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Resenha: Contos céticos, de Adriana Lunardi

Foto: Arte digital / Divulgação

 

APRESENTAÇÃO

A escrita de Adriana Lunardi traz uma astúcia que nos coloca, sempre de repente, na companhia das belezas imperfeitas que decorrem da tragédia cotidiana – a¬li, de onde não se pode fugir, o deleite e desespero de coexistir; ali, quando há sempre um eu, um outro.

Desconfiados e a seu lado, acompanhamos um estrangeiro na praia, criamos personagens, perdemos o ar por completo em uma pandemia, e a visão, na velhice. Em seus nove contos e uma nota do destino, conhecemos crianças erráticas, idosos mais erráticos ainda, escritores vaidosos e autoflagelados, e vislumbramos o que chamam de ‘loucura que acomete gênios e artistas’, mas sequer chegamos perto de tocá-la – é impossível. Olhamos no olho do mistério porque, em Contos céticos, não há quarta parede diante do luto, das últimas imagens que se tem de alguém. Tudo pode ser maculado. Uma criança, a literatura, Paris.

Mas o que torna Contos céticos uma coletânea excepcional são as imagens extraordinárias que Lunardi é capaz de criar a partir de elementos triviais da existência. Sua narrativa fascinante não vem apenas de uma habilidade magistral, mas de sua uma profunda intimidade com a palavra. O fio condutor que atravessa os contos deste livro não se estica e não se pretende linear, prefere antes partir-se e buscar o remendo, fazer nós e novelos; sua natureza, no entanto, é inequívoca, e diz: estou aqui para fazer literatura.


RESENHA


Adriana Lunardi, aclamada escritora e ganhadora de diversos prêmios, nos presenteia com Contos céticos, uma celebração da literatura e suas diversas formas. Seus nove contos e uma nota do destino nos levam a um universo de imperfeições belas que surgem da tragédia do cotidiano, explorando a delícia e o desespero de coexistir. Em meio a crianças caprichosas, idosos mais ainda, escritores arrogantes e autocentrados, Lunardi nos presenteia com imagens extraordinárias criadas a partir de elementos banais, desafiando a manipulação por glossários, medicamentos ou truques. Em sua narrativa, a autora utiliza a dúvida e a ironia para explorar uma realidade que não pode ser deturpada. Adriana Lunardi nos confronta com nossa própria ridicularidade, revelando a beleza que reside em nós quando as luzes se apagam. Sua obra deixa uma marca indelével, como bem observou Adriana Lisboa, com "um quê de ternura, um arrepio de poema".


Contos Céticos é uma coletânea excepcional que se destaca pelas imagens extraordinárias criadas pela autora a partir de elementos simples do cotidiano. Sua narrativa envolvente é fruto não apenas de habilidade excepcional, mas também de uma profunda conexão com a palavra. Os contos deste livro não seguem uma linha reta, preferem se emaranhar e encontrar soluções criativas; no entanto, sua essência é clara: estão ali para fazer literatura. Todas as personagens dos contos carregam um olhar cético e desencantado, questionando o que é dado como certo. O livro representa uma redescoberta de sua própria escrita, com uma valorização da ficção como uma aposta estética em sua jornada literária, o que torna a missão de leitura algo excepcionalmente encantador, ao passo, de que, somos confrontados com nuances descritivas que nos levam a questionar nossa capacidade de interpretação, repleto de contos que mergulham de forma profunda na nossa identidade. 


Silêncio, exílio se desenrola em fragmentos que se entrelaçam de forma singular. A protagonista narra seus encontros com um estrangeiro misterioso em uma praia, enquanto reflete sobre suas fantasias, medos e inseguranças.


A autora utiliza uma linguagem poética e ao mesmo tempo perturbadora, criando uma atmosfera de suspense e inquietude ao redor da relação entre a protagonista e o estrangeiro. A presença constante do mar e a descrição detalhada das ondas e da paisagem marinha contribuem para a tensão crescente ao longo do conto. A protagonista revela a sua fascinação pelo inesperado, o absurdo e o terror do dia a dia, e seu relacionamento com o estrangeiro parece ser marcado por um misto de curiosidade e medo. A personagem também parece lutar contra suas próprias inseguranças e fobias, enquanto tenta decifrar os sinais que se apresentam diante dela.


A narrativa é rica em simbolismos e metáforas, que exploram temas como a vulnerabilidade humana, a dualidade entre o amor e o medo, e a complexidade das relações interpessoais. O conto evoca uma atmosfera onírica e perturbadora, onde a realidade e a fantasia se misturam de maneira intrigante. A protagonista parece confrontar seus próprios medos e alcançar uma espécie de redenção, ao perceber que a tragédia que imaginara não passava de sua própria projeção. 


