvindo observações estúpidas ou grosseiras, à espera da demissão” (p. 7).

Desta forma, Chekhov critica a nobreza russa, que viveu sua insignificância em cidades insignificantes, sempre pensando que era uma nobreza rica, nominal e importante para a humanidade. Um nobre deve ter trabalho intelectual, não trabalho manual. É exatamente isso que Missail não entende: por que ele não pode ser carpinteiro?

Ele acaba brigando com o pai por causa disso. Saiu de casa e tornou-se pintor. Neste evento, Chekhov consegue sintetizar muitas críticas à sociedade russa de seu tempo. Entre outras coisas, o embate de Missail com o pai ocorre porque a personagem principal se recusa a aceitar a herança. Isso é um grande desrespeito em uma sociedade baseada em heranças e relações corporativas, em que os casamentos entre famílias são arranjados por conveniência - uma sociedade que desconhece os valores burgueses. Hoje, por exemplo, quando um filho rejeita a herança do pai, o pai agradece a Deus e compra o próximo modelo de carro. Na Rússia do século 19, isso marcou o fim de uma tradição centenária da família nobre.

Talvez neste romance esteja em jogo a transição de uma época para outra, da velha e anacrônica Rússia para a jovem e contemporânea Rússia. A rixa de Missail com seu pai nesta imagem também condensa a rixa da Jovem Rússia com o czar, que seria deposto e decapitado vinte anos depois, em 1917.

Nesse sentido, percebo Čechov como um autor contemporâneo de seu tempo. Como diz Giorgio Agamben em O que é o contemporâneo: 

“No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita uma explicação. […]. No universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela da luz.

“Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo” (p. 64-65).


É nesse sentido que vejo Tchekhov como contemporâneo de seu próprio tempo. Sua narrativa é cirurgicamente incisiva, crítica.

[RESENHA #483] Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Em sua introdução às Recordações do escrivão Isaías Caminha, obra de estreia de Lima Barreto, Alfredo Bosi afirma logo no início de seu texto que o autor "adota as fontes da escrita realista autobiográfica, sobre a qual Flaubert já trabalhou em tom reflexivo em Educação Sentimental e nos romances do primeiro Humilhação e Insulto de Dostoiévski e Memórias de uma Casa Morta.”[1] De fato, há muitas referências à vida de Lima Barrett na história de Isaías, mas acredito que o romance termina evitando isso. algumas das histórias autobiográficas.

Acho que Lima Barreto está muito mais próximo de Dostoiévski do que de Flaubert. É verdade que há realismo em sua obra, mas há passagens importantes das Memórias que são citações indiretas do escritor russo. Um leitor atento das Memórias do subsolo logo notará que no seguinte trecho da jornada do Caminho há uma referência à vida desse humilde funcionário de Dostoiévski:

“Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que me esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos – até onde? até onde? E ficava assombrado que aquela gente não notasse o meu desespero, não sentisse a minha angústia… ‘Imbecis!’, pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta!” (p. 121).


A camada inferior a que o empregado é exposto em Memórias de subsolo foi reinterpretada de certa forma por Lima Barreto. A Rússia de meados do século XIX era uma sociedade extremamente hierárquica, e é isso que incomoda o herói do romance de Dostoiévski, porque ele é culto, inteligente, com boas ideias, dignidade e um funcionário humilde - o que a priori o torna desprezível. Algo semelhante está acontecendo no Rio de Janeiro de Lima Barreto. Isaías também é desprezível e igualmente culto, bem-humorado e inteligente. O Brasil do final do século XIX, já republicano, não tem uma hierarquia definida oficialmente, mas existe uma certa cultura, uma certa forma de organizar a sociedade, que exclui e despreza os negros. Isaías Caminha, assim como Barreto, é negro e isso o desqualifica a priori, assim como o personagem de Dostoiévski.

A propósito, em uma novela russa, o personagem principal de uma determinada passagem anseia por uma luta; enquanto caminhava pelas ruas de São Petersburgo, ele vê um homem jogado da janela de uma casa de bilhar e deseja ser jogado também, tal era seu sentimento de ansiedade e indignação. Ele entra no estabelecimento procurando briga: 

“Logo de início, um oficial teve atrito comigo.

Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse.

O diabo sabe o que não daria eu, naquela ocasião, por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais – como dizer? – literária! Fui tratado como uma mosca. Aquele oficial era bem alto, e eu sou um homem baixinho, fraco. A briga, aliás, estava em minhas mãos: bastava protestar e, naturalmente, seria posto janela afora. Mas eu mudei de opinião e preferi… apagar-me, enraivecido.”

