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Resenha: Democracia desprotegida, de Emanuel de Melo Ferreira


APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 estabeleceu princípios democráticos e sociais que moldaram a nação nas últimas décadas. No entanto, ao longo dos anos, esses princípios têm enfrentado uma série de desafios que ameaçam sua integridade e aplicação. A presente obra explora essa questão crucial e apresenta uma análise sobre a erosão do seu caráter social e democrático.

Os eventos do 08 de janeiro de 2023, que incluíram uma tentativa de golpe de Estado e ações violentas contra os três Poderes em Brasília, são tomados como um exemplo dramático dessa erosão democrática. O autor se concentra em investigar o comportamento de juízes e membros do Ministério Público neste contexto, buscando entender em que medida eles têm colaborado com o autoritarismo ou resistido a ele. A pesquisa revela como o autoritarismo tem se desenvolvido, em parte, devido a uma coordenação engajada em torno de princípios antidemocráticos e ao uso do Direito para tais fins, o que resulta em uma proteção inadequada à democracia.

Nas palavras do autor: “As premissas ideológicas desta obra partem da necessidade de lutar pela Constituição de 1988, reconhecendo as graves desigualdades sociais do Brasil, amplificadas por meras análises abstratas tipicamente liberais. Nesse sentido, a busca por uma efetiva democracia social, capaz de concretizar os diversos direitos sociais previstos constitucionalmente, passa por uma rigorosa crítica ao autoritarismo e à exaltação do golpe militar na medida tais práticas amplificam ainda mais a ofensa à isonomia, fomentando violência contra grupos menos favorecidos, como os que sofrem com a violência nas periferias”.

RESENHA

O livro se inicia abordando a erosão do caráter social e democrático da Constituição de 1988 no Brasil, destacando um processo que busca exaltá-la a ditadura militar e promover um projeto autoritário. Esse cenário se intensificou após os eventos de 8 de janeiro de 2023, quando ocorreram tentativas de golpe de Estado em Brasília. O livro mencionado no texto tem como objetivo investigar a postura de juízes e membros do Ministério Público diante do autoritarismo e das práticas não democráticas, analisando como essas instituições podem tanto perpetuar legados da ditadura quanto resistir a eles. A pesquisa para elaboração do livro questiona em que medida os atores da justiça colaboram com o autoritarismo ou se opõem a atos que apologia a ditadura militar. A hipótese é que parte do sistema judiciário atua em consonância com princípios antidemocráticos, utilizando o Direito para proteger deficientemente a democracia. Ao longo da obra, são explorados os legados da ditadura, a negação dos crimes perpetrados durante esse período e o impacto dessas práticas autoritárias nas instituições de controle e no funcionamento do Estado.

Um foco importante é dado ao negacionismo da ditadura militar, que deslegitima o passado e justifica ações autoritárias, como as homenagens a torturadores e a perseguição de opositores. A pesquisa utiliza uma abordagem de estudos de caso para investigar práticas concretas e atende a um critério metodológico que busca compreender as relações entre o sistema de justiça e a proteção da democracia.

O livro segue ressaltando a importância da análise conjunta do Judiciário e do Ministério Público, considerando suas funções na salvaguarda da democracia e na resistência a práticas que ameaçam os direitos humanos, evidenciando um cenário complexo entre o legado autoritário e a luta pela efetivação dos direitos constitucionais no Brasil.

A obra ainda aborda a investigação de práticas autoritárias no sistema de justiça brasileiro, destacando a importância do caso publicamente evidenciado pelo jornal Folha de São Paulo para o desencadeamento de uma pesquisa aprofundada. A análise considera a politização militar e exemplos recentes, como a palestra do General Hamilton Mourão que sugeriu intervenções militares. O foco da pesquisa são os vícios processuais e materiais que indicam uma aceitação da ditadura militar no Judiciário, incluindo a negação de crimes da ditadura e a discricionariedade militar. A argumentação jurídica é explorada como um meio pelo qual legados autoritários se manifestam, ressaltando a necessidade de uma crítica ideológica ao conservadorismo dos juristas. A metodologia da pesquisa reconhece a inevitabilidade da ideologia na neutralidade do pesquisador, buscando uma abordagem que defenda a Constituição de 1988 e combata desigualdades sociais. Os casos analisados, que surgiram após a posse de Jair Bolsonaro, revelam um aumento do autoritarismo e a resistência dentro do sistema de justiça, especialmente em relação ao papel do STF.

O trabalho é estruturado em três capítulos, que resumem os casos e as práticas judiciais relacionadas à ditadura militar, com o objetivo de documentar a resistência constitucional frente ao autoritarismo contemporâneo, caracterizando-o como inconstitucional. Os argumentos abordados pelo sistema de justiça que justificam essa inconstitucionalidade são criticados. A pesquisa se baseia em pensadores como Paulo Bonavides, enfatizando a necessidade de um Direito Constitucional de resistência contra as práticas autoritárias e as políticas neoliberais.

A análise da justiça de transição no Brasil e a negação dos legados da ditadura militar revela um cenário complexo e conflituoso, repleto de tentativas de silenciamento e de reinterpretação de eventos históricos que marcaram a nação. O primeiro capítulo aborda os legados da ditadura, destacando como a interpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia tem sido pautada pela busca por uma “estabilidade social”, o que, muitas vezes, resulta na minimização da gravidade das violações de direitos humanos. Isso se dá em um contexto onde precedentes internacionais sugerem a necessidade de responsabilização por crimes de lesa-humanidade, um aspecto ignorado em diversas ocasiões.


Os casos emblemáticos como Riocentro, Rubens Paiva, Etienne Romeu e Antonio Torini evidenciam a resistência em reconhecer as atrocidades cometidas durante o regime militar. Além disso, homenagens públicas a figuras ligadas à repressão, como Sebastião “Curió” e a celebração do Golpe Militar, refletem uma tentativa contínua de legitimar ações autoritárias no imaginário social. A captura da Comissão de Anistia e a paralisação do Memorial da Anistia também simbolizam esforços sistemáticos para evitar a responsabilização dos torturadores, culminando em episódios como a censura judicial à Comissão Nacional da Verdade.

No segundo capítulo, as estratégias utilizadas para a conservação do autoritarismo se desdobram em dois eixos principais: processuais e materiais. A manipulação dos precedentes e a deslegitimação da Comissão Nacional da Verdade, bem como a promoção de uma liberdade de expressão que se torna um manto para a politização militar, formam um caldo de cultura que favorece o autoritarismo. A neutralidade ideológica, frequentemente proclamada, revela-se, na prática, como um instrumento de erosão dos direitos constitucionais e da legitimidade democrática.

Por fim, o terceiro capítulo discute a difusão desse autoritarismo à luz da resistência constitucional. Elementos como a figura do “cidadão de bem” e as críticas de juristas como Paulo Bonavides sobre a neutralidade ideológica revelam a transformação da política brasileira em um espaço onde as ideologias se radicalizam, desafiando a democracia. A resistência constitucional não é apenas uma luta por direitos, mas também uma repolitização do debate público, que busca reverter a erosão provocada por interpretações conservadoras e autoritárias. Assim, vemos que a articulação entre a colaboração interinstitucional e as práticas autoritárias resulta em uma verdadeira batalha judicial e social pela manutenção da democracia e pela verdade histórica no Brasil.


O livro, democracia desprotegida, se destaca por sua análise crítica e corajosa acerca das dinâmicas entre o sistema de justiça brasileiro e as práticas autoritárias que ameaçam a democracia. Ao abordar a erosão do caráter social e democrático da Constituição de 1988, especialmente em um momento de crescente tensão política, a obra oferece uma reflexão profunda, enriquecida por uma sólida pesquisa de campo e um acurado trabalho de análise teórica.

