Publicado em 1861, após dez anos de exílio na Sibéria, Humilhados e ofendidos ocupa uma posição-chave na produção de Fiódor Dostoiévski. Por um lado, é sua obra mais ambiciosa até o momento, na qual revisita e leva ao limite as suas concepções de literatura e sua visão dos males da sociedade. Por outro, suas páginas abrem o caminho para uma forma de romance que vai ganhar corpo nos grandes livros de sua maturidade, e não por acaso o leitor encontra nesta obra conflitos e personagens que parecem prefigurar suas criações posteriores. Para compor a trama de Humilhados e ofendidos, romance no qual deposita enormes esperanças, Dostoiévski coloca no centro da ação a figura do escritor Ivan Petróvitch, que é também o narrador do livro, e cuja vida guarda tantas semelhanças com a sua que não é equivocado ler certas passagens como um ensaio de autoficção avant la lettre ― gesto arriscado, que não foi plenamente compreendido pela crítica da época. Os leitores, porém, não tiveram dúvidas. Desde sua primeira aparição como folhetim no número inicial da revista O Tempo, o romance fascinou o público, que reconheceu ali um modo inédito de narrar, capaz de trazer à luz os sentimentos mais obscuros com uma intensidade nunca vista ― intensidade que encontrou sua equivalência precisa na tradução de Fátima Bianchi e nas gravuras de Oswaldo Goeldi.
[RESENHA #723] Humilhados e ofendidos, de Dostoiévski
[RESENHA #722] O duplo, de Dostoiévski
Sobre O duplo, seu segundo romance, publicado em 1846, Dostoiévski declararia: "nunca dei uma contribuição mais séria para a literatura do que essa". De fato, ao retratar o drama de um pequeno funcionário de personalidade cindida, que passa a enxergar e conviver com seu próprio duplo, o autor russo antecipa aqui seus grandes romances de maturidade, como Crime e castigo e O idiota. Influenciada por Hoffmann e Gógol, esta surpreendente história ganha aqui sua primeira tradução direta do russo, que busca preservar toda a radicalidade e o humor do texto original, e vem acompanhada de uma seleção das belas ilustrações do artista expressionista austríaco Alfred Kubin.
[RESENHA #715] O idiota, de Dostoiévski
Nova edição, revista pelo tradutor, de O idiota, um dos grandes romances de Dostoiévski, trazendo a série completa de ilustrações de Oswaldo Goeldi. Publicado originalmente em 1868, este é um desses livros em que o leitor reconhece de imediato a marca do gênio. Nele, o autor russo constrói um dos personagens mais impressionantes de toda a literatura mundial ― o humanista e epilético príncipe Míchkin, mescla de Cristo e Dom Quixote, cuja compaixão sem limites vai se chocar com o desregramento mundano de Rogójin e a beleza enlouquecedora de Nastácia Filíppovna. Entre os três se agita uma galeria de personagens de extrema complexidade, impulsionados pelos sentimentos mais contraditórios ― do amor desinteressado à canalhice despudorada ―, conferindo a cada cena uma intensidade alucinante que nunca se dissipa nem perde o foco. A tradução de Paulo Bezerra, a primeira realizada diretamente do russo em nosso país, traz para o leitor brasileiro toda a força da narrativa original.
[RESENHA #712] Os demônios, de Dostoiévski
Impressionado com o assassinato de um estudante por um grupo niilista, Dostoiévski concebeu este livro como um protesto contra os que queriam transplantar a realidade política e cultural da Europa ocidental para a Rússia. Apesar da intenção inicialmente panfletária, Os demônios é um romance magistral, à altura de Crime e castigo ou Os irmãos Karamázov.
[RESENHA #484] Minha vida, de A.P Tchekhov
TCHEKHOV, Anton Pávlovitch. Minha vida: conto de um provinciano. São Paulo, Editora 34, 2010. Tradução de Denise Sales.
