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| Acervo Pessoal / Divulgação |
O ensino médio americano é, na literatura Young Adult, um território frequentemente higienizado. Vitor Zindacta, no entanto, trata os corredores da Northwood High não como um cenário de John Hughes, mas como um ecossistema político brutal, regido por castas, medo e silêncio. Em "A Teoria do Caos", o autor utiliza a física para explicar a sociologia adolescente: em um sistema altamente ordenado e repressivo, a introdução de um único elemento imprevisível pode levar ao colapso total da estrutura.
O romance coloca em rota de colisão Jace Miller, o quarterback que carrega o peso de uma dinastia familiar e a expectativa de perfeição, e Noah Evans, o "garoto invisível" que observa as falhas na Matrix social com um cinismo afiado. O que começa como um arranjo de conveniência — a clássica trope de tutoria — evolui para uma dissecação da masculinidade performática. Zindacta não está interessado no primeiro beijo doce; ele está interessado no momento em que a máscara cai e o rosto por trás dela está aterrorizado.
Nesta entrevista exclusiva, conversamos com o autor sobre a decisão de transformar o vestiário em um palco de guerra psicológica, a subversão do "final feliz" esportivo e como a teoria do caos se aplica à descoberta da identidade queer.
ENTREVISTA EXCLUSIVA: QUANDO A ORDEM É A PRISÃO
REDAÇÃO: Vitor, o título "A Teoria do Caos" remete ao conceito matemático de que pequenas mudanças em condições iniciais podem resultar em grandes diferenças. Como esse conceito dita a estrutura narrativa do relacionamento entre Jace e Noah?
VITOR ZINDACTA: A vida de Jace era um sistema linear, perfeitamente previsível: jogo, vitória, Ivy League, casamento de fachada. Noah é a "condição inicial" que muda. Um olhar no vestiário, uma conversa honesta na arquibancada... são pequenas perturbações. A narrativa mostra como esses micro-eventos desestabilizam a macro-estrutura da vida de Jace. O caos aqui não é desordem; é a liberdade que surge quando a ordem artificial quebra.
REDAÇÃO: A cena do vestiário, onde Jace vê Noah nu, é o incidente incitante. Em vez de erotizá-la imediatamente, você a carregou de tensão e desconforto. Qual foi a intenção técnica ao começar a dinâmica deles pela vulnerabilidade física absoluta?
VITOR ZINDACTA: Eu precisava desarmar Jace imediatamente. No corredor, Jace tem a armadura social (o uniforme, a popularidade). No vestiário, diante da nudez casual e sem vergonha de Noah, Jace é confrontado com a própria repressão. A nudez de Noah não é sexual naquele momento; é um ato de desafio. É a realidade crua invadindo o espaço asséptico e "macho" do vestiário. Foi uma escolha para estabelecer que Noah, apesar de invisível socialmente, era mais "real" do que o Rei da escola.
REDAÇÃO: Jace Miller é descrito como um "ventríloquo do pai". Richard Miller é um antagonista formidável. Como você trabalhou a psicologia de Jace para que sua submissão ao pai não parecesse fraqueza, mas condicionamento?
VITOR ZINDACTA: Jace é uma vítima de abuso emocional de alto funcionamento. O condicionamento opera na base da recompensa, não apenas da punição. Quando ele obedece, ele recebe amor (ou a versão distorcida disso). A técnica foi mostrar o monólogo interno de Jace, o pânico constante de decepcionar. A submissão dele é um mecanismo de sobrevivência. Para o leitor, isso gera empatia, não desprezo. Entendemos que quebrar esse ciclo é mais difícil do que ganhar um campeonato.
REDAÇÃO: Noah Evans foge do estereótipo do nerd tímido. Ele é confrontador, sarcástico e, às vezes, hostil. Por que foi importante dar a Noah dentes, em vez de torná-lo uma donzela em perigo?
VITOR ZINDACTA: Porque Jace não precisava de alguém para salvar; ele precisava de alguém para acordá-lo. Um Noah passivo seria engolido pela gravidade de Jace. Noah precisava ter gravidade própria. O sarcasmo dele é seu escudo. Ele precisava ser capaz de olhar para o quarterback e dizer "você é uma fraude" na cara dele. A química nasce desse embate de forças, não da submissão.