Através de uma abordagem metódica que investiga a postura de juízes e membros do Ministério Público, o autor não apenas critica, mas também ilumina as nuances da situação atual, evidenciando tanto os legados da ditadura militar quanto os esforços de resistência que surgem dentro das instituições. A contextualização dos casos emblemáticos traz à tona a importância de reconhecer e confrontar o passado, enquanto desafia a tendência de apagamento e negação das violências históricas.

A escolha por um formato de estudo de casos é particularmente eficaz, permitindo uma exploração detalhada das intersecções entre a legislação, a prática judicial e o contexto político. Ao propor um diálogo entre a teoria e a prática, a obra se torna um instrumento valioso para acadêmicos, juristas e cidadãos comprometidos com a defesa da democracia e dos direitos humanos.

O enfoque no negacionismo e na manipulação legal como formas de perpetuação do autoritarismo revela uma preocupação essencial com a saúde da democracia brasileira. Além disso, a crítica à neutralidade ideológica no sistema de justiça proposta pelo autor é um convite à reflexão sobre a responsabilidade dos operadores do Direito em tempos de crise.

Ao longo dos capítulos, o autor não apenas documenta, mas também propõe uma ação, instigando o leitor a pensar na importância da resistência constitucional. O trabalho termina com uma nota de esperança, enfatizando que a luta pela verdade e pela justiça não é apenas uma tarefa institucional, mas um imperativo moral de toda a sociedade. Assim, a obra se configura como um importante farol para aqueles que desejam compreender e enfrentar os desafios contemporâneos à democracia no Brasil.

Resenha: O estado dual: uma contribuição à teoria da ditatura, de Ernst Fraenkel



SOBRE

"O livro (...) é uma análise e interpretação do Estado Nacional-socialista, mas é também, pelas questões teóricas que suscita, pelos instrumentos conceituais a que recorre e pelas soluções propostas, uma notável contribuição à Teoria Geral do Estado Moderno." Norberto Bobbio

"Uma etnografia do direito elaborada nas circunstâncias mais adversas, O Estado Dual é um dos livros mais eruditos sobre ditadura já escritos." Jens Meierhenrich

"Talvez não exista explicação mais consistente, com rara sofisticação argumentativa para quem observa sistemas judiciais e suas relações com a normatividade em momentos de erosão democrática. A obra de Fraenkel significa muito porque procura recuperar a relevância da estabilidade democrática normativa, a qual deve sempre ser preservada. O que não significa ilusão alguma com a sempre presente tentação de extinguir esta mesma normatividade." Martonio Barreto Lima e Lenio Luiz Streck

Fraenkel é responsável por cunhar o conceito de “estado dual”, configurado em duas metades, uma “normativa”, que respeita as próprias leis e, outra, chamada de “prerrogativa”, que as viola continuadamente. De uma atualidade assombrosa, o livro foi e segue relevante nos debates do pós-guerra e na análise do Terceiro Reich.

A edição da Editora Contracorrente, com tradução primorosa de Pedro Davoglio, é uma imprescindível fonte de estudos nas áreas do direito, da história, da sociologia e da ciência política. Além da ampla introdução de Jens Meierhenrich, à edição brasileira acrescentou-se a introdução à edição italiana, de 1983, escrita por Norberto Bobbio.

RESENHA

A obra O Estado Dual de Ernst Fraenkel se destaca como um clássico na literatura que analisa o regime jurídico e político do Terceiro Reich, revelando a complexidade do sistema nazista. Escrito durante a vigência do regime, o livro passou por diversas etapas antes de sua publicação, começando em inglês e posteriormente sendo traduzido para o alemão, a língua natal do autor. Fraenkel, um intelectual judeu e ativista social-democrata, enfrentou inúmeras dificuldades ao escrever, incluindo a proteção de informações sensíveis em um ambiente de repressão constante.

Sua trajetória pessoal é marcada pela perseguição política, que o levou a emigar para os Estados Unidos em 1938. Essa experiência se entrelaça com sua produção intelectual, refletindo as injustiças e os desafios que presenciou ao longo de sua vida. A obra não apenas analisa o regime nazista, mas também investiga a natureza do poder e da justiça, destacando a coexistência de um "Estado de normas" e um "Estado de medidas". Essa dualidade emerge como uma característica estrutural do sistema político nazista, onde as instituições estatais e partidárias coexistem em um equilíbrio instável, evidenciando a complexidade e a arbitrariedade que definem o regime.

Fraenkel argumenta que o "Estado de normas" é fundamentado em uma burocracia formal, enquanto o "Estado de medidas" simboliza a aplicação do poder de forma arbitrária e discrecional, dificultando a realização de uma verdadeira justiça. Essa análise crítica revela a profunda compreensão de Fraenkel sobre as dinâmicas de poder que moldaram a sociedade alemã durante um dos períodos mais sombrios de sua história. A recepção da obra ao longo dos anos é também um ponto importante, com reações variadas de contemporâneos e a evolução de suas ideias em resposta às mudanças sociais e políticas. Fraenkel é apresentado como um pensador que, mesmo com sua formação acadêmica, permaneceu conectado à realidade do povo, buscando entender e documentar as injustiças de seu tempo. 

A narrativa reflete sobre a durabilidade da obra de Fraenkel, que, apesar dos desafios enfrentados e da resistência que encontrou, continua a ser uma contribuição significativa para a compreensão da política e do direito, especialmente em contextos de autoritarismo. A importância de "O Estado Dual" se estende além de sua época, ressoando com questões contemporâneas sobre poder, justiça e ética na política. Assim, a obra de Fraenkel transcende a mera análise acadêmica, funcionando como um testemunho vívido de um período histórico sombrio, que ainda carrega lições e provocações relevantes para as sociedades atuais, convidando os leitores a refletirem sobre os perigos do autoritarismo e a importância da justiça e da ética na governança.

O primeiro capítulo de O Estado Dual de Ernst Fraenkel, intitulado "O Estado de Medidas", aborda a constituição do Terceiro Reich, que se fundamenta no estado de exceção. A "Ordem de Necessidade para a Proteção do Povo e do Estado", promulgada em fevereiro de 1933, é apresentada como a base dessa nova constituição, que subtraiu a vida política alemã ao império da lei. Neste contexto, as decisões do Estado não seguem critérios jurídicos ou a busca pela justiça, mas visam exclusivamente as metas políticas do regime.

Fraenkel argumenta que o setor político do Terceiro Reich representa um vácuo jurídico, onde não há normas públicas vinculativas, apenas medidas situacionais. A ideia de uma "revolução legal" promovida pelos nazistas contrasta com a realidade de um golpe de Estado ilegal, sustentado por ações como o nomeação de Hitler como chanceler e a promulgação da Lei de Plenos Poderes. O autor destaca que, ao obterem poderes excepcionais, os nazistas transformaram uma ditadura provisória em uma ditadura permanente e anticonstitucional. A Constituição de Weimar permitia ao presidente decidir sobre a adoção de medidas necessárias para restabelecer a ordem, mas isso foi explorado pelos nazistas para justificar sua ascensão ao poder.