Nesta edição de Minha vida: conto de um provincial, publicada pela Editora 34 e traduzida por Denise Sales, o público de língua portuguesa tem acesso a um dos poucos romances escritos por Anton Pavlovich Chekhov (Антон Павлович Чехов, em russo) (1860 - 1904). A capa, muito bem escolhida, é um fragmento da pintura Les toits, de Paul Cézanne (1839-1906), de 1898, que já deixa no leitor um pouco da atmosfera que encontrará no livro. A ilustração representa algumas casas em algum interior, arborizadas, verdes, que se fundem no horizonte e confundem o telhado com a vegetação ao longe. É uma representação, talvez um cliché, de uma aldeia simples, folclórica e sem grande importância, mas graças a Cézanne ganha em particularidade e evidência. Esta ilustração é uma condensação do livro.
Dois anos antes de Les toits (1898) ficar pronto, em 1896, em uma região semelhante à representada, mas muito distante, a Rússia, Chekhov publicou Minha Vida, romance que conta a história de um russo na primeira pessoa. nobre, Missail Poloznev.
Missail é um nobre que não quer ser nobre. Talvez seja uma pessoa do submundo, como no romance de Dostoiévski, pelo avesso. Quer dizer, ele faz parte da nobreza, mas não vê sentido nessa distinção hierárquica da sociedade russa. Enquanto o homem subterrâneo de Dostoiévski agoniza por querer continuar sua jornada pela rua sem ter que ceder a um homem superior que nem percebe sua existência, Missail quer se libertar das algemas dessa hierarquia sem sentido. e poder fazer o que quiser. Em Dostoiévski, o homem subterrâneo quer andar pela rua sem ter que ceder ao nobre; em Čechov, um nobre quer trabalhar como pintor. Ambos mostram o anacronismo das diferenças sociais presentes no final do século XIX.
Logo no primeiro parágrafo da novela Minha vida, ou melhor, nas quatro primeiras linhas, fica evidente a posição que Missail coloca diante de sua empresa:
“O diretor me disse: ‘Mantenho-o somente em respeito ao seu venerável pai, senão o senhor já teria voado daqui há tempos’. Eu lhe respondi: ‘Lisonjeias-me demais, vossa excelência, julgando-me capaz de voar’” (p. 7).
Esta posição foi seu nono emprego e a nona vez que ele foi demitido. A personagem conta como eram esses trabalhos:
“Servi em departamentos diversos, mas todos os nove empregos pareciam-se um com o outro como gotas d’água: eu tinha de ficar sentado, escrevendo, ouvindo observações estúpidas ou grosseiras, à espera da demissão” (p. 7).
Desta forma, Chekhov critica a nobreza russa, que viveu sua insignificância em cidades insignificantes, sempre pensando que era uma nobreza rica, nominal e importante para a humanidade. Um nobre deve ter trabalho intelectual, não trabalho manual. É exatamente isso que Missail não entende: por que ele não pode ser carpinteiro?
Ele acaba brigando com o pai por causa disso. Saiu de casa e tornou-se pintor. Neste evento, Chekhov consegue sintetizar muitas críticas à sociedade russa de seu tempo. Entre outras coisas, o embate de Missail com o pai ocorre porque a personagem principal se recusa a aceitar a herança. Isso é um grande desrespeito em uma sociedade baseada em heranças e relações corporativas, em que os casamentos entre famílias são arranjados por conveniência - uma sociedade que desconhece os valores burgueses. Hoje, por exemplo, quando um filho rejeita a herança do pai, o pai agradece a Deus e compra o próximo modelo de carro. Na Rússia do século 19, isso marcou o fim de uma tradição centenária da família nobre.
Talvez neste romance esteja em jogo a transição de uma época para outra, da velha e anacrônica Rússia para a jovem e contemporânea Rússia. A rixa de Missail com seu pai nesta imagem também condensa a rixa da Jovem Rússia com o czar, que seria deposto e decapitado vinte anos depois, em 1917.
Nesse sentido, percebo Čechov como um autor contemporâneo de seu tempo. Como diz Giorgio Agamben em O que é o contemporâneo:
“No firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem circundadas por uma densa treva. Uma vez que no universo há um número infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita uma explicação. […]. No universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela da luz.
“Perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo” (p. 64-65).
É nesse sentido que vejo Tchekhov como contemporâneo de seu próprio tempo. Sua narrativa é cirurgicamente incisiva, crítica.