O oficial fica indignado porque nem mesmo é notado pelo oficial, que simplesmente o pega pelos ombros e se afasta como se ele fosse uma mosca varrida da mesa. Ele imediatamente quer lutar contra o oficial, mas "em vez disso ... eu me apaguei de raiva". No romance de Lima Barrett, em determinado momento da narrativa, Isaías sente algo semelhante ao andar de bonde:

            “Um sujeito entrou no bonde, deu-me um grande safanão, atirando-me o jornal ao colo, e não se desculpou. Esse incidente fez-me voltar de novo aos meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão da sociedade inteira… Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, a servir de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí.” (p. 122).

Ambos os personagens querem ser notados. Quem esbarra neles, quem os empurra, não os vê como gente, mas como algo desprezível. Alguém pediria desculpas a alguém que foi incomodado; mas para isso é preciso ver o outro - certamente o oficial russo e os passageiros do bonde não viram o oficial inferior e Isaiah, pelo menos não como pessoas.

Após o episódio ocorrido na casa da piscina, o personagem de Dostoiévski anseia por um pedido de desculpas que não vem. Ele então começa a visitar a Avenida Nevsky e planeja uma maneira de o policial notá-lo, percebendo que seu "inimigo" frequenta a mesma Nevsky. Seu plano é encontrar este oficial para ser notado: 

“Do modo como eu me preparava e ajeitava para aquilo, parecia que mais um pouco e íamos dar o encontrão; mas reparava e… mais uma vez eu tinha cedido caminho, e ele passava sem sequer me notar. […] De uma feita, até me decidira de vez, mas, por fim, apenas caí diante dele, porque, no instante derradeiro, à distância de uns dois vierchokes, faltou-me coragem.”

Isaías Caminha também tem vontade de ser notado, de ser considerado uma pessoa nesta sociedade brasileira do início do século 20, mas porque era desprezado... 

“Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência de fato. Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiram-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda parte, graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente.” (p. 121).

Essas passagens certamente são apenas fragmentos dos textos analisados, mas servem como exemplo do ponto de aproximação que existe entre Lima Barret e Dostoiévski. E assim como o romancista russo, o brasileiro não se preocupará em escrever um romance autobiográfico. Se elementos específicos do autor aparecem na vida de seus personagens, isso não torna o romance autobiográfico. Essas referências servem como pontos de encontro entre ficção e realidade. Um bom leitor de Dostoiévski certamente conseguirá identificar várias passagens de seus escritos que foram inspiradas em acontecimentos de sua vida - por exemplo, o romance Um jogador. No entanto, o que está em jogo não é uma descrição autobiográfica, mas a percepção da sociedade e dos sentimentos nela presentes. Ao descrever o evento na casa de bilhar, o autor russo não deseja descrever apenas os eventos, como faria um historiador do século XIX; lida com a descrição de um estado de espírito.

Da mesma forma, Lima Barreto não lida com referências autobiográficas. Se assim fosse, suas Recordações de Isaías Caminha seriam um romance duplamente autobiográfico. Parece-me que o esforço do autor, ou seja, Lima Barret e Isaías Caminha, é descrever um determinado estado da sociedade; a parte principal do trabalho não são os acontecimentos, mas um certo sentimento. Isso parece óbvio na passagem metalinguística: 

“Penso – não sei por quê – que é este meu livro que me está fazendo mal… E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas já imortais? Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é sua utilidade para o fim que almejo.” (p. 136).

Pode-se imaginar com o que Isaías está doente. As passagens citadas até aqui são de sofrimento. Vale lembrar que as memórias são escritas por Isaías quando lemos o livro e, portanto, os sentimentos presentes no personagem são atuais (se o personagem Isaías e o autor das memórias forem os mesmos e de qualquer forma o momento estiver presente Lima Barreto).

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto pretende escrever um romance sobre preconceito, humilhação social, cordas, roldanas e o equilíbrio da sociedade. As primeiras páginas do livro dão o tom. Isaías descreve como foi maltratado quando chegou ao Rio de Janeiro. As pessoas, sem conhecê-lo, o tratavam como inferior, e ele, inocente e sem saber o motivo de tal tratamento, se questiona sobre sua aparência, sua própria moral, como se o problema estivesse mesmo nele e não na discriminação social. de preto.

Assim como em Dostoiévski, Recordações utiliza elementos autobiográficos e fatos reais (como a menção ao motim da vacinação, presente no romance como uma lei que exige o uso de calçados) para tratar de um assunto que está fora da pessoa de Lima Barreto e Isaías Caminha; o livro trata do preconceito, do sentimento de quem é agredido por ele. 

