Resenha: Hamlet, de William Shakespeare



Adaptação para neoleitores. a partir do orginial em ingles: Paulo Seben Hamlet é uma das mais famosas tragédias de todos os tempos. Na história, o príncipe Hamlet é chamado de volta ao seu país, a Dinamarca, porque seu pai, o rei, acaba de morrer. Quando chega ao castelo de sua família, descobre que sua mãe se casou com seu tio, que agora será o novo rei. Mas, à medida que o tempo passa, Hamlet começa a desconfiar do tio e planeja uma maneira de descobrir a verdade sobre a morte do pai. Tem início uma das mais sangrentas peças de William Shakespeare, uma obra-prima sobre relações familiares e vinganças. O autor do livro é considerado o maior escritor de língua inglesa. Sua obra se tornou conhecida por tratar das grandes questões da humanidade como o amor, a inveja, o ódio e a sede pelo poder

ISBN-13: 9788525423573
ISBN-108525423572
Ano: 2011 / Páginas: 64
Idioma: português
Editora: L&PM

RESENHAS

“O Príncipe é o paradigma do melancólico. Nada ilustra melhor a fragilidade da criatura que o fato de que também ele esteja sujeito a essa fragilidade”, diz Benjamin. A melancolia tem a ver com a imposição de decidir.Enquanto o luteranismo conseguiu instilar no povo o rigor da “obediência ao dever”, desenvolveu nos grandes a enfermidade da melancolia, porque só a eles cabe decidir sobre o destino dos súditos.

Personagem central de um enredo que se desenrola no Reino da Dinamarca, Hamlet vive o dilema que o coloca, de um lado, diante da sua posição como Príncipe e, de outro, da sua condição de indivíduo. O que se espera do soberano é que ele seja a encarnação do bem, da virtude. Mas as paixões que o movem impedem que ele assuma o papel que dele se espera.

“Ser ou não ser, eis a questão”; a indecisão, síntese do personagem Hamlet e mola propulsora do teatro de Shakespeare, é o fundamento de quase todas as tragédias escritas entre os séculos XVI e XVII. Caracterizadas como tragédias da Renascença, essas peças, como diria o filósofo Walter Benjamin, “superestimam a influência da doutrina aristotélica sobre o drama do período barroco”. Entretanto, apesar de os autores acreditarem que o que estavam escrevendo eram tragédias (no sentido “grego” do termo), o drama do período barroco não pode ser confundido com as tragédias clássicas.

Em Hamlet, a luta se desenvolve como um conflito de consciência do herói. A dúvida o persegue e traça o seu destino, pois quando ele se decide já não há mais tempo. Hamlet morre devido a sua inércia. O que o faz hesitar diante das decisões é a sua liberdade de ação.

A palavra “Trauerspiel” (“Trauer” – luto + “Spiel” – jogo), da qual o termo “drama barroco” foi traduzido, parece refletir o estado de tensão que envolve o personagem principal da história. “Os extremos de que necessita o intérprete já estão contidos na própria palavra. Num primeiro nível de análise, podemos dizer que “Spiel”, como espetáculo e ilusão, designa o caráter fugidio e absurdo da vida e “Trauer”, a tristeza resultante dessa percepção. Teríamos assim uma primeira interpretação: o drama designa a tristeza de um homem privado da transcendência (pois com ela a vida não seria absurda), numa natureza desprovida da Graça.”
Hamlet representa esse tipo de homem, cujo traço mais marcante é o pessimismo, a melancolia. O mundo que o cerca encontra-se repleto de indícios maléficos: o casamento da mãe com o tio trazendo a suspeita da traição, a revelação da verdadeira causa da morte do pai através da visão do fantasma, a visita de Guildenstern e Rosencrantz acentuando o sentido de hipocrisia de sua existência. “Há algo de podre no Reino da Dinamarca.” A frase, proferida por um dos oficiais em guarda durante a aparição do fantasma, revela a existência de um mistério que ameaça a sobrevivência do Reino. Hamlet é o herói que deve salvar o Reino de sua destruição.