Além disso, Fraenkel discute a natureza das competências no regime, onde o Führer exerce uma ditadura soberana sem necessidade de justificativas. A relação entre o Estado e o Partido é ambígua, e as decisões políticas são tomadas sem uma clara divisão de competências, levando a um estado de medidas que se sobrepõe ao Estado de normas. O autor também analisa como a jurisprudência e as decisões judiciais foram moldadas pelo regime, revelando a dissolução do Estado de direito. Os tribunais frequentemente afirmavam a validade das ações do Estado, mesmo quando eram evidentemente ilegais, e a polícia tinha liberdade para agir sem controle judicial. Em suma, o capítulo apresenta uma crítica profunda ao funcionamento do Terceiro Reich, destacando a transformação do Estado em um sistema onde a legalidade foi substituída pela arbitrariedade, e onde a figura do Führer se tornou sinônimo de "ordem", deslegitimando qualquer noção de Estado de direito.

O segundo capítulo intitulado "Os Limites do Estado de Medidas", explora como o sistema jurídico do Terceiro Reich está à disposição das instâncias políticas. Embora existam normas que regem a vida pública e privada, o estado de exceção se tornou uma constante, permitindo a criação de exceções às leis normais. Fraenkel afirma que a soberania dos detentores do poder político se baseia na capacidade de decidir em situações de exceção, e que essa soberania lhes permite reclamar qualquer matéria como "política". O autor menciona a distinção entre relevância política atual e potencial, destacando que, mesmo em esferas consideradas apolíticas, as instâncias políticas podem decidir que essas questões têm relevância política e, portanto, devem ser tratadas sob o estado de medidas. A autolimitação do Estado de medidas é um aspecto importante, pois, embora sua competência seja teoricamente ilimitada, na prática existem limites que surgem da necessidade de sua própria legitimidade.

Fraenkel traz exemplos de decisões judiciais que ilustram essa dinâmica, como a negativa de licenças urbanísticas sem a necessidade de justificar a decisão, evidenciando a prevalência do estado de medidas sobre o estado de normas. O capítulo também discute como a jurisprudência tentou manter a primazia do direito, mas frequentemente se viu subserviente às exigências do regime. Em suma, o capítulo retrata como o Terceiro Reich utilizou o estado de medidas para deslegitimar o estado de direito, permitindo que o poder político atuasse de forma arbitrária, enquanto a vida social era regulada de maneira limitada e sob a constante ameaça de exceções legais. A análise de Fraenkel destaca a complexidade e a intersecção entre o estado de normas e o estado de medidas, além de questionar a verdadeira natureza do direito sob o regime nazista.

O terceiro capítulo intitulado "O Estado Normativo", examina a relação entre o Estado de normas e o Estado de medidas, enfatizando a interdependência entre ambos dentro do contexto do Terceiro Reich. Fraenkel argumenta que, embora o Estado de normas exista, ele é constantemente ameaçado pela reserva de oportunidade política do Estado de medidas, que pode decidir a qualquer momento sobre questões que deveriam ser reguladas por normas jurídicas.

Ele menciona Carl Bilfinger, que discute a ideia de que a legitimidade das normas pode ser suspensa em situações que ameaçam a segurança do Estado. A relação entre administração e governo é explorada, destacando que, no regime nazista, o governo não é apenas um executor das leis, mas exerce um controle absoluto, muitas vezes à margem do ordenamento jurídico.

O capítulo também aborda como o Estado de medidas influencia a prática administrativa, levando a uma ampliação da discricionariedade das autoridades, o que pode resultar em arbitrariedade. Apesar disso, os tribunais tentam manter a integridade do Estado de normas, garantindo princípios como a liberdade de empresa e a inviolabilidade dos contratos, mesmo quando sob pressão política.

Fraenkel argumenta que a existência do Estado de normas não se deve a uma força externa, mas sim à penetração da ideologia nazista no sistema estatal. Ele discute a forma como os tribunais têm lidado com questões relacionadas a direitos de propriedade, liberdade de concorrência e o tratamento de cidadãos judeus, mostrando que, enquanto os direitos dos arianos são garantidos, os judeus são sistematicamente excluídos da proteção legal. O autor conclui que, apesar da pressão do Estado de medidas, ainda existem princípios do Estado de normas que os tribunais tentam preservar, embora sua eficácia esteja em constante risco devido à ideologia totalitária e às práticas discriminatórias do regime nazista. O Estado de normas, portanto, é visto como um complemento necessário ao Estado de medidas, mas sua sobrevivência está ameaçada pela arbitrariedade e pela ideologia racista do nacionalsocialismo.

A Parte II do livro, que aborda a teoria jurídica do Estado dual, inicia-se no Capítulo I com o "Rejeição do Direito Natural Racional pelo Nacional-socialismo". O autor argumenta que a eliminação da inviolabilidade do direito caracteriza o Estado de medidas, o que implica que esse princípio fundamental não se aplica ao ordenamento jurídico como um todo. Fraenkel menciona Gustav Radbruch e Carl Bilfinger, que discutem a relação entre direito e política, destacando que a segurança do Estado pode justificar a suspensão de normas jurídicas.

Fraenkel explica que, no regime nazista, o direito não é visto como uma construção universal, mas como um reflexo das necessidades da comunidade racial, conforme afirmado por Hitler. A justiça, segundo essa visão, não é um sistema de valores abstratos, mas sim uma certeza que o povo constrói sobre si mesmo. O autor critica a ideia de que o direito natural é irrelevante e argumenta que essa rejeição é uma continuação de um movimento que já estava em curso antes da ascensão do nazismo.

O capítulo também aborda como a ideologia nazista nega a tradição do direito natural e a substitui por uma visão que considera a desigualdade entre os homens, baseada em critérios raciais. A partir da "Lei de Plenos Poderes" de 1933, o regime nazista se tornou um poder absoluto, desprezando a ideia de que a vontade do governante deve estar subordinada a normas jurídicas. Fraenkel conclui que, ao rejeitar o direito natural e a tradição da ética ocidental, o nacional-socialismo não se posiciona como um projeto moderno, mas como uma negação completa da filosofia e dos valores que sustentam a cultura ocidental. Essa perspectiva revela as fundações ideológicas do regime, que se afastam da noção de um Estado de direito, promovendo uma visão totalitária e autoritária do poder.

O Capítulo, A Luta do Nacional-socialismo Contra o Direito Natural, aborda o conflito entre as tradições do direito natural e a ideologia nacionalsocialista. Fraenkel argumenta que o nacional-socialismo rejeita completamente o direito natural, especialmente a sua vertente cristã, que sempre teve um papel significativo na formação da legislação e da ética na Europa ocidental.

O autor menciona o trabalho de Ernst Troeltsch, que destaca a importância do contexto religioso na evolução do direito natural. Ele explica que, embora diferentes seitas cristãs tenham adotado visões variadas sobre o direito natural, nenhuma delas chegou a rejeitá-lo radicalmente. O luteranismo, por exemplo, aceitou a ideia de que o direito é afetado pelo pecado, promovendo a obediência aos regimes, mesmo que injustos.

O capítulo também discute a relação entre o nacional-socialismo e as ideologias de direito natural, afirmando que o nacionalsocialismo não se sente vinculado a essas tradições e, em vez disso, fundamenta-se em valores raciais e na utilidade política. Hitler e outros teóricos nazistas defendem que o direito só pode ser reconhecido se estiver alinhado com os objetivos do povo ariano.

Fraenkel critica a ideia de que o nacionalsocialismo possa ser considerado um movimento moderno, destacando que a negação do direito natural e a rejeição de valores absolutos geram novos inimigos e um movimento de resistência entre aqueles que defendem princípios de justiça. Ele também menciona que, embora a ideologia nazista tenha uma forte aversão ao direito natural, ela não pode ignorar completamente as tradições que moldaram a cultura alemã. O autor conclui que, ao rejeitar o direito natural, o nacional-socialismo não apenas nega as tradições éticas da cultura ocidental, mas também estabelece um regime de autoridade ilimitada que colide com a noção de justiça e direitos humanos universais. A luta contra o direito natural, portanto, é central para a compreensão do regime nazista e suas implicações para a sociedade e a política da época.