[RESENHA #482]“Moby Dick” de Herman Melville

Moby Dick de Herman Melville é um romance, no qual o narrador, Ishmael, faz amizade com Queequeg, um arpoador dos mares do sul, e juntos procuram uma tripulação baleeira. Eventualmente, eles se juntam ao capitão Ahab a bordo do Pequot. Ishmael logo descobre que Ahab havia perdido a perna e o navio para uma baleia, chamada Moby Dick. O capitão e sua tripulação navegam ao redor do mundo para caçar a baleia por vingança. O livro tem um tema muito profundo e ambicioso, pois Herman Melville aborda muitas controvérsias ao longo de sua escrita, com comentários sutis. Os personagens e o enredo se encaixam perfeitamente e tudo é bem desenvolvido com algum tipo de história de fundo que se estende por todas as suas páginas. 

Este romance de 1851 é considerado por muitos críticos como um dos maiores romances americanos. Alguns até o consideram o maior romance da língua inglesa, independentemente da nacionalidade. Mas é um trabalho intimidador. É do conhecimento geral que a grande tragédia de Melville sobre o capitão baleeiro obcecado em vingar a perna do cachalote albino que a amputou é uma história dilacerante. Mas é também, como se sabe, um livro tremendamente sério, repleto de solilóquios melodramáticos que testam ao limite o vocabulário e a compreensão do leitor.

Moby Dick é uma obra épica da literatura comparável à Ilíada de Homero, ao Rei Lear de Shakespeare e à obra bíblica. É densamente rico em linguagem e estrutura, em caráter e história.

Sua história do homem contra à baleia nunca foi contada de forma tão espetacular. Mas é paralelo a outros esforços de mestres contadores de histórias ao longo dos séculos para retratar pessoas enfrentando questões irrespondíveis da existência.

Como Jó, que luta com a questão de saber por que coisas ruins acontecem a pessoas boas - na verdade, por que há sofrimento no mundo.

Como Lear se enfurecendo contra a decadência corporal, a traição dos outros e ainda mais contra a própria traição de si mesmo.

Aquiles, invencível, luta e morre por causa de um erro fatal. Édipo mata o pai sem saber e faz sexo com a mãe por causa da cegueira com que toda pessoa nasce, a incapacidade de saber tudo, de entender as consequências de seus atos.

Levaria meses, provavelmente anos, para entender totalmente Moby Dick. E só li uma vez.

E como mais obras literárias do que você provavelmente imaginaria, é um romance muito imperfeito. Nunca vi um livro começar com um começo tão vago e nada dramático: páginas e páginas de citações sobre baleias. Em algum lugar no capítulo 3, Melville apresenta um personagem de uma forma que sugere que ele será importante mais tarde; da próxima vez que ele menciona o cara, por volta do capítulo 23, é apenas para admitir que ele não tem importância. É para ser a narrativa em primeira pessoa de um personagem chamado Ismael, mas muitas das cenas mais poderosas e partes do diálogo interior só poderiam ser conhecidas por um narrador onisciente. Na verdade, Ishmael acaba sendo um personagem tão insignificante que, quando ele não está apresentando ensaios de simpósio baseados em sua pesquisa sobre baleias, você quase esquece que ele existe.

Muitos leitores perderam-se durante a narrativa de Moby Dick devido aos muitos capítulos de informações básicas que Ishmael se sente compelido a nos passar sobre baleias e caça às baleias. Eu posso entender que algumas pessoas querem continuar com a história e não querem ter todos esses detalhes. No momento em que o  Pequod  praticamente circunvaga o globo, você sente que percorreu todo o mundo do conhecimento relacionado às baleias: sua anatomia, seus hábitos sociais e a anatomia e hábitos sociais dos navios que os caçaram.

A escrita é alternadamente irônica, séria, violenta e terna. Por um lado, há o famoso Massacre dos Tubarões (Capítulo 66), onde Melville tece uma imagem de tubarões realmente devorando uns aos outros em sua loucura - realismo incrível e extremamente violento. Mesmo os capítulos descritivos aparentemente secos costumam ter um alto grau de ironia, como a afirmação de que reis e rainhas foram todos coroados com óleo de baleia (capítulo 25). Tudo isso dá a Moby-Dick uma certa textura única e parece indispensável para a majestade geral do livro.