A aparição do fantasma do Rei morto exige do Príncipe uma decisão.  “Assim, estás obrigado a vingar-te, quando me ouvires”. O relato do fantasma sobre as circunstâncias de sua morte abre caminho para inúmeros acontecimentos que, precipitando-se um após o outro, deixam-no cada vez mais confuso. Hamlet se vê diante de um amontoado de ruínas. “Oh! Mulher profundamente depravada! Oh! Canalha, canalha, canalha maldito e sorridente!” Nada mais lhe parece seguro. O Reino que deveria herdar de seu pai lhe fora usurpado por um tirano vil, um assassino que mata o Rei para apossar-se do trono e da Rainha, um homem que pode sorrir sendo um “canalha”. A corrupção se espalha. A degradação dos de cima ameaça contaminar os de baixo. O poder não caminha mais lado a lado com a virtude. A Dinamarca corre um sério risco e o Príncipe Hamlet é chamado a agir. A voz que vem do além o lembra de seu compromisso para com o Reino e para com a honra. “Não permitas que o leito real da Dinamarca seja uma cama para incontinência sexual e incesto amaldiçoado”. A vingança torna-se, a partir de então, o principal objetivo de Hamlet que passa a não medir as palavras usadas para atingir seu alvo.

Hamlet usa palavras que parecem sem sentido. Palavras que são manipuladas como um jogo, como um enigma que o inimigo percebe mas ao mesmo tempo não consegue decifrar. O segredo é a alma de sua vingança. Porém o jogo com as palavras, o uso dos artifícios de linguagem, das metáforas corporais representando os vícios humanos, tudo isso é alimentado pelo estado de melancolia do Príncipe. A tristeza que o acompanha o faz ver o mundo através de imagens que constroem uma nova ordem de sentidos. O luto é transfigurador do mundo vazio, repovoando-o com novos significados. “Pois ocorre com o melancólico no início o que acontece com alguém que tenha sido mordido por um cão raivoso: tem sonhos terríveis, e temores da razão”.

Loucura e melancolia encontram-se bastante próximas tanto no personagem de Hamlet quanto em Ofélia, que, exposta a seguidos infortúnios, não consegue resistir perdendo a razão. Em Hamlet, a melancolia acentua a visão, predispondo a um aguçamento dos sentidos, da intuição – “Oh! Minha intuição profética! Meu tio?”. As suas suspeitas confirmam-se através das palavras do fantasma que acusa o irmão – atual Rei – pela sua morte.

O sarcasmo é outro complemento à tristeza que o envolve, uma espécie de adereço cênico que lhe permite estabelecer um distanciamento com relação aos demais personagens. Guildenstern, Rosencrantz, o Rei, a Rainha e principalmente Polonius são os alvos prediletos de sua atitude sarcástica.

A dúvida que age sobre Hamlet é típica do período barroco. A desconfiança de Hamlet com relação à aparição do fantasma e às palavras por ele proferidas representa, de um lado, uma dúvida quanto aos sentidos e, de outro, uma ruptura com a metafísica. A preocupação em questionar os sentidos só pode prevalecer em um contexto de não transcendência absoluta, o que não significa, contudo, um desligamento dos princípios religiosos, já que a culpa vivida pelo Príncipe, em grande parte, remete ao cristianismo. “No decurso da ação trágica o herói assume e internaliza essa culpa, que segundo os antigos estatutos é imposta aos homens de fora, através da infelicidade. Ao refleti-la em sua consciência de si, o herói escapa à jurisdição demoníaca”.