O Capítulo, Nacional-socialismo e Direito Natural Comunitário, discute o conflito entre o nacional-socialismo e as tradições do direito natural, destacando a rejeição do direito natural racional pelos nazistas. O autor, Ernst Fraenkel, explica que essa rejeição gera resistência entre grupos que ainda valorizam o direito natural, porém, aponta que a definição de "direito natural" é ambígua, envolvendo conceitos que variam ao longo da história.

Fraenkel diferencia entre o "direito natural societário", que se baseia na razão e na individualidade, e o "direito natural comunitário", que é irracional e se fundamenta na biologia e na ideia de raça. O nacional-socialismo, ao adotar uma perspectiva biológica, rejeita ideais racionalistas e propõe um conceito de justiça que prioriza a homogeneidade racial e a proteção da comunidade.

O autor menciona pensadores como Leibniz e Carl Schmitt, que exploraram a ideia de que o direito deve ser entendido em relação à comunidade. O nacional-socialismo, segundo Fraenkel, busca legitimar a sua visão de direito natural comunitário como base para a política interna e internacional, enfatizando a importância da homogeneidade racial e cultural.

Fraenkel também explora como o direito natural comunitário se conecta com a política do estado de exceção, onde o poder político é justificado por necessidades comunitárias e raciais. Ele critica a ideia de que a justiça pode ser separada do contexto político, afirmando que no regime nazista, a "verdade" é definida em função dos interesses do partido. O capítulo conclui que a rejeição do direito natural racional e a imposição de uma visão comunitária e biológica do direito são fundamentais para entender o regime nazista e sua ideologia, destacando a falta de uma tradição de direito natural absoluto na Alemanha, o que permitiu a ascensão de tais ideias.

No Capítulo, O Estado Dual em Perspectiva Histórico-Jurídica, Ernst Fraenkel examina a complexidade do Estado dual sob a perspectiva histórica e jurídica, enfatizando as tensões entre o nacional-socialismo e as tradições do direito.

O autor destaca que o regime de Hitler provoca reações diversas, incluindo críticas de cidadãos que, apesar de se oporem à arbitrariedade do regime, admitem a ideia de comunidade promovida pelo nacional-socialismo. Fraenkel argumenta que essa ambivalência é problemática, pois a ideologia comunitarista do regime é uma fachada para uma estrutura social capitalista que permanece intacta, e essa exaltacão da comunidade facilita os métodos arbitrários do Estado de medidas.

Fraenkel diferencia entre o "Estado dual" e o "Estado dualista", enfatizando que o primeiro é caracterizado por uma única estrutura organizativa, enquanto o segundo se baseia em compromissos entre as classes sociais e o Estado. O autor explora também a história do Estado dual em Prússia e na Alemanha, discutindo como o absolutismo monárquico e a burocracia se interrelacionaram com a estrutura social e jurídica do período.

A evolução do direito na Alemanha, desde o absolutismo iluminista até a Revolução de 1848, é analisada, mostrando como os interesses da nobreza e a ascensão da burguesia influenciaram a dinâmica do poder e do direito. A Revolução Francesa é identificada como um ponto de ruptura, levando ao distanciamento das elites do direito natural, enquanto a burocracia estatal se afirmava como a força dominante. Fraenkel conclui que, embora a Revolução de 1918 tenha abolido o dualismo formal do Estado, a influência das classes dominantes e a luta pelo poder político continuaram a moldar a estrutura do Estado, culminando no surgimento do nacional-socialismo, que busca restaurar um Estado autoritário que se alinha mais com as tradições do absolutismo do que com um sistema democrático baseado no Estado de direito. O autor sugere que o nacional-socialismo é uma continuidade da política do Partido de Patria e que a mobilização política do regime reflete a busca por um poder forte e centralizado que ignora as lições da história recente.

O capítulo, Os Fundamentos Econômicos do Estado Dual, e destaca a importância de entender a estrutura econômica do regime nacionalsocialista para compreender sua natureza dual. O autor ressalta que, apesar das transformações no sistema econômico alemão, este ainda mantém um núcleo capitalista, mesmo que sob uma nova fase que se entrelaça com o modelo do Estado dual.

O texto observa que, antes da ascensão dos nazistas, a economia era caracterizada por um capitalismo privado, mas organizado, com características monopolistas e intervenções estatais. O modelo de capitalismo competitivo liberal já não se aplicava, e o que prevalecia era um capitalismo "organizado", sustentado por tarifas e subsídios do Estado. Durante a crise econômica global, o controle estatal sobre a economia aumentou, evitando falências no setor bancário e em outras indústrias.

Fraenkel argumenta que a política econômica do Estado dual é uma continuação do capitalismo "organizado" do período de Weimar, onde a propriedade privada foi respeitada, exceto no caso dos judeus. As intervenções estatais limitaram o direito de propriedade, mas a propriedade privada ainda era fundamental para a sobrevivência do capitalismo. O autor analisa como a política econômica nacionalsocialista buscou reinserir os desempregados na economia, especialmente através do programa de rearme, que se tornou um objetivo central do regime.

Além disso, o autor discute a relação entre o Estado de normas e o Estado de medidas, afirmando que o primeiro atua como o marco jurídico da propriedade privada, enquanto o segundo não exerce uma função de controle real, mas sim uma função limitadora e de apoio indireto. O Estado de medidas, com suas ameaças e sanções, era mais forte que o Estado de normas, pois impunha um clima de temor que inibia riscos por parte dos empresários. Em resumo, o autor conclui que a política econômica do nacionalsocialismo estava profundamente enraizada no fortalecimento do poder do Estado e na proteção dos interesses capitalistas, resultando em um sistema que, embora mantivesse a propriedade privada, operava sob um controle estatal intenso que limitava a liberdade econômica e os direitos dos trabalhadores.

O capítulo "A Sociologia do Estado Dual" explora a complexa relação entre a estrutura social e econômica do regime nacionalsocialista na Alemanha. O autor começa referenciando Ferdinand Tönnies, que distingue entre "comunidade" e "sociedade", argumentando que a civilização ocidental se move da comunidade para a sociedade. Ele menciona a crítica de Alfred von Martin, que questiona se a comunidade pode ressurgir em um contexto social avançado, e destaca que o nacionalsocialismo se apoiou inicialmente em forças que buscavam uma organização social baseada em princípios comunitaristas.

Fraenkel observa que, embora o nacionalsocialismo tenha tentado criar um "espírito de comunidade" nos centros de trabalho, na prática, isso falhou. As SA e as SS foram tentativas de instigar esse espírito, mas as transformações sociais e econômicas exigidas pela industrialização e militarização aceleradas tornaram essa idealização insustentável. O autor argumenta que a tentativa de conectar os centros de trabalho com a ideologia comunitarista se baseava em uma ficção, já que as relações sociais eram regidas por interesses capitalistas.

Além disso, Fraenkel analisa o conceito nacionalsocialista de "comunidade popular", que surgiu como uma resposta à derrota da Primeira Guerra Mundial e à miséria da pós-guerra, enfatizando que essa consciência de comunidade é alimentada pela crença em um inimigo externo. O autor destaca a necessidade de um "complexo de inimigo" para manter unida a comunidade popular, o que resulta em uma política que justifica abusos contra grupos considerados "não conformes". O capítulo conclui que a ideologia nacionalsocialista, ao promover a ideia de comunidade, muitas vezes se contrapunha à racionalidade substancial. O capitalismo alemão, ao reconhecer sua irracionalidade, se alinha com os objetivos nacionalsocialistas, resultando em uma simbiose que se manifesta na forma do Estado dual. Essa dualidade reflete as tensões sociais e políticas da época, e a resolução dessas tensões é uma questão crucial para o futuro.