O que eu amei neste livro: a atmosfera, os detalhes excruciantes, a variedade de diálogos... você sente que também está no convés do Pequod quando Starbuck e Ahab conversam... A nítida paixão do narrador, Ismhael, com Queequeg é notável, as cenas que se seguem entre ambos carregam uma paixão sexualizada forte e densa. A princípio, achei que estava "viajando na maionese", até decidir pesquisar por conta própria e descobrir que Melville e Nathaniel Hawthorne, famoso por Scarlet Letter e a quem Moby-Dick é dedicado, podem ter sido amantes, inclusive, aqui, você confere uma carta escrita por Melville à Nathaniel Hawthorne.

Definitivamente, há algo universal nessa história em que Ahab claramente se sente acima da moralidade e é brutalmente esmagado por seu orgulho. O triste é que toda a tripulação paga o preço final por aderir à sua obsessão. Os dois últimos encontros descritos com outros barcos são magistrais: o contraste com o abandono selvagem do bacharel e a rejeição da desamparada Rachel foram ambos perfeitos para os atos finais desta tragédia.

As estruturas de Moby Dick

A primeira estrutura tem a ver com as duas figuras centrais do livro, o capitão Ahab e a baleia Moby Dick:

  • Seção 1 — Introdução — 101 páginas (25%) — O primeiro quarto da história é contado sem que Ahab apareça.
  • Seção 2 — A Busca — 289 páginas (70%) — Ahab aparece nas páginas do romance pela primeira vez e lidera o Pequod em sua busca pela baleia branca.
  • Seção 3 — A Baleia — 20 páginas (5%) — Moby Dick é localizado por Ahab e a tripulação do Pequod. A perseguição dura três dias com consequências trágicas para todos, exceto um marinheiro derrubado de um barco (Ishmael) e Moby Dick.

A segunda estrutura que notei pode ser vista como uma versão mais detalhada da primeira, mas acho que representa uma organização paralela, mas separada da história.

  • Seção 1 — Introdução — 101 páginas (25%) — O primeiro quarto da história é contado sem que Ahab apareça.
  • Seção 2 — Ahab, Parte Um — 48 páginas (12%) — Esta é uma seção intensa na qual Ismael (e o leitor) vê Ahab pela primeira vez, e é fortemente focada nos pensamentos e ações do capitão.
  • Seção 3 — A Busca, Parte Um — 95 páginas (23%) — Ahab é uma presença forte aqui, mas, em mais da metade das páginas (53), ele não é mencionado. Em vez disso, muito espaço é ocupado pelo que eu chamaria de ensaios de Melville sobre vários aspectos da caça às baleias, como a representação de baleias em pinturas e desenhos.
  • Seção 4 — A Busca, Parte Dois — 92 páginas (22%) — Aqui, Ahab recuou ainda mais nas sombras, aparecendo em apenas 16 das páginas. O restante desta longa seção é retomado com outros ensaios de Melville em capítulos como “Ambergris” e “The Cassock”.
  • Seção 5 — Ahab, Parte Dois — 52 páginas (13%) — De repente, na página 339, Ahab está de volta e, no resto do romance, ele está na frente e no centro, dominando a cena, ditando a ação até seu confronto final com a baleia.
  • Seção 6 — Ahab e Moby Dick — 20 páginas (5%) — A Baleia Branca faz sua primeira aparição, enfrentando Ahab e levando o romance a uma conclusão estrondosa.
O livro também pode se dividir em uma outra categoria de estruturas, que são, em sua maioria, recursos utilizados pelo autor durante a escrita de sua obra. Nota-se então o emprego de diversos tipos de escrita, usando recursos poéticos, monólogos, ensaios, citações bíblicas, shakesperianas, dentre outros.

Enfim, saí de minha leitura de Moby Dick com o desejo de refazê-las diversas vezes, até que eu consiga entender em sua grandiosamente e plenitude. Um livro arrebatador.

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O AUTOR

Gêneros Romance, Poesia | Nascimento: 01/08/1819 - 28/09/1891 | Local: Estados Unidos - Nova Iorque