REDAÇÃO: O livro subverte o clímax esportivo. Em vez de fazer o touchdown da vitória, Jace abandona o jogo. Literariamente, o que esse ato de "anti-clímax" representa para o arco do herói?
VITOR ZINDACTA: O "touchdown da vitória" seria a vitória do pai dele, a vitória da narrativa que aprisionou Jace. Se ele ganhasse o jogo, ele perderia a alma. O ato de tirar o capacete e sair de campo no meio da jogada é o verdadeiro clímax. É a rejeição do papel de herói clássico para assumir o papel de protagonista da própria vida. É um ato de violência contra a expectativa alheia.
REDAÇÃO: A "heterossexualidade performática" é um tema central. Brad, o rival, e o próprio Jace no início, atuam o tempo todo. Como você traduziu essa performance em linguagem corporal e diálogo?
VITOR ZINDACTA: Através do exagero e do silêncio. Os diálogos do vestiário são performáticos: altos, agressivos, cheios de gírias que reafirmam a dominância. Quando Jace está atuando, sua linguagem corporal é rígida, expansiva. Quando ele está com Noah, ele "encolhe", a voz baixa, o corpo relaxa. O contraste entre o "Jace público" e o "Jace privado" é a medida dessa performance.
REDAÇÃO: A ambientação transita entre o neon das festas e o concreto rachado das quadras públicas. Como a estética visual, quase vaporwave em alguns momentos, influencia o tom da história?
VITOR ZINDACTA: A estética serve para realçar o contraste entre o artificial e o real. As festas, as luzes do estádio, o brilho da popularidade — tudo isso é neon, é bonito mas é sintético. O concreto rachado, o pôr do sol na quadra velha, o interior do carro de Noah — isso é o orgânico, o real. A atmosfera visual guia o leitor emocionalmente entre esses dois mundos.
REDAÇÃO: O tropo fake dating (namoro falso) ou, neste caso, "tutoria falsa", é um clássico. Como você o atualizou para que não parecesse apenas um recurso de enredo preguiçoso?
VITOR ZINDACTA: Transformando-o em uma necessidade vital, não uma comédia de erros. Jace não usa a tutoria para passar de ano; ele usa para ter um espaço onde pode respirar. A "tutoria" vira um código para "intimidade segura". O tropo funciona porque a aposta é alta: se a mentira for descoberta, a vida de Jace acaba. O perigo renova o clichê.
REDAÇÃO: Você aborda o bullying não apenas como agressão física, mas como isolamento social. A invisibilidade de Noah é uma escolha ou uma imposição?
VITOR ZINDACTA: É uma adaptação. Noah percebeu que ser visto naquele ambiente era perigoso, então ele dominou a arte de desaparecer. É uma armadura diferente da de Jace. Jace usa o holofote para se esconder; Noah usa a sombra. Ambos estão se escondendo, e é por isso que se reconhecem.
REDAÇÃO: A relação de Jace com a mãe é complexa, uma figura passiva que vê, mas não age. Qual o papel dela na manutenção do sistema patriarcal da família Miller?
VITOR ZINDACTA: Ela é a "colaboradora silenciosa". Ela representa o custo da paz a qualquer preço. A tragédia dela serve de aviso para Jace: se você não lutar agora, você vai passar o resto da vida assistindo sua própria existência do banco de passageiros. Ela é o futuro que Jace recusa.
REDAÇÃO: O beijo na chuva ou no carro é um staple do gênero. Em "A Teoria do Caos", os momentos de intimidade são descritos como "desesperados". Por que essa escolha de adjetivo?
VITOR ZINDACTA: Porque eles estão roubando tempo. Eles estão se tocando como se o mundo fosse acabar amanhã, porque no universo deles, pode acabar mesmo. Não é um romance de verão preguiçoso; é um romance de trincheira. O desespero vem da consciência de que aquele momento pode ser o único.
REDAÇÃO: O vilão Brad é homofóbico, mas você deixa pistas de que a obsessão dele por Jace pode ter outras raízes. A homofobia dele é um mecanismo de defesa?
