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Resenha: O estrangeiro, de Albert Camus

Terceiro título francófono mais vendido no mundo, romance virou ícone do absurdo
Arte Digital

APRESENTAÇÃO

O estrangeiro narra a história de um homem comum que se depara com o absurdo da condição humana depois que comete um crime quase inconscientemente. Meursault, que vivia sua liberdade de ir e vir sem ter consciência dela, subitamente perde-a envolvido pelas circunstâncias e acaba descobrindo uma liberdade maior e mais assustadora na própria capacidade de se autodeterminar. Uma reflexão sobre liberdade e condição humana que deixou marcas profundas no pensamento ocidental. Uma das mais belas narrativas deste século.

Escrito em 1957, O estrangeiro é o mais pop(ular) dos livros do francês nascido na Argélia Albert Camus. Tão pop que rendeu até música do grupo de rock inglês The Cure (“Killing an Arab”). Tão popular porque, à parte ser a seca narrativa das desventuras de Mersault, é também a narrativa das desventuras do homem do século XX. Uma espécie de autobiografia de todo mundo. Seu drama pode ser lido como o drama de qualquer homem do século, o homem que se depara com o absurdo, ponto central do pensamento camusiano.

Quando Mersault descobre que absurdo e liberdade são faces da mesma moeda e que uma implica na outra, afinal encontra a paz. É a história dessa compreensão, desse encontro, que Camus nos propõe. O estrangeiro se apresenta como uma espécie um tanto perversa de livro de autoajuda.



RESENHA


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Meursault é um pacato funcionário de um escritório em Argel, sem perspectivas ou objetivos na vida, o que o torna antipático aos olhos do leitor. Logo no início da novela, ele recebe a notícia da morte de sua mãe, a quem havia abandonado em um asilo, e sua indiferença durante o enterro é evidente. Desapegado de sentimentos, ele se envolve em problemas ao ajudar um vizinho perseguido pelo cunhado, resultando em um assassinato. Preso e levado a julgamento, Meursault é considerado um estranho aos padrões morais e éticos da sociedade.


 A trama se desenrola na Argélia, durante o período em que o país ainda era uma colônia francesa. O narrador e protagonista, Mersault, é retratado como um homem de poucas palavras e comportamento frio, cuja objetividade se destaca.


O início da história se foca no detalhado relato do enterro da mãe de Mersault, ocorrido na cidade de Marengo, onde ela estava internada em um asilo por um longo período. Diferentemente do esperado em um momento de luto, as descrições feitas por Mersault são mais influenciadas pelas suas sensações sensoriais, especialmente pelo clima quente da região, do que por seus sentimentos.


O início da história pode parecer simples, mas é o ponto de partida para um enredo complexo. O protagonista, Mersault, mostra-se indiferente ao enterro da mãe, sem demonstrar qualquer emoção. Ao retornar para sua casa em Argel, ele age como se nada tivesse acontecido, passando o dia com Marie, uma antiga paquera. A morte da mãe é encarada como algo do passado.


As descrições de Camus transportam o leitor para o intenso verão argelino, onde o sol desempenha um papel fundamental. Mersault enfrenta momentos extremos causados pelo calor.


Além disso, a narrativa critica a postura francesa em relação à colônia argelina. O personagem central, o "árabe", é insignificante e sem nome. Mersault é condenado não por seu ato contra o árabe, mas por sua aparente falta de emoção no enterro da mãe, indicando um desvio emocional que a sociedade considera perigoso. Camus, francês nascido na Argélia, tem um profundo conhecimento do solo argelino, o que enriquece a trama.


A partir do momento em que o promotor começa a expor suas argumentações, o leitor é levado a questionar se a justiça está realmente sendo feita. O fato de Meursault ser julgado não só pelo crime em si, mas também por sua aparente falta de emoção diante da morte da mãe, revela muito sobre a sociedade e suas expectativas em relação ao comportamento humano. A forma como a sociedade espera que as pessoas expressem suas emoções de acordo com padrões estabelecidos é colocada em xeque nesse momento do livro.


Além disso, a reação de Meursault diante do veredito revela muito sobre sua própria jornada pessoal. Ele se vê confrontado com a inevitabilidade da morte e com a falta de sentido de sua própria existência. Suas reflexões nos levam a questionar o significado da vida e como lidamos com a finitude da mesma. A jornada de Meursault se torna uma reflexão profunda sobre a natureza humana e sobre o sentido da vida em um mundo aparentemente absurdo.


Assim, é no julgamento de Meursault que o leitor é confrontado com questões essenciais sobre a vida, a morte, a justiça e a busca por sentido em um mundo aparentemente sem sentido. É nesse momento que o protagonista alcança uma espécie de iluminação, que transformará não só sua própria perspectiva, mas também a do leitor, que se vê confrontado com suas próprias crenças e valores.


O livro "O estrangeiro", de Albert Camus, é frequentemente interpretado como uma representação da condição humana, porém, é importante considerar seu contexto histórico. A Argélia retratada na obra é a Argélia Colonial em que Camus cresceu, onde Meursault é um pied-noir, termo dado aos franceses de ascendência europeia que viviam no país. O fato de os árabes no livro não terem nomes e serem apenas figurantes na vida dos pieds-noirs é algo que chama atenção.


No livro "O caso Meursault", o autor argelino Kamel Daoud apresenta uma resposta pós-moderna e decolonial ao romance de Camus. Daoud dá identidade ao árabe assassinado por Meursault e coloca o protagonismo argelino em destaque. Alice Kaplan, autora de "Looking for the stranger", uma biografia de "O estrangeiro", defende a escolha de Camus de não nomear o personagem, apontando o racismo presente na sociedade e ressaltando a influência do romance "The postman always rings twice" (1934), de James M. Cain, onde a vítima é simplesmente conhecida como "O Grego".


"O estrangeiro" é uma obra que transcende sua época, trazendo reflexões profundas sobre a condição humana e a busca por significado em um mundo que muitas vezes parece não ter sentido. A narrativa de Camus, aliada à ambientação calorosa da Argélia colonial, nos transporta para a mente fria e indiferente de Meursault, nos levando a questionar nossas próprias emoções e valores. A crítica à sociedade e suas expectativas em relação ao comportamento humano é feita de forma sutil, mas impactante, levando o leitor a refletir sobre suas próprias crenças. Uma leitura que, mesmo décadas após sua publicação, continua relevante e instigante.

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