Herman Melville foi o terceiro filho de Allan e Maria Gansevoort Melvill (que posteriormente acrescentaria a letra "e" ao sobrenome). Quando criança, Melville teve escarlatina, o que afetou permanentemente sua visão. Se mudou com a família, em 1830, para Albany, onde freqüentou a Albany Academy. Após a morte de seu pai, em 1832, teve de ajudar a manter a família (então com oito crianças). Assim, trabalhou como bancário, professor e fazendeiro. Em 1839, embarcou como ajudante no navio mercante St. Lawrence, com destino a Liverpool e, em 1841, no baleeiro Acushnet, a bordo do qual percorreu quase todo o Pacífico. Quando a embarcação chegou às ilhas Marquesas, na Polinésia francesa, Melville decidiu abandoná-la para viver junto aos nativos por algumas semanas. Suas aventuras como "visitante-cativo" da tribo de canibais Typee foram registradas no livro Typee, de 1846. Ainda em 1841, Melville embarcou no baleeiro australiano Lucy Ann e acabou se unindo a um motim organizado pelos tripulantes insatisfeitos pela falta de pagamento. O resultado foi que Melville foi preso em uma cadeia no Tahiti, da qual fugiu pouco depois. Todos esses acontecimentos, apesar de ocuparem menos de um mês, são descritos em seu segundo livro Omoo, de 1847. No final de 1841, embarcou como arpoador no Charles & Henry, em sua última viagem em baleeiros, e retornou a Boston como marinheiro, em 1844, a bordo da fragata United States. Seus dois primeiros livros lhe renderam muito sucesso de crítica e público e certo conforto financeiro.
Em 4 de agosto de 1847, Melville se casou com Elizabeth Shaw e, em 1849, lançou seu terceiro livro, Mardi. Da mesma forma que os outros livros, Mardi se inicia como uma aventura polinésia, no entanto, se desenvolve de modo mais introspectivo, o que desagradou o público já cativo. Dessa forma, Melville retomou à antiga fórmula literária, lançando duas novas aventuras: Redburn (1849) e White-Jacket (1850). Em seus novos livros já era possível reconhecer o tom visivelmente mais melancólico que adotaria a seguir. Em 1850, Melville e Elizabeth se mudaram para Arrowhead, uma fazenda em Pittsfield, Massachusetts (atualmente um museu), onde Melville conheceu Nathaniel Hawthorne, a quem dedicou Moby Dick, publicado em Londres, em 1851. O fracasso de vendas de Moby Dick e de Pierre, de 1852, fez com que seu editor recusasse seu manuscrito, hoje perdido, The Isle of the Cross.
Herman Melville morreu em 28 de setembro de 1891, aos 72 anos, em Nova York, em total obscuridade. O obituário do jornal The New York Times registrava o nome de "Henry Melville". Depois de trinta anos guardado numa lata, Billy Budd, romance inédito na época da morte de Melville foi publicado em 1924 e posteriormente adaptado para ópera, por Benjamin Britten, e para o teatro e o cinema, por Peter Ustinov.

[RESENHA #481] O fim das certezas – tempo, caos e as leis da natureza, de Ilya Prigogine

O Fim das Certeiras – Tempo, Desordem e Leis Inerentes de Ilya Prigogine, publicado originalmente em 1996. A tradução para o português utilizada foi a de Roberto Leal Ferreira, publicada pela Unesp. No início do livro, Prigogine explica que sua primeira ideia foi traduzir a obra Entre o Tempo e a Eternidade, escrita em conjunto com Isabelle Stengers. No entanto, devido a grandes mudanças no campo, Prigogine teve que revisar significativamente o livro. Segundo ele, Isabelle Stengers não é mais considerada a autora, mas apenas uma colaboradora do "novo" livro.

Um aviso introdutório é necessário ao leitor interessado. Embora o autor afirme na capa que a obra é “acessível a todos os leitores interessados ​​na evolução de nossas ideias sobre a natureza”, sem conhecimentos prévios de matemática, mecânica newtoniana, mecânica analítica, mecânica quântica, termodinâmica e física estatística, não se poderá ser capaz de entender as discussões no livro. Em seus agradecimentos por Uma Breve História do Tempo, Stephen Hawking menciona que alguém lhe disse que incluir todas as equações matemáticas do livro reduziria as vendas pela metade. Obviamente, Prigogine não dava muita importância aos retornos financeiros.

Para um leitor não familiarizado com as questões mais fundamentais da física, o tema central do livro pode parecer simples e trivial. Podemos resumir assim: o passado e o futuro são diferentes? Embora esta pergunta possa parecer ingénua, todas as nossas experiências quotidianas levam-nos a responder afirmativamente. No entanto, a física, a ciência mais básica e precisa em termos de medição, previsão e progresso tecnológico, reage negativamente a esta questão. Se você quer saber mais sobre o assunto, esse livro é para você!

Nos agradecimentos, o autor apresenta o objetivo do livro, que é transmitir ao leitor a crença de que desde Newton estamos testemunhando uma mudança radical na física. No prólogo ele descreve melhor esse objetivo. A questão central a ser discutida é: a natureza (e suas leis) é determinística? O autor não esconde sua visão negativa sobre o assunto. O prólogo é abordado de forma densa e com muitas informações. Essa densidade pode obrigar o leitor a ler mais capítulos, mas também deixa a dúvida se o autor conseguirá cumprir todas as suas promessas. De certa forma, porém, pode-se dizer que o autor cumpre sua promessa de forma clara e honesta. O livro apresenta as principais conclusões do trabalho de toda a vida do vencedor do Prêmio Nobel de Química de 1977 por sua contribuição ao estudo de sistemas em desequilíbrio. É uma leitura gratificante e agradável.