O autor finaliza a obra com um capítulo dedicado à um anexo que aborda um caso específico no Tribunal de Trabalho do Reich, intitulado "Delatowsky e outros contra a Nova Caixa Alemã de Enterramentos". O autor, atuando como advogado, representa antigos empregados que reclamam indenizações por demissões, com base em um acordo coletivo de 1932 que a empresa negava ter sido formalmente estabelecido. As dificuldades probatórias se intensificam devido à falta de acesso à documentação e à perda de memória de testemunhas.

O autor relata como, após a negativa do tribunal em primeira instância, um informante do Frente Alemão do Trabalho oferece um documento que comprova a existência do acordo, levando a um novo julgamento. Apesar de uma sentença inicial desfavorável, o tribunal reconhece a possibilidade de ação de restituição dos valores devidos.

O autor também narra outro caso, "O Caso do Queijo Rancio", onde um judeu é detido por supostamente injuriar o Führer ao criticar uma publicação. A defesa argumenta que a crítica se baseava na verdade, mas a situação é complicada pelo clima de repressão política e pela falta de acesso a defesa adequada. Os dois casos exemplificam o caráter dual do regime de Hitler, onde o controle estatal e a repressão política permeiam as decisões judiciais, refletindo a tensão entre a legalidade e a arbitrariedade do sistema nacionalsocialista. O Anexo destaca a dificuldade de obter justiça em um sistema onde as instituições estão subordinadas ao poder político e ideológico do regime.

A obra "O Estado Dual", de Ernst Fraenkel, se destaca como uma análise profunda e crítica do regime nacionalsocialista, oferecendo uma contribuição inestimável à compreensão das dinâmicas de poder e da estrutura jurídica da Alemanha sob Hitler. Ao introduzir o conceito de "estado dual", Fraenkel ilumina a coexistência de um "Estado de normas", que formalmente respeita as leis, e um "Estado de medidas", que opera com a arbitrariedade e o autoritarismo típicos de regimes totalitários. Essa dualidade não apenas evidencia as contradições intrínsecas ao sistema nazista, mas também revela as complexidades que permeiam a aplicação da lei em contextos de erosão democrática.

A análise de Fraenkel é particularmente relevante em um momento histórico em que o autoritarismo se manifesta de diversas formas, ressoando com os desafios contemporâneos que sociedades democráticas enfrentam. Seu trabalho não se limita a descrever o funcionamento do regime, mas provoca reflexões críticas sobre a natureza do poder, da justiça e da ética na governança. A habilidade de Fraenkel em articular suas observações com uma erudição impressionante confere à obra uma profundidade que transcende seu contexto original, tornando-a uma leitura fundamental para estudiosos do direito, da ciência política e da sociologia.

Além disso, a relevância atemporal de "O Estado Dual" se torna ainda mais evidente ao considerarmos a forma como o autor aborda a relação entre a ideologia nazista e as tradições do direito natural. Fraenkel não apenas critica a rejeição do direito natural pelos nazistas, mas também aponta para as implicações dessa rejeição em relação à justiça e à moralidade. A obra serve como um alerta sobre os perigos da desumanização e da manipulação da legalidade em nome de ideais políticos, um tema que continua a ecoar em nossos dias.

A edição da Editora Contracorrente, com sua tradução cuidadosa e introduções de renomados estudiosos, torna este texto acessível a um público mais amplo, garantindo que as lições de Fraenkel não sejam esquecidas. Ao oferecer uma análise erudita e crítica, "O Estado Dual" não apenas documenta os horrores de um regime totalitário, mas também nos convida a refletir sobre a importância da normatividade e da ética na construção de sociedades justas e democráticas. Assim, a obra de Ernst Fraenkel permanece como uma pedra de toque na discussão sobre o direito, a política e a moralidade, reafirmando sua posição como um dos textos mais significativos sobre a ditadura na história moderna.

Resenha: Contra o Identitarismo Neoliberal: um Ensaio de Poíesis Crítica Pela Apologia das Artes , de Rubens Russomanno Ricciardi

Foto: Arte digital / Divulgação

APRESENTAÇÃO

A obra é um ensaio de poíesis crítica pela apologia das artes. Trata-se, na filosofia das artes, de uma nova epistemologia voltada às questões da linguagem e da ideologia – ao mesmo tempo hermenêutica e dialética, existencial e crítica. Se, em Marx e Engels, há uma práxis crítica e, na Escola de Frankfurt, uma theoría crítica, com a poíesis crítica pretende-se preencher a lacuna do esquecimento da poíesis e solucionar a confusão entre práxis e poíesis. Definindo a elaboração da obra de linguagem enquanto processo crítico-inventivo, a poíesis não é teórica nem prática. Para a poíesis crítica importa o lógos poético, prosseguindo não apenas os trabalhos iniciados por Heidegger, mas também desde Heráclito e Aristóteles. Com a poíesis crítica se evidencia o abismo que há hoje entre as artes e a indústria da cultura. Os estudos abrangem também as diferenças entre linguagem e comunicação; entre obra de arte e kitsch.

RESENHA

Rubens Russomanno Ricciardi, nascido em 1964, aborda questões urgentes relacionadas ao universo musical em seu ensaio, que incluem política, justiça social, ecossistema, poíesis e práxis. Ele denuncia a ocupação da indústria da cultura nos campos das linguagens artísticas, especialmente na música, e como teorias como a decolonização e o eurocentrismo são usadas para lucrar com o domínio das massas. Russomanno defende a necessidade de colocar a indústria da cultura em seu lugar e destaca a importância de distinguir arte dessa indústria. Ele critica a busca por sucesso imediato por gestores de instituições públicas, que desconsideram os processos civilizatórios que são desenvolvidos a longo prazo e alerta sobre os desastres que concessões no meio do caminho podem causar.

O autor esclarece que a poíesis crítica propõe uma abordagem que integra a questão da linguagem e da ideologia, buscando preencher a lacuna entre práxis e poíesis. O ensaio questiona o eurocentrismo e a decolonialidade, criticando a aversão às artes e à música geradas por ideologias neoliberais. O texto também aborda a crítica ao identitarismo e ao culturalismo, apontando para a influência da indústria da cultura dos EUA e a alienação e coisificação promovidas pelo neoliberalismo. Por fim, a estética, cultura, comunicação e identidade são conceitos vistos como neologismos tardios e extrínsecos à natureza da arte pela poíesis crítica.

Neste ensaio, o autor critica a colonização genocida promovida pela Europa ao longo dos séculos, destacando o racismo, a exploração mercantilista e a perseguição às minorias. Também aborda a resistência aos excessos de alguns grupos identitários neoliberais, que deturpam questões histórico-filosóficas e servem a novas ideologias colonialistas. O autor defende um estudo crítico sobre a eurocentricidade nas artes e a decolonialidade. Além disso, enfatiza a importância da poíesis crítica e da valorização das artes de todos os tempos e lugares, especialmente as brasileiras. Por fim, propõe um maior fomento às artes no Brasil e convida para um estudo conjunto visando uma discussão conceitual alternativa ao culturalismo e à hegemonia neoliberal na indústria da cultura.

