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Resenha: Contra o Identitarismo Neoliberal: um Ensaio de Poíesis Crítica Pela Apologia das Artes , de Rubens Russomanno Ricciardi

Foto: Arte digital / Divulgação

APRESENTAÇÃO

A obra é um ensaio de poíesis crítica pela apologia das artes. Trata-se, na filosofia das artes, de uma nova epistemologia voltada às questões da linguagem e da ideologia – ao mesmo tempo hermenêutica e dialética, existencial e crítica. Se, em Marx e Engels, há uma práxis crítica e, na Escola de Frankfurt, uma theoría crítica, com a poíesis crítica pretende-se preencher a lacuna do esquecimento da poíesis e solucionar a confusão entre práxis e poíesis. Definindo a elaboração da obra de linguagem enquanto processo crítico-inventivo, a poíesis não é teórica nem prática. Para a poíesis crítica importa o lógos poético, prosseguindo não apenas os trabalhos iniciados por Heidegger, mas também desde Heráclito e Aristóteles. Com a poíesis crítica se evidencia o abismo que há hoje entre as artes e a indústria da cultura. Os estudos abrangem também as diferenças entre linguagem e comunicação; entre obra de arte e kitsch.

RESENHA

Rubens Russomanno Ricciardi, nascido em 1964, aborda questões urgentes relacionadas ao universo musical em seu ensaio, que incluem política, justiça social, ecossistema, poíesis e práxis. Ele denuncia a ocupação da indústria da cultura nos campos das linguagens artísticas, especialmente na música, e como teorias como a decolonização e o eurocentrismo são usadas para lucrar com o domínio das massas. Russomanno defende a necessidade de colocar a indústria da cultura em seu lugar e destaca a importância de distinguir arte dessa indústria. Ele critica a busca por sucesso imediato por gestores de instituições públicas, que desconsideram os processos civilizatórios que são desenvolvidos a longo prazo e alerta sobre os desastres que concessões no meio do caminho podem causar.

O autor esclarece que a poíesis crítica propõe uma abordagem que integra a questão da linguagem e da ideologia, buscando preencher a lacuna entre práxis e poíesis. O ensaio questiona o eurocentrismo e a decolonialidade, criticando a aversão às artes e à música geradas por ideologias neoliberais. O texto também aborda a crítica ao identitarismo e ao culturalismo, apontando para a influência da indústria da cultura dos EUA e a alienação e coisificação promovidas pelo neoliberalismo. Por fim, a estética, cultura, comunicação e identidade são conceitos vistos como neologismos tardios e extrínsecos à natureza da arte pela poíesis crítica.

Neste ensaio, o autor critica a colonização genocida promovida pela Europa ao longo dos séculos, destacando o racismo, a exploração mercantilista e a perseguição às minorias. Também aborda a resistência aos excessos de alguns grupos identitários neoliberais, que deturpam questões histórico-filosóficas e servem a novas ideologias colonialistas. O autor defende um estudo crítico sobre a eurocentricidade nas artes e a decolonialidade. Além disso, enfatiza a importância da poíesis crítica e da valorização das artes de todos os tempos e lugares, especialmente as brasileiras. Por fim, propõe um maior fomento às artes no Brasil e convida para um estudo conjunto visando uma discussão conceitual alternativa ao culturalismo e à hegemonia neoliberal na indústria da cultura.

Jean-François Lyotard pensou a pós-modernidade a partir da relação entre conhecimento e poder decisório do terror tecnocrata, mas o conceito acabou sendo adotado pela economia e pelas artes. No entanto, a ideia de pós-modernidade não faz sentido nessas áreas, uma vez que o neoliberalismo não representa a superação do capitalismo e a modernidade artística sempre esteve envolta em paradoxos desde suas primeiras gerações. O neologismo de decolonialidade de Aníbal Quijano também foi desvirtuado e acabou prejudicando os estudos de linguagem. Tanto pós-modernidade quanto eurocentrismo e decolonialidade, idealizados na esquerda, se tornaram pautas neoliberais, chegando a afetar a teoria e a subsistência das artes. Na América Latina, a aversão ao eurocentrismo acabou favorecendo a imagem dos EUA, estabelecendo o problema no eurocentrismo em vez do centrismo norte-americano.