Uma alta densidade de informações é característica de todos os capítulos do livro. Esse recurso pode perder leitores a princípio. Porém, a maior parte das informações é repetida muitas vezes durante o trabalho. O autor parece apresentar tudo o que será discutido de uma só vez, e em cada capítulo mergulha em um desses tópicos, não esquecendo de incluir todas as demais informações que serão melhor exploradas nos capítulos seguintes. Quer você goste ou não dessa forma de apresentação, ter isso em mente ao começar a ler ajudará muito na compreensão do trabalho.

O Capítulo 1, intitulado Dilema de Epicuro, é o mais longo. Começa com o pensamento dos antigos gregos e termina com a mecânica quântica. Este é um daqueles capítulos onde, caso o leitor se sinta perdido em meio a tantas informações, vale a pena insistir em ler e reler o mesmo capítulo após terminar o livro. Pode-se dizer que haverá um panorama de tudo o que será discutido nas páginas seguintes. Além disso, fica ainda mais clara a complexidade do tema que o autor se propõe abordar. Ele nos lembra que Epicuro introduz a ideia de clinâmen para conciliar o livre arbítrio e a possibilidade de mudança com sua filosofia atomística1. Segundo o autor, desde então o pensamento ocidental tem sido assombrado pela seguinte questão: o destino é determinado, como sugerem as leis da física, ou é incerto, como afirma a história, a filosofia, a psicologia e praticamente todos os outros campos do conhecimento. ? Os proponentes da primeira opção incluem físicos famosos como Newton, Leibniz, Laplace, Einstein, Weinberg e muitos outros. Entre os defensores da segunda opção, o autor cita, entre outros, Heráclito, Hegel, Husserl, Bergson e Heidegger.

O seguinte argumento é que o conceito de entropia, distinguindo entre processos reversíveis e irreversíveis, é interpretado pela maioria dos físicos contemporâneos não como uma propriedade fundamental da natureza, mas como uma consequência da natureza macroscópica aproximada da descrição de Bolzmann. O autor ressalta que o ponto de vista defendido no livro não é o mesmo. De acordo com ele:

Os processos irreversíveis (associados à flecha do tempo) são tão reais quanto os processos reversíveis descritos pelas leis físicas tradicionais; não podem ser interpretadas como uma convergência de leis fundamentais;

Em mecânica, podemos estudar um sistema em termos de suas trajetórias ou da densidade de pontos no espaço de fase através de distribuições de probabilidade. A questão central é: essas descrições são equivalentes? A resposta de muitos físicos famosos como Einstein e Gibbs é sim. No entanto, Prigogine discorda. Ele acredita que a equivalência ocorre apenas em sistemas estáveis. Por outro lado, um sistema instável:

“destrói a equivalência entre o nível individual e o nível estatístico, e as probabilidades adquirem um significado intrínseco, irredutível à interpretação em termos de ignorância ou aproximação. () A descrição probabilística é mais rica que a descrição individual. () As condições iniciais não podem mais ser assimiladas a um ponto do espaço de fase, elas correspondem à região descrita pela distribuição de probabilidade. Portanto, é uma descrição não local. Além disso, a simetria em relação ao tempo é quebrada porque o passado e o futuro desempenham papéis diferentes na formulação estatística.

“Um sistema dinâmico integrável é um sistema cujas variáveis ​​podem ser definidas de tal forma que a energia potencial seja eliminada, ou seja, de tal forma que seu comportamento se torne isomórfico a um sistema de partículas livres sem interação. Poincaré mostrou que, em geral, tais variáveis ​​não podem ser obtidas. Assim, em geral, os sistemas dinâmicos não são integráveis.

Além disso, Poincaré mostrou que a não integrabilidade do sistema é causada pela existência de ressonâncias entre os graus de liberdade do sistema. Prigogine afirma que hoje a nossa compreensão da reversibilidade do tempo na física está sendo renovada graças ao trabalho iniciado por Kolmogorov e continuado por Arnold e Moser (conhecido como teoria KAM). Uma ferramenta essencial para obter a necessária extensão da dinâmica seria o ramo da matemática conhecido como análise funcional.