Script girl é uma narrativa densa e introspectiva que explora a solidão e o isolamento em meio a uma crise global, como a pandemia. A protagonista reflete sobre seus relacionamentos e o amor, projetando suas fantasias e expectativas em figuras masculinas do seu cotidiano. A autora cria personagens complexos e ambíguos, como Tom, Tibério, César e Gus, que representam diferentes aspectos da jornada emocional da protagonista. Cada um deles desperta emoções e questionamentos na narradora, revelando suas próprias inquietações e desejos.


A escrita poética de Lunardi aborda temas profundos como a busca por significado, a solidão e a efemeridade dos relacionamentos. A dualidade entre realidade e fantasia, vida vivida e vida imaginada, cria uma atmosfera melancólica e contemplativa. Apesar disso, o conto pode parecer fragmentado e hermético, com passagens e reflexões que não se conectam claramente. A densidade da narrativa e as referências literárias e cinematográficas podem desafiar alguns leitores.


Bodas de Pó nos apresenta um encontro entre um casal divorciado, Frederico e a narradora, que se reúnem para discutir a situação de saúde dele e o rumo de suas vidas. O texto é permeado por silêncios carregados de significados, revelando mágoas e arrependimentos não expressos verbalmente. A narrativa é marcada pela presença de lembranças e reflexões sobre o passado do relacionamento dos personagens, as dificuldades enfrentadas e as escolhas feitas ao longo do tempo. A autora aborda de maneira sensível a complexidade das relações humanas, mostrando como as divergências e conflitos podem perdurar mesmo após o fim de um casamento.


A ambientação do conto em uma cafeteria cria uma atmosfera íntima e melancólica, onde as emoções dos personagens parecem se entrelaçar com as conversas ao redor e a movimentação do ambiente. A garçonete, figura secundária, também é explorada de forma simbólica, representando uma espécie de refúgio e serenidade em contraste com a turbulência emocional dos protagonistas. A autora utiliza uma linguagem poética e metafórica para explorar as emoções dos personagens, dando destaque aos gestos e silêncios que revelam mais do que as palavras. O conto nos leva a refletir sobre a efemeridade da vida e dos relacionamentos, a solidão e a inevitabilidade do tempo que nos separa daqueles que um dia foram importantes em nossas vidas.


Animal extinto aborda temas como memória, identidade e desconexão em um mundo futurista onde implantes e próteses neuronais se tornaram comuns. A narrativa segue um protagonista que passa por um processo de remoção de implantes ilegais em seu cérebro e é confrontado com lembranças e sensações que o levam a questionar sua própria existência. O conto apresenta uma atmosfera distópica e tecnológica, onde os personagens lidam com dilemas éticos e emocionais relacionados à sua própria humanidade. A relação entre o protagonista e seu irmão, que sofre de uma condição neurológica, adiciona uma camada emocional à história.


A escrita de Lunardi é poética e melancólica, transmitindo a sensação de estranhamento e desolação do protagonista diante de sua própria desconexão com o mundo. A cena final, com a aparição de um animal extinto, simboliza a perda e a busca pela identidade perdida.


Biografia e correspondência, nos apresenta uma narrativa envolvente que mergulha nas nuances do comportamento humano e nas complexidades das relações interpessoais. Através de uma descrição minuciosa do ambiente de uma livraria e das ações dos personagens, somos levados a refletir sobre a natureza humana e suas motivações. A protagonista, Inês, é retratada de forma intrigante, como uma mulher perspicaz e calculista, que observa atentamente o comportamento das pessoas ao seu redor. Sua postura reservada e sua capacidade de antecipar as ações dos outros revelam uma personalidade enigmática e misteriosa.


O conto aborda temas como solidão, descontentamento e busca por significado, através dos diálogos internos de Inês e de suas interações com os demais personagens. A descrição detalhada das cenas e dos pensamentos da protagonista cria uma atmosfera densa e intrigante, que nos convida a penetrar nas camadas mais profundas da psique humana. A colisão causada por Inês com a moça de lenço é o clímax do conto, um momento crucial que revela a natureza sombria e manipuladora da protagonista. A forma como ela manipula a situação e se aproveita da vulnerabilidade da outra pessoa para atingir seus objetivos nos faz questionar até que ponto somos capazes de ir em busca de nossos próprios interesses.


Toda história em Paris é uma autobiografia, acompanha a narrativa de uma entrevistadora profissional que se vê diante de uma autora em crise, Miranda Sodré, que confessa ter plagiado um livro. Através de um diálogo tenso e cheio de nuances, a entrevistadora busca compreender os motivos por trás da confissão de Miranda e desvendar a verdade por trás do plágio. O conto traz à tona questões sobre autenticidade, fama, pressão social e a complexidade das relações humanas. A autora, através de diálogos bem construídos e uma narrativa envolvente, conduz o leitor por um caminho de descobertas e revelações, fazendo questionamentos sobre a natureza da criatividade, da culpa e da busca pela verdade.