VITOR ZINDACTA: A homofobia virulenta quase sempre é um espelho quebrado. Brad não odeia Jace apenas porque ele desconfia; ele odeia Jace porque Jace tem a coragem (eventualmente) de ser o que Brad talvez tema ser. Brad é o cão de guarda do sistema porque o sistema é a única coisa que lhe dá valor.
REDAÇÃO: A fuga para Nova York no final é quase onírica. Por que a cidade grande representa a redenção para esses personagens de cidade pequena?
VITOR ZINDACTA: Nova York é o anonimato funcional. Em Northwood, todos sabem o seu nome e o seu lugar. Em Nova York, você é ninguém, e por ser ninguém, você pode ser qualquer um. A cidade grande oferece a escala necessária para que o amor deles deixe de ser um "evento" e se torne apenas rotina.
REDAÇÃO: A escrita em primeira pessoa (POV de Jace) limita o leitor ao que Jace sabe. Como você usou essa limitação para aumentar o mistério sobre os sentimentos de Noah?
VITOR ZINDACTA: Jace é um narrador não confiável em relação a si mesmo e inseguro em relação aos outros. Ele projeta suas inseguranças em Noah. Quando Noah fica quieto, Jace acha que é rejeição, mas o leitor (pelos gestos de Noah) percebe que é afeto. Esse gap entre o que Jace teme e o que Noah sente cria a angústia romântica que move as páginas.
REDAÇÃO: O "caos" vence no final? Ou eles criam uma nova ordem?
VITOR ZINDACTA: O caos vence a velha ordem. Mas a beleza da Teoria do Caos é que, dentro da aleatoriedade, surgem padrões complexos e belos (fractais). Eles não vivem na anarquia; eles criam um padrão novo, próprio, que não segue a geometria euclidiana da Northwood High.
REDAÇÃO: O livro toca em privilégio de classe. Jace é rico, Noah é classe trabalhadora. Como isso afeta a dinâmica de poder entre eles?
VITOR ZINDACTA: Inverte a dinâmica. Jace tem o dinheiro, mas Noah tem a autonomia. Noah trabalha, tem seu carro (mesmo velho), suas tintas. Jace tem tudo, mas não é dono de nada; tudo pertence ao pai. Noah ensina Jace que a independência econômica é o primeiro passo para a liberdade emocional.
REDAÇÃO: A cena em que Jace saca dinheiro da conta conjunta antes de fugir é um detalhe prático interessante. Por que incluir essa logística de fuga?
VITOR ZINDACTA: Para aterrar a história na realidade. Amor não paga aluguel. Eu não queria que a fuga fosse mágica. Eles precisam de gasolina, comida, dinheiro. Jace "roubando" o próprio dinheiro é o ato simbólico de recuperar o fruto do seu "trabalho" como filho troféu. É a indenização dele.
REDAÇÃO: Qual a importância de manter o final "aberto", sem mostrar eles 10 anos depois casados e com filhos?
VITOR ZINDACTA: Porque eles têm 17/18 anos. Mostrar um "felizes para sempre" definitivo seria falso. O final feliz deles é terem sobrevivido ao ensino médio e estarem juntos na estrada. O futuro é uma página em branco, e depois de terem a vida toda roteirizada por outros, uma página em branco é o melhor presente que eu poderia dar a eles.
REDAÇÃO: O livro é classificado como YA, mas lida com temas densos. Você acha que subestimamos a capacidade dos adolescentes de entenderem a complexidade moral?
VITOR ZINDACTA: Constantemente. Adolescentes vivem complexidades morais diariamente. Eles navegam por hierarquias sociais mais complexas que muitas empresas. Escrever para eles exige honestidade brutal, não condescendência. Eles sabem quando você está mentindo sobre como o mundo funciona.
REDAÇÃO: Vitor, para encerrar: se "A Teoria do Caos" fosse resumida em uma manchete de jornal escolar que nunca seria publicada, qual seria?
VITOR ZINDACTA: "O REI ESTÁ NU E FINALMENTE FELIZ: QUARTERBACK TROCA COROA DE PLÁSTICO PELA VIDA REAL."