O Capítulo 1 conclui com uma discussão sobre mecânica quântica. Os principais problemas da mecânica quântica ainda em aberto estão listados aqui:

Para o autor, todas as respostas dadas até agora a estas questões são insatisfatórias. Ele afirma que a situação é semelhante à que vemos na mecânica clássica e as soluções também são semelhantes. O problema em ambos os casos é a instabilidade. Embora não existam trajetórias na mecânica quântica, a instabilidade associada às ressonâncias de Poincaré mantém um significado preciso tanto na mecânica quântica quanto na mecânica clássica. É nas interações que os termos de difusão se tornam dominantes. Prigogine está convencido de que estas questões nos levarão a uma formulação unificada da mecânica quântica e, mais inesperadamente, a uma extensão da teoria clássica. Esta nova concepção deve abandonar a tradição secular da mecânica clássica: tratar os sistemas físicos através das suas trajetórias. Numa comparação entre o clinâmen de Epicuro (que abriu o capítulo) e o estado atual da física, Prigogine diz: “Nenhuma formulação de leis físicas que não leve em conta o papel construtivo do tempo será capaz de satisfazer a nossa necessidade de compreender a natureza”. ." 

Um mês antes de sua morte, Einstein perdeu seu amigo de longa data (também físico), Michele Besso. Numa carta de condolências à família de seu amigo, datada de 21 de março de 1955, Einstein escreveu:

“Ele deixou este mundo estranho antes de mim agora. não significa nada. Para nós, físicos, a diferença entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente.”

O título do Capítulo 2 é uma referência clara a esta citação de Einstein, embora Prigogine tenha acrescentado provocativamente um ponto de interrogação ao título. O título do capítulo é: Mera Ilusão?. Apresenta brevemente sua trajetória no estudo de sistemas de não equilíbrio. Essa trajetória se confunde com a história dessa ciência como tal, pois seu autor foi um dos pioneiros nesse campo. De forma resumida e didática, são-nos apresentados os principais resultados destes estudos, bem como as principais expectativas de desenvolvimentos futuros.

No Capítulo 3, intitulado Das probabilidades à irreversibilidade, pretendemos convencer o leitor de que o estudo de um sistema considerando conjuntos estatísticos e não trajetórias não corresponde a uma descrição aproximada. Além disso, pretende também mostrar que uma descrição estatística a um determinado nível conduz a soluções que não podem ser expressas por trajetórias. Ele argumenta que a equivalência entre o ponto de vista individual e o ponto de vista estatístico é quebrada no modelo de sistema dinâmico instável. Nessa tentativa, o autor nos conduz de forma clara e com uma lição incrível para compreendermos os conceitos básicos da física estatística e da teoria do caos. Prigogine usa o mapa de Bernoulli e o operador Perron-Frobenius em sua demonstração.

O capítulo 4, intitulado Leis do Caos, pode ser entendido como um aprofundamento significativo do capítulo anterior. Este é um capítulo complexo e difícil de ler que pode ser interessante e até requer uma releitura. Ler o livro junto com um pequeno livro do autor com o mesmo título deste capítulo 2 também pode ser de grande ajuda. Novamente, temos o didatismo do autor e o poder da brevidade. Em menos de uma página, ele consegue explicar os fundamentos de todo o formalismo dos operadores na mecânica quântica, retornando ao tema com mais detalhes no capítulo 6. Aqui ele apresenta uma ideia que será discutida mais adiante no capítulo 6: o espaço de Hilbert é não é suficiente para lidar com todos os sistemas da mecânica quântica. Para estudar sistemas irreversíveis, precisamos de um espaço que inclua funções singulares e generalizadas. Segundo Prigogine, o espaço adequado para esses estudos é conhecido como espaços generalizados de Hilbert ou espaços de Gelfand.

As limitações da dinâmica newtoniana e suas extensões são discutidas no Capítulo 5, intitulado Além das Leis de Newton. Embora o autor seja claro e utilize raciocínio linear, o tema é profundo e a abordagem utilizada corresponde a essa profundidade. Este é um capítulo onde o conhecimento detalhado de mecânica analítica e álgebra linear é bem-vindo. Sem esse conhecimento, grande parte do conteúdo é incompreensível. Porém, mesmo para quem não possui as ferramentas necessárias para compreender todos os argumentos, este capítulo é uma leitura interessante e é possível compreender a ideia básica.