A personagem de Miranda é apresentada de forma multifacetada, demonstrando suas fraquezas, seus medos e suas contradições. A autenticidade de seus sentimentos se choca com a máscara que ela mantém perante o mundo, levando a um desfecho surpreendente e impactante, um conto que instiga reflexões sobre a natureza humana, a busca pela autenticidade e as consequências de nossas escolhas. Com uma narrativa sensível e perspicaz, a autora consegue capturar a complexidade das relações interpessoais e nos levar a questionar o que realmente nos move e define nossa trajetória.


Enquadramento aborda a relação entre duas irmãs enquanto lidam com a chegada de um novo bebê na família. A narrativa é conduzida pela protagonista, que narra a dinâmica complexa entre ela e sua irmã mais nova, Kazuo, em meio a mudanças no ambiente familiar.


A autora utiliza uma composição detalhada do ambiente, como a divisão do quarto entre as camas das duas irmãs e a dinâmica de poder sobre os espaços compartilhados, para explorar os sentimentos de inveja, rivalidade e amor entre as personagens. Através da criação de um mundo imaginário, as irmãs constroem uma narrativa fictícia com personagens e histórias que refletem suas próprias vivências e emoções. O conto aborda questões relacionadas à infância, como a adaptação a mudanças familiares, a rivalidade entre irmãos e a busca por identidade e reconhecimento. A autora mescla elementos lúdicos e emotivos, criando uma atmosfera delicada e envolvente que cativa o leitor com uma narrativa  habilmente construída, com um ritmo fluido e uma linguagem poética que captura a inocência e a complexidade das relações familiares. O desfecho inesperado traz um choque de realidade que desestabiliza a fantasia criada pelas irmãs, resultando em uma reflexão sobre a fragilidade e a efemeridade da infância. É um conto sensível e envolvente que explora temas universais como o amor, a rivalidade e a passagem do tempo, revelando nuances emocionais e psicológicas das personagens. Através de uma narrativa intimista e cuidadosamente elaborada, a autora consegue transmitir os conflitos e as delicadezas das relações familiares de forma tocante e profunda.


Bildungsroman, é uma narrativa angustiante e envolvente que nos leva a refletir sobre questões familiares, o crescimento e a descoberta de si mesmo. A protagonista, uma criança de apenas oito anos, é pega em flagrante realizando mais uma fuga, o que acaba gerando um desconforto e uma tensão palpável dentro de sua casa. A narradora faz jus ao título do conto, que remete ao gênero literário que retrata a formação e o amadurecimento de um personagem. A personagem principal, ainda tão jovem, já se vê diante das consequências de seus atos e de suas escolhas, sendo levada a enfrentar a dura realidade do seu comportamento indisciplinado.


A relação conturbada com seu pai e a sensação de não ser compreendida pelos adultos ao seu redor são elementos marcantes na trama. A menina é colocada de castigo em um ambiente abandonado da casa, onde se vê sozinha e obrigada a lidar com seus pensamentos e sentimentos. Ao longo da história, a protagonista encontra uma forma de se expressar e de se encontrar através da escrita. Ela começa a listar objetos e palavras no espaço ao seu redor, demonstrando sua criatividade e sua necessidade de se fazer presente e ser notada. A escrita envolvente nos conduz por um fluxo de pensamentos tão intensos e profundos quanto os da própria personagem. A sensação de isolamento e a busca por identidade são temas recorrentes que fazem o leitor refletir sobre sua própria jornada de crescimento e amadurecimento, o que faz a escrita de Lunardi um exercício de reflexão acerca da complexidade da infância e da formação da identidade.


Condições do tempo nos apresenta a história de um protagonista que retorna à casa de um antigo amor, Guilherme, após um longo período de ausência. A narrativa é rica em detalhes e reflexões sobre a passagem do tempo, as relações humanas e as escolhas que moldam nossa existência. O protagonista é confrontado com suas memórias e arrependimentos ao revisitar a casa e os momentos compartilhados com Guilherme. A presença do cão Lucius, o jardim bem cuidado, a arte de Guilherme e a atmosfera da festa realizada na casa são elementos que o levam a refletir sobre sua própria vida e as consequências de suas ações passadas.


A narrativa é habilmente construída, alternando entre passado e presente, sonho e realidade, revelando camadas profundas de emoção e arrependimento. A relação entre o protagonista e Guilherme é complexa e carregada de significados, mostrando o peso das escolhas e a dificuldade de lidar com as consequências.  É um conto profundo e emocionante que nos faz refletir sobre as escolhas que fazemos e as consequências que enfrentamos ao longo de nossas vidas. A complexidade dos personagens e a narrativa habilidosa tornam a leitura envolvente e cativante, deixando uma marca duradoura na mente do leitor.

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