Jean-François Lyotard pensou a pós-modernidade a partir da relação entre conhecimento e poder decisório do terror tecnocrata, mas o conceito acabou sendo adotado pela economia e pelas artes. No entanto, a ideia de pós-modernidade não faz sentido nessas áreas, uma vez que o neoliberalismo não representa a superação do capitalismo e a modernidade artística sempre esteve envolta em paradoxos desde suas primeiras gerações. O neologismo de decolonialidade de Aníbal Quijano também foi desvirtuado e acabou prejudicando os estudos de linguagem. Tanto pós-modernidade quanto eurocentrismo e decolonialidade, idealizados na esquerda, se tornaram pautas neoliberais, chegando a afetar a teoria e a subsistência das artes. Na América Latina, a aversão ao eurocentrismo acabou favorecendo a imagem dos EUA, estabelecendo o problema no eurocentrismo em vez do centrismo norte-americano.

O livro aborda a poíesis, que engloba artistas como poetas, arquitetos, coreógrafos, entre outros, e envolve os processos de concepção e produção de obras de arte. Destaca a importância da crítica e invenção na linguagem artística, discute a relação entre Marx, Engels e a ausência do conceito de poíesis, e explora a autonomia dialética da arte. O texto também menciona a importância da mímesis, do distanciamento crítico e da abstração na poíesis, ressaltando a necessidade de preservar a liberdade artística e evitar a alienação. Por fim, aborda conceitos como pólemos em Heráclito, a fusão de horizontes e a valorização da liberdade dentro das restrições na criação artística. A poíesis engloba a composição autoral e o tratamento inventivo do material artístico, enquanto a práxis é o processo hermenêutico de interpretação e execução corporal das fontes da obra. A técnica nas artes é essencial para a constituição da linguagem, representando uma essência ontológica que envolve tanto a poíesis quanto a práxis. O conceito de lógos, originalmente grego e relacionado à linguagem e inteligência, é fundamental para o entendimento das artes representativas, como teatro, dança e música. Heidegger ressalta a importância da alétheia, o desvelamento na linguagem, que diferencia a téchne, arte, da epistéme, conhecimento nas ciências. A distinção entre artista e artesão também é abordada, ressaltando a importância do know-how e do trabalho manual na técnica artística.

O texto discute a diferença entre a poíesis humana e a poíesis da natureza, destacando a monumentalidade da poíesis da phýsis. O autor argumenta que o Homo sapiens, sem sabedoria, se considera um Homo creativus, mas na verdade é um Homo stultus que perturba a natureza. É enfatizada a importância de distinguir entre a criação da natureza e as invenções humanas, assim como a necessidade de humildade e respeito diante da natureza. Além disso, é abordada a questão da relação entre a religião e a destruição da natureza, ressaltando a importância do cuidado com o meio ambiente. Por fim, são propostos quatro desdobramentos para o lógos humano: homologia, lógos filosófico, lógos poético e lógos corpóreo, discutindo a importância da theoría, poíesis e práxis nas artes e na filosofia, destacando a necessidade de uma visão crítica e existencial para compreender a complexidade dos fenômenos. A theoría é essencial para as ciências da natureza e a filosofia, bem como para a poíesis e práxis nas artes. A transformação do mundo depende de um pensamento crítico, da poíesis e do olhar profundo sobre as questões da essência para além da aparência. A poíesis é uma forma de utopia que transforma o mundo, enquanto a práxis política sem poíesis crítica pode levar ao fracasso. A arte e a filosofia radicais são fundamentais para compreender e transformar a realidade. O texto também critica a redução da teoria e da prática, enfatizando a importância da poíesis na criação artística e em outros campos como a engenharia e medicina. O esquecimento da poíesis prejudica não apenas as artes, mas também questões ideológicas e linguísticas, sendo essencial valorizar a invenção e a originalidade nas artes.

O ensaio também aborda questões como identitarismo, homossexualidade, luta pela igualdade social, história da homossexualidade na Alemanha, críticas de Marx e Engels, eurocentrismo, decolonialidade, arte brasileira, vandalismo, inclusão neoliberal, CAPES, ensino, pesquisa, extensão universitária, cultura na universidade, política cultural e autonomia das artes. Enfatiza a importância da pesquisa rigorosa, da crítica à sociedade repressiva, da arte como expressão da condição humana e do desenvolvimento de políticas que promovam a emancipação e a transformação social, concluindo assim, que, a linguagem, portanto, é essencial para a expressão artística, a compreensão crítica e a emancipação do pensamento crítico-existencial na poíesis crítica. Ela transcende a mera comunicação para se tornar a base da obra de arte e da reflexão filosófica, sendo fundamental para a compreensão do mundo e da existência humana.

O autor também aborda a questão do esquecimento da poíesis em Marx e Engels em relação a Max Stirner, destacando a importância da poíesis na produção artística e sua diferença em relação à produção de trabalho. Ele critica a falta de reconhecimento da poíesis na estética, ressaltando a importância da percepção sensorial e da habilidade inventiva na criação artística. O autor também menciona casos de censura identitária na arte, destacando a importância de valorizar a poíesis em vez de priorizar a práxis ou a representatividade em questões artísticas.

O autor reconhece a importância de valorizar a ancestralidade negra e indígena nas artes brasileiras, destacando a luta política e econômica por justiça, igualdade e dignidade. Discute a questão do racismo cotidiano e a importância de combinar raça e classe na luta social. Também aborda a questão do conceito de raça e sua relação com o racismo, defendendo a necessidade de preservar a memória dos artistas pretos e pardos no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais. Além disso, questiona a visão deturpada de elitismo cultural por parte de alguns setores, destacando a importância dos projetos sociais e das escolas de música na formação educacional das crianças.

O autor entende que conceito de cultura passou por mudanças significativas desde o Iluminismo, deixando de ser associado apenas à agricultura e se tornando manifestação do intelecto humano. Nos tempos modernos, a cultura é confundida com arte, mas isso prejudica a compreensão da essência da arte. A divisão entre alta e baixa cultura é preconceituosa e não ajuda a compreender as artes. A ideia de cultura se generalizou e prevalece até hoje, mas pode ser prejudicial para as artes. A indústria da cultura, um monstro engendrado pela racionalidade, contribui para a confusão entre cultura e arte. A poíesis crítica busca emancipar as artes dos campos da cultura, comunicação e identidades. Atualmente, a cultura é predominada pelo kitsch e a arte é sufocada por ela. A cultura não pode se confundir com o mundo da vida, e a arte é uma exceção que se distancia crítica das ideologias culturais. Os processos de coisificação e alienação são intensificados pelo capitalismo neoliberal, que lucra com a cultura. A cultura contemporânea, produzida em série, se tornou um espetáculo kitsch do capitalismo predatório, que destrói as inteligências e linguagens humanas.

Nesta obra, expõe-se também que Mario Stoppino e Norberto Bobbio discutem os significados fraco e forte de cultura, fazendo paralelos com a ideologia em Marx e Engels. O significado fraco abrange todas as manifestações humanas, enquanto o forte se concentra na poíesis crítica. A cultura fraca relativiza todas as atividades humanas como arte e filosofia, mas não consegue diferenciá-las. No significado forte, a cultura se restringe ao costume, ao hábito, e à norma, além de buscar a exceção e a singularidade na superação da lógica de um sistema. O texto critica a priorização da indústria da cultura em detrimento das artes, defendendo a liberdade das expressões artísticas e alertando para a alienação causada pela invasão cultural. Estudos culturais devem valorizar a poíesis crítica e a liberdade inventiva das artes, fugindo dos padrões impostos pela indústria da cultura. Os casos de Bach e Beethoven são apresentados como exemplos de artistas que transcendem sua época e se destacam pela qualidade e originalidade de suas obras.