O drama de Hamlet é o drama de um homem que deseja separar o ser do parecer. O verdadeiro do falso. Que suspeita da arte, do teatro, da representação. Que despreza o artifício, desconfia das palavras. “Palavras, palavras, palavras”, responde ele a Polonius quando este lhe pergunta sobre o que estava lendo. Palavras como as proferidas pelo ator que de um modo abominavelmente absurdo pode “forçar a sua alma a acordar-se à concepção do papel que ele representa e que, pela ação emocional da mente sobre o corpo, todo o rosto se torna pálido, lágrimas saltam nos olhos, a fisionomia se desespera, a voz fica entrecortada e todas as expressões corporais se modelam segundo a parte que ele imagina”. Palavras, como ele próprio as usa, para blasfemar. Palavras que substituem o agir.
Inépcia, apatia, o estado de espírito sombrio do melancólico leva-o a furtar-se à ação. O corpo não merece atenção. Hamlet admite: “ultimamente, e porque motivo ignoro, perdi toda a minha vitalidade, abandonei todos os exercícios físicos habituais. E na verdade eu me sinto num estado de espírito tão deprimido que agora a terra não parece para mim uma estrutura fecunda e maravilhosa, inserida num universo ordenado mas um promontório em abandono e estéril”. As imagens da natureza decaída e do corpo em estado de abandono revelam, a despeito da busca da espiritualidade, do desejo de transcendência, da negação da carne, uma postura profundamente imanente.

A noção de destino no drama de Shakespeare caracteriza-se por uma forte nota de luteranismo. A ausência da Graça, a idéia – ligada à doutrina da predestinação – de que não há como mudar o destino, coloca o homem diante de um absoluto vazio. “Desde que homem algum conhece algo sobre a condição da vida de que se separa, desde que não pode julgar o que os outros anos lhe reservam – por que deveria temer que a morte chegue logo?” A morte não faz, nesse caso, a menor diferença: “se é agora, não é para depois; se não é para depois, será agora, se não é agora, acontecerá todavia. Estar maduro para a morte é tudo”.
Matar ou morrer não faz a menor diferença. O que está em jogo é a honra. Vingar-se, essa é a questão. Talvez, nem tanto pela morte do pai, mas por si mesmo, pela ameaça que pesou sobre sua vida. A transformação do personagem Hamlet acontece quando este descobre a trama montada pelo tio para matá-lo. Depois disso, a decisão tomada e o drama de consciência que até então consumia o personagem dá lugar a uma atitude mais firme. A decisão de lutar com Laertes é acompanhada por um mau pressentimento. No entanto, nada mais importa.
O duelo entre Hamlet e Laertes definirá o destino dos demais personagens do drama. Morrem o Rei e a Rainha e finalmente Hamlet e Laertes. Ambos percebem que o mesmo destino os unia. Ambos desejavam vingar a morte do pai; acabaram vítimas de um tirano que os usou para eliminar um inimigo. A solução final é o perdão. Hamlet e Laertes se conciliam para que a culpa de um não caia sobre o outro. Extingue-se a culpa, porém a morte do Príncipe acaba revelando sua impotência. Sua morte, ao contrário da morte do herói na tragédia grega, não significa a vitória dos deuses, o restabelecimento da ordem. Sua morte não significa sequer a salvação do Reino da Dinamarca. Quando Fortimbrás entra no salão do palácio depara-se com uma cena totalmente inesperada. Não há ninguém para fazer-lhe oposição apenas um monte de cadáveres. Fortimbrás se apossa do trono, enquanto Horácio se prepara para relatar o ocorrido.

O significado da tragédia de Hamlet ultrapassa a atuação do herói; encontra-se no conjunto da trama, nos “atos de adultério, de assassinato e incesto, de julgamentos divinos manifestados em acidentes aparentes, de mortes causais de mortes instigadas pela perfídia e que se tornaram compulsórias e, de planos mal calculados que recaíram sobre as cabeças de seus maquinadores”. A morte de Hamlet aponta para o vazio da existência, para a impossibilidade de salvação do ser humano. No entanto, o drama do herói transcende a morte. Através do relato a história é preservada. Sua salvação reside na possibilidade da trama ser