O livro aborda a poíesis, que engloba artistas como poetas, arquitetos, coreógrafos, entre outros, e envolve os processos de concepção e produção de obras de arte. Destaca a importância da crítica e invenção na linguagem artística, discute a relação entre Marx, Engels e a ausência do conceito de poíesis, e explora a autonomia dialética da arte. O texto também menciona a importância da mímesis, do distanciamento crítico e da abstração na poíesis, ressaltando a necessidade de preservar a liberdade artística e evitar a alienação. Por fim, aborda conceitos como pólemos em Heráclito, a fusão de horizontes e a valorização da liberdade dentro das restrições na criação artística. A poíesis engloba a composição autoral e o tratamento inventivo do material artístico, enquanto a práxis é o processo hermenêutico de interpretação e execução corporal das fontes da obra. A técnica nas artes é essencial para a constituição da linguagem, representando uma essência ontológica que envolve tanto a poíesis quanto a práxis. O conceito de lógos, originalmente grego e relacionado à linguagem e inteligência, é fundamental para o entendimento das artes representativas, como teatro, dança e música. Heidegger ressalta a importância da alétheia, o desvelamento na linguagem, que diferencia a téchne, arte, da epistéme, conhecimento nas ciências. A distinção entre artista e artesão também é abordada, ressaltando a importância do know-how e do trabalho manual na técnica artística.

O texto discute a diferença entre a poíesis humana e a poíesis da natureza, destacando a monumentalidade da poíesis da phýsis. O autor argumenta que o Homo sapiens, sem sabedoria, se considera um Homo creativus, mas na verdade é um Homo stultus que perturba a natureza. É enfatizada a importância de distinguir entre a criação da natureza e as invenções humanas, assim como a necessidade de humildade e respeito diante da natureza. Além disso, é abordada a questão da relação entre a religião e a destruição da natureza, ressaltando a importância do cuidado com o meio ambiente. Por fim, são propostos quatro desdobramentos para o lógos humano: homologia, lógos filosófico, lógos poético e lógos corpóreo, discutindo a importância da theoría, poíesis e práxis nas artes e na filosofia, destacando a necessidade de uma visão crítica e existencial para compreender a complexidade dos fenômenos. A theoría é essencial para as ciências da natureza e a filosofia, bem como para a poíesis e práxis nas artes. A transformação do mundo depende de um pensamento crítico, da poíesis e do olhar profundo sobre as questões da essência para além da aparência. A poíesis é uma forma de utopia que transforma o mundo, enquanto a práxis política sem poíesis crítica pode levar ao fracasso. A arte e a filosofia radicais são fundamentais para compreender e transformar a realidade. O texto também critica a redução da teoria e da prática, enfatizando a importância da poíesis na criação artística e em outros campos como a engenharia e medicina. O esquecimento da poíesis prejudica não apenas as artes, mas também questões ideológicas e linguísticas, sendo essencial valorizar a invenção e a originalidade nas artes.

O ensaio também aborda questões como identitarismo, homossexualidade, luta pela igualdade social, história da homossexualidade na Alemanha, críticas de Marx e Engels, eurocentrismo, decolonialidade, arte brasileira, vandalismo, inclusão neoliberal, CAPES, ensino, pesquisa, extensão universitária, cultura na universidade, política cultural e autonomia das artes. Enfatiza a importância da pesquisa rigorosa, da crítica à sociedade repressiva, da arte como expressão da condição humana e do desenvolvimento de políticas que promovam a emancipação e a transformação social, concluindo assim, que, a linguagem, portanto, é essencial para a expressão artística, a compreensão crítica e a emancipação do pensamento crítico-existencial na poíesis crítica. Ela transcende a mera comunicação para se tornar a base da obra de arte e da reflexão filosófica, sendo fundamental para a compreensão do mundo e da existência humana.

O autor também aborda a questão do esquecimento da poíesis em Marx e Engels em relação a Max Stirner, destacando a importância da poíesis na produção artística e sua diferença em relação à produção de trabalho. Ele critica a falta de reconhecimento da poíesis na estética, ressaltando a importância da percepção sensorial e da habilidade inventiva na criação artística. O autor também menciona casos de censura identitária na arte, destacando a importância de valorizar a poíesis em vez de priorizar a práxis ou a representatividade em questões artísticas.

O autor reconhece a importância de valorizar a ancestralidade negra e indígena nas artes brasileiras, destacando a luta política e econômica por justiça, igualdade e dignidade. Discute a questão do racismo cotidiano e a importância de combinar raça e classe na luta social. Também aborda a questão do conceito de raça e sua relação com o racismo, defendendo a necessidade de preservar a memória dos artistas pretos e pardos no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais. Além disso, questiona a visão deturpada de elitismo cultural por parte de alguns setores, destacando a importância dos projetos sociais e das escolas de música na formação educacional das crianças.