A discussão sobre a aporia entre conservador e progressista na poíesis crítica revela a incoerência e os engodos presentes nesse debate. A delimitação entre conservador e progressista acaba levando a caminhos viciados. A luta por preservar a natureza e a dignidade da vida humana é essencial, mas forçar uma definição simplista entre os dois extremos não reflete a complexidade da realidade. A dicotomia conservador/progressista não é suficiente para entender as nuances ideológicas e políticas em questão. Em meio a críticas à política econômica conservadora e à iconoclastia progressista, é possível perceber a complexidade das relações entre partidos políticos e ideologias. A resistência às invasões culturais e a valorização da poíesis como forma de transcendência são aspectos centrais na reflexão sobre os desafios contemporâneos das artes.

A obra de Rubens Russomanno Ricciardi destaca a importância de compositores como Bach e Mozart, considerados universalmente influentes. Questiona o relativismo cultural da indústria da cultura, que valoriza a diversidade, mas acaba impondo suas próprias ideologias. Discute também a diferença entre arte popular e indústria cultural, e aponta incoerências nas pautas identitárias neoliberais em relação às artes milenares, ressaltando a importância da integridade ontológico-poético-crítica e fazendo críticas a algumas posturas e práticas.

Apesar dos questionamentos e críticas apresentados, a obra de Rubens Russomanno Ricciardi se destaca por abordar questões urgentes e relevantes relacionadas ao universo musical e à indústria da cultura. Sua defesa da importância da poíesis crítica, da valorização das artes de todos os tempos e lugares, e do combate ao eurocentrismo e à colonização genocida são aspectos que merecem destaque. O autor demonstra um profundo conhecimento e reflexão sobre temas complexos como identitarismo, neoliberalismo, racismo e preservação da natureza, apontando para a necessidade de uma visão crítica e existencial para compreender e transformar a realidade. A obra de Rubens Russomanno Ricciardi contribui para ampliar o debate e o entendimento sobre as questões artísticas e culturais da atualidade, estimulando o leitor a refletir e se posicionar diante desses desafios.

Resenha: Luiz Gama Contra o Império: A Luta Pelo Direito no Brasil da Escravidão, de Bruno Rodrigues de Lima

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APRESENTAÇÃO

“Luiz Gama contra o Império” marca um novo estágio nos estudos sobre a trajetória e a obra de Luiz Gama, este personagem tão importante de nossa história, nosso maior advogado, nosso abolicionista primeiro e um dos grandes pensadores da formação social brasileira. Bruno Lima dá corpo e nos permite um mergulho profundo no pensamento de Luiz Gama, mas também nas mazelas e nas possibilidades emancipatórias que fazem parte do Brasil." SILVIO ALMEIDA

"Se a História do Brasil fosse um misterioso quebra-cabeça e estivesse faltando uma de suas peças essenciais, você não levaria muito tempo para perceber que este livro é a peça que faltava." TÂMIS PARRON A Editora Contracorrente tem a satisfação de anunciar o lançamento do livro “Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidão”, de autoria do pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, reconhecidamente o maior especialista na obra de Luiz Gama.

A obra, que nasce clássica, corresponde à versão revista e atualizada da tese de doutorado que o autor defendeu na Faculdade de Direito da Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main e que lhe rendeu o prêmio Walter Kolb de melhor tese de doutorado da Universidade de Frankfurt e a medalha Otto Hahn de destaque científico da Sociedade Max Planck.

RESENHA

A obra ressalta a importância de Luiz Gama como um pensador do Brasil, não apenas como um advogado e abolicionista. Ele foi fundamental na análise da realidade brasileira, criticando suas estruturas políticas e jurídicas. Sua luta pela abolição da escravidão também estava ligada à necessidade de uma mudança política, mostrando que a liberdade dos escravizados dependia da liberdade do país de suas amarras políticas e econômicas. Além disso, Luiz Gama também trouxe a questão africana para a formação do Brasil, sendo um defensor da liberdade dos africanos trazidos à força para o país. O livro "Luiz Gama contra o Império" marca um novo estágio nos estudos sobre Luiz Gama, destacando sua importância como advogado, abolicionista e pensador da formação social brasileira.

O livro é uma versão revista e atualizada da tese de doutorado de Bruno Rodrigues de Lima, defendida em 2022. O trabalho recebeu prêmios e reconhecimento acadêmico. O autor agradece aos professores, ao Instituto Max Planck, colegas acadêmicos, funcionários de arquivos, equipe da editora Contracorrente, amigos e família. Ele também destaca a importância da orientação de seu orientador, Thomas Duve, e do apoio de diversos professores ao longo de sua formação acadêmica.

A obra se inicia narrando os acontecimentos em 1880, quando o juiz Lúcio de Mendonça escreveu o primeiro perfil biográfico do jurista Luiz Gama, destacando a importância do direito na vida e na luta contra a escravidão de Gama. Mendonça sugeriu que a história do jurista deve ser estudada através do direito, e não da política ou do romance. A vida de Gama é marcada por suas atividades como soldado, amanuense, advogado e teórico da sociedade, desenvolvendo uma literatura normativo-pragmática voltada para a produção de liberdade. Seu legado é ressaltado como fundamental para a compreensão da história do direito no Brasil do século XIX, fazendo com que a história do labirinto na literatura ocidental foi reinterpretada por Jorge Luis Borges em 1947 em seu conto "A casa de Astérion", oferecendo uma nova visão do mito do Minotauro. Borges humanizou o monstro, que antes era visto apenas como irracional, trazendo a solidão e o pensamento à sua personagem. Posteriormente, o texto aborda a relação entre o Brasil do século XIX, visto como um labirinto de nações, e a política do contrabando negreiro, que direcionou a entrada de milhões de africanos no país, influenciando a luta pela liberdade dos negros escravizados e libertos. A trajetória de Luiz Gama, nascido na Bahia em meio a essa realidade, é apresentada como um exemplo de resistência e luta por liberdade em um contexto marcado pelo contrabando e pela escravidão.

Na novela Bartleby, o escrevente, o advogado narra a contratação do misterioso Bartleby, que entra para seu escritório como um copista dedicado, mas se recusa a fazer qualquer coisa, respondendo apenas com um "preferiria não fazer". A recusa de Bartleby começa a influenciar os outros personagens, levando-o a perder o emprego e acabar na prisão. O comportamento de Bartleby é interpretado de diversas formas por críticos literários, relacionando-o com a modernidade e a alienação do trabalho. O texto também explora a relação do autor com o direito e a burocracia, destacando a atuação de Luiz Gama na defesa dos direitos dos africanos livres em São Paulo durante o século XIX, mostrando como ele utilizou seu conhecimento normativo para garantir a liberdade dessas pessoas. No entanto, Luiz Gama assumiu o papel de liderança na redação do jornal Radical Paulistano, dedicando-se principalmente a temas jurídicos. Suas crônicas forenses abordavam injustiças e abusos cometidos pelo sistema judiciário, como casos de escravos submetidos a torturas e mortes brutais. Gama utilizava a literatura para denunciar a violência do sistema escravista e a corrupção na administração da justiça, confrontando diretamente juízes e autoridades que permitiam esses abusos. Com uma abordagem crítica e contundente, ele questionava a moralidade e a justiça do Império do Brasil, defendendo a liberdade e os direitos humanos em meio a um cenário de opressão e desigualdade.

Em março de 1872, o jurista Rudolf von Jhering proferiu uma conferência acadêmica em Viena, intitulada "A luta por direito", que teve grande impacto na literatura jurídica de diversos países. Jhering propôs o conceito de "luta" como fundamental para interpretar a história do direito, afirmando que todas as conquistas do direito foram alcançadas através de lutas árduas. Ele mencionou a abolição da escravidão como um exemplo marcante dessa luta pelo direito. Em seguida, o texto aborda a trajetória do jurista Luiz Gama na década de 1870, destacando sua atuação em uma ação judicial na comarca de Santos, envolvendo a partilha do inventário do comendador português Ferreira Neto. Gama solicitou informações sobre os escravos deixados pelo comendador, buscando compreender a situação desses indivíduos e possivelmente garantir-lhes a liberdade. Essa ação judicial foi um dos episódios marcantes da atuação de Gama na defesa dos direitos dos escravizados.

Em fevereiro de 1940, o poeta Paulo da Portela, junto a Cartola e Heitor dos Prazeres, tentou desfilar junto à escola de samba Portela, mas foram impedidos pela diretoria por não estarem trajando as cores da escola. Paulo ficou magoado e se afastou da Portela por nove anos. Após a sua morte, a escola o homenageou diversas vezes, mas a ferida do desentendimento ainda doía. Da mesma forma, Luiz Gama, abolicionista, foi esquecido e seu legado foi distorcido por outros historiadores, como Joaquim Nabuco, que preferiam creditar a liderança a outros. Apesar disso, o povo negro nunca deixou o nome de Paulo da Portela e Luiz Gama caírem no esquecimento, mantendo sua memória viva através da tradição oral, imprensa negra e celebrações anuais. A escola de samba Portela se comprometeu a recontar a história de Luiz Gama em seu desfile.

O estudo apresentado na obra pelo autor é extremamente relevante ao destacar a importância de Luiz Gama como pensador do Brasil, indo além de sua figura como advogado e abolicionista. No entanto, a obra poderia se aprofundar mais na análise do impacto das ideias e ações de Gama na sociedade brasileira da época, bem como em sua relevância para os dias atuais. Além disso, o texto poderia abordar de forma mais crítica as interpretações distorcidas de seu legado por parte de outros historiadores, como Joaquim Nabuco, e ressaltar a importância de preservar e perpetuar a memória de figuras como Luiz Gama na história do Brasil.

[RESENHA #957] O cárcere da agonia, de José Louzeiro, Marcos Meira & André Di Ceni

Escrita com muita vivacidade e contundência, a obra resgata os relatos colhidos durante os mutirões carcerários promovidos pelo Conselho Nacional de Justiça em 2008, os quais escancararam os inúmeros e brutais episódios de violação a direitos humanos básicos nos presídios brasileiros.

Partindo do entendimento de “que o problema não decorre apenas de décadas de negligência, com políticas públicas reiterada e sistematicamente ineficientes, mas também de uma insensibilidade social profunda”, os autores, em exercício de empatia e de suspensão de julgamento, dão voz aos apenados e egressos. Assim, conhecemos histórias repletas de injustiças e (finalmente) justiças, lances de sorte e azar, julgamentos e discriminações, marginalização e ressocialização, degeneração e regeneração, voltas e reviravoltas de personagens como Beatriz, Simone, Guilherme e Raimundo José, nomes fictícios (usados para a proteção dos entrevistados), mas cujas histórias são profundamente humanas e “correspondem a processos judiciais reais, representativos de inúmeros outros em situações análogas, de pessoas esquecidas pelo sistema prisional”.

Como salienta o ministro Gilmar Mendes, que assina o prefácio do livro: “ouso dizer que a presente obra, além do resgate histórico, marca, no Brasil, o trabalho de vigilância e de revisão das prisões, que deve ser permanente e interinstitucional para que os casos emblemáticos trazidos à lume passem cada vez mais a serem exceções, e não regra”.

RESENHA

O cárcere da agonia, de José Louzeiro, Marcos Meira e André Di Ceni, é um livro que resgata os relatos de pessoas que foram presas injustamente ou que sofreram violações de direitos humanos nos presídios brasileiros. O livro se baseia nos mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça em 2008, que revelaram as condições precárias e desumanas do sistema prisional. O livro dá voz aos apenados e egressos, mostrando suas histórias de injustiças, lutas, superações e ressocializações. O livro tem o prefácio do ministro Gilmar Mendes, que destaca a importância do trabalho de vigilância e de revisão das prisões para evitar que os casos de abusos se repitam. O livro é uma obra pungente, que denuncia a violência física, social e institucional, mas também celebra os exemplos de dignidade e de esperança dos sobreviventes.

A obra é uma forma de expor como os encarcerados são submetidos a tratamentos desumanos, seguindo um regime rigoroso que viola em todos os aspectos o Estado Democrático de Direito. Porém, a obra não se limita apenas aos casos de violação, mas também aos casos de tratamento elaborados na perspectiva humana e nos cuidados essenciais à vida.

O capítulo 1, súplicas do Ceará, nos detalha com ricos depoimentos a vida, a vivência e a ressocialização de encarcerados. A população prisional do estado do Ceará era de 13.307 pessoas, sendo 12.799 homens e 508 mulheres, internados em 300 unidades prisionais, entre penitenciárias, colônias agrícolas, cadeias públicas e hospitais psiquiátricos. (p.23).

Um dos casos mais tocantes presentes no capítulo é o primeiro, o relato e a história de Raimundo José. Ele conhece Marta, uma funcionária do departamento pessoal com quem desenvolve um relacionamento às escondidas. Porém, Raimundo se envolve com outras pessoas durante o namoro com Marta, esse envolvimento o leva a cometer pequenos delitos, mas ela decide tirá-lo desse desvio. Tempos depois, ele é libertado e começa a trabalhar como motoboy na secretaria de justiça, através do Núcleo de Assistência ao Presidiário e Apoio ao Regresso (NAPAE), órgão responsável pela inserção dos presidiários no mercado de trabalho.

Outra história, que, de certa forma, demonstra um total desequilíbrio em relação ao funcionamento do cárcere privado e sua manutenção, é a de Jerônimo Xavier. Ele era de uma família humilde que passou por provocações em relação à sua sexualidade. Morava com a mãe em um lar sem a presença paterna, pela morte precoce do pai. Ele residia em uma casa apertada com um dos irmãos chamado Josafá. Na década de 1980, Josafá disparou diversas vezes contra uma vereadora local por uma acusação, que ele considerava falsa. Esse acontecimento fez com que Jerônimo recebesse toda a culpa, o levando novamente ao cárcere.

Jerônimo foi então preso de forma separada dos demais encarcerados, pelo fato de ser soropositivo, e colocado em uma cela de segurança máxima. Em 2011, em virtude da virtualização de seu processo, ele não obteve êxito em um novo julgamento de soltura.

A obra continua narrando a vida de encarcerados que foram presos de forma injusta ou que acabaram pagando pelo erro de outros. Simone se apaixonou por Rafael aos 17 anos, o que ela não sabia é que durante uma viagem, ele, por sua vez, estava decidido a se vingar do ex-padrasto por ter abandonado sua mãe com câncer, o que lhe causou tristeza profunda e o falecimento precoce.

A obra segue analisando casos distintos em diversas cidades de estados ao redor do Brasil, como Maranhão: o caso de Marco Aurélio e Mathias; Bahia: Juan Perez e Ângelo Fernandes; Amazonas: Carlos Alves; Goiás; Distrito Federal, dentre outros.

A obra se finaliza com uma reflexão sobre a obra em relação a uma crítica que revela que o sistema carcerário brasileiro se assemelha ao sistema carcerário medieval. Os autores também falam sobre a importância de refletir sobre as políticas públicas e a forma como o sistema trata e retrata as vidas em julgamento.

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