O Capítulo 6, intitulado Uma Nova Formulação da Teoria Quântica, analisa as mudanças que a quebra da simetria do tempo impõe à mecânica quântica. Prigogine ressalta que embora a mecânica quântica tenha muitos pontos que são radicalmente diferentes da mecânica clássica, eles são semelhantes em simetria temporal e determinismo. A equação de Schrödinger, que rege a função de onda, tem simetria temporal e é determinística, assim como a equação de Newton. Somos apresentados a uma discussão incrível sobre os fundamentos matemáticos da mecânica quântica com incrível brevidade, clareza e didatismo. Existem poucos livros didáticos sobre esse assunto.

[RESENHA #480] A Mulher desiludida, de Simone de Beauvoir


"A Mulher Desiludida" de Simone de Beauvoir é o primeiro livro da autora aqui neste espaço. Devo dizer que gostei desde o início, antes de entrar na história real. Li dois volumes de "O outro sexo" desse autor quando tinha vinte e poucos anos. Às vezes me pergunto se não é hora de reler esse livro que fez história nas décadas de 1960 e 1970.

"The Disappointed Woman" apresenta três estilos narrativos entre as histórias que Beauvoir experimentou. Diferentes modos ficcionais até certo ponto, tentando nos convencer a ver as três heroínas de diferentes ângulos. Quando a vida dessas três mulheres começa a desmoronar, tudo o que elas pensaram, pelo qual lutaram, se transforma em inimizade.

A primeira história "The Age of  Discretion" é sobre uma escritora idosa que teme que a velhice limite sua criatividade na escrita. Ela não suporta que seu filho escolha um caminho diferente daquele que ela sempre pensou para ele, que é o caminho da universidade. O que se segue são lutas entre mãe e filho, esposa e marido, mãe e filha, os vários estados de espírito que podem fazer uma mulher se sentir traída ao se recusar a "ver" a verdade quando ela é apresentada. Em outras palavras, auto ilusão. E a velhice sublinha toda a história.

Em "O Monólogo", o estilo de Beauvoir assume tons amargos, as divagações de uma mulher rica que mora sozinha na véspera de Ano-Novo. Numa narrativa raivosa, implacável em relação às pessoas com quem convive e a quem acusa. Depois dos quarenta, a consciência do narrador muda quando descobrimos a terrível verdade. Apesar das situações difíceis descritas neste conto, a mudança no estilo da narrativa chama a atenção. É impressionante. Este é o resultado das reflexões noturnas de uma mãe privada dos cuidados com o filho. Uma mãe que deixa seu veneno sobre tudo e todos, que despeja ódio e vingança sobre seus parentes e seus filhos, que são suas próprias vítimas. É uma história intensa e fragmentada.

"Meu Deus! Mostre-me que existe um Senhor! Mostre-me que existe um céu e um inferno Eu andarei pelas ruas do céu com meu garotinho e minha querida filha E todos eles estarão se contorcendo nas chamas da inveja Eu assistirei eles assam e gemem eu vou rir As crianças vão rir comigo. Você me deve esta vingança, meu Deus. Eu peço que ela seja dada a mim." (página 82)

A terceira história é o título do livro "A Mulher Desiludida", escrito em forma de diário. Monique relata o declínio diário de seu casamento. Depois que o marido de vinte anos de casamento lhe conta que está tendo um caso com uma mulher mais jovem, o mundo de Monique vira literalmente de cabeça para baixo. Só um detalhe: na época em que Simone de Beauvoir escrevia essas histórias, as mulheres eram totalmente dependentes de seus maridos. Monique construiu sua vida em torno deste homem e sua vida está sofrendo com esta notícia dele. Toda a sua vida está ameaçada por esta notícia. Simone de Beauvoir escreve um relato honesto de algo que foi muito mais devastador em uma época em que as mulheres não conseguiam se sustentar financeiramente, principalmente uma mulher de meia-idade que não usufruía dos benefícios da juventude ao seu lado.

Ao lermos a história, vemos como essa mulher tenta manter um certo grau de normalidade com tudo o que está acontecendo. Simone de Beauvoir toca o coração da existência humana. Este tema é universal, em que os medos humanos, o envelhecimento, a perda, o desespero assumem algo de íntimo e pessoal. Escrito em primeira pessoa, como mencionado, a história consiste em uma série de diários de Monique, uma mulher de meia-idade cujo marido é médico trabalhador e cujas duas filhas adultas não moram mais em casa.

Quando Maurice, marido de Monique, sai de cena por completo, sentimos um lugar escuro e vazio. No quarto fechado de seu ex-marido, que eles compartilharam por tanto tempo, agora habita uma sensação de futuro solitário, que ela teme muito.

"A mulher decepcionada" de Simone de Beauvoir ainda é relevante, apesar da diferença de épocas. Uma história universal condensada em um livro maravilhoso. E merece um lugar de destaque na sua estante.

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