O autor entende que conceito de cultura passou por mudanças significativas desde o Iluminismo, deixando de ser associado apenas à agricultura e se tornando manifestação do intelecto humano. Nos tempos modernos, a cultura é confundida com arte, mas isso prejudica a compreensão da essência da arte. A divisão entre alta e baixa cultura é preconceituosa e não ajuda a compreender as artes. A ideia de cultura se generalizou e prevalece até hoje, mas pode ser prejudicial para as artes. A indústria da cultura, um monstro engendrado pela racionalidade, contribui para a confusão entre cultura e arte. A poíesis crítica busca emancipar as artes dos campos da cultura, comunicação e identidades. Atualmente, a cultura é predominada pelo kitsch e a arte é sufocada por ela. A cultura não pode se confundir com o mundo da vida, e a arte é uma exceção que se distancia crítica das ideologias culturais. Os processos de coisificação e alienação são intensificados pelo capitalismo neoliberal, que lucra com a cultura. A cultura contemporânea, produzida em série, se tornou um espetáculo kitsch do capitalismo predatório, que destrói as inteligências e linguagens humanas.

Nesta obra, expõe-se também que Mario Stoppino e Norberto Bobbio discutem os significados fraco e forte de cultura, fazendo paralelos com a ideologia em Marx e Engels. O significado fraco abrange todas as manifestações humanas, enquanto o forte se concentra na poíesis crítica. A cultura fraca relativiza todas as atividades humanas como arte e filosofia, mas não consegue diferenciá-las. No significado forte, a cultura se restringe ao costume, ao hábito, e à norma, além de buscar a exceção e a singularidade na superação da lógica de um sistema. O texto critica a priorização da indústria da cultura em detrimento das artes, defendendo a liberdade das expressões artísticas e alertando para a alienação causada pela invasão cultural. Estudos culturais devem valorizar a poíesis crítica e a liberdade inventiva das artes, fugindo dos padrões impostos pela indústria da cultura. Os casos de Bach e Beethoven são apresentados como exemplos de artistas que transcendem sua época e se destacam pela qualidade e originalidade de suas obras.

A discussão sobre a aporia entre conservador e progressista na poíesis crítica revela a incoerência e os engodos presentes nesse debate. A delimitação entre conservador e progressista acaba levando a caminhos viciados. A luta por preservar a natureza e a dignidade da vida humana é essencial, mas forçar uma definição simplista entre os dois extremos não reflete a complexidade da realidade. A dicotomia conservador/progressista não é suficiente para entender as nuances ideológicas e políticas em questão. Em meio a críticas à política econômica conservadora e à iconoclastia progressista, é possível perceber a complexidade das relações entre partidos políticos e ideologias. A resistência às invasões culturais e a valorização da poíesis como forma de transcendência são aspectos centrais na reflexão sobre os desafios contemporâneos das artes.

A obra de Rubens Russomanno Ricciardi destaca a importância de compositores como Bach e Mozart, considerados universalmente influentes. Questiona o relativismo cultural da indústria da cultura, que valoriza a diversidade, mas acaba impondo suas próprias ideologias. Discute também a diferença entre arte popular e indústria cultural, e aponta incoerências nas pautas identitárias neoliberais em relação às artes milenares, ressaltando a importância da integridade ontológico-poético-crítica e fazendo críticas a algumas posturas e práticas.

Apesar dos questionamentos e críticas apresentados, a obra de Rubens Russomanno Ricciardi se destaca por abordar questões urgentes e relevantes relacionadas ao universo musical e à indústria da cultura. Sua defesa da importância da poíesis crítica, da valorização das artes de todos os tempos e lugares, e do combate ao eurocentrismo e à colonização genocida são aspectos que merecem destaque. O autor demonstra um profundo conhecimento e reflexão sobre temas complexos como identitarismo, neoliberalismo, racismo e preservação da natureza, apontando para a necessidade de uma visão crítica e existencial para compreender e transformar a realidade. A obra de Rubens Russomanno Ricciardi contribui para ampliar o debate e o entendimento sobre as questões artísticas e culturais da atualidade, estimulando o leitor a refletir e se posicionar diante desses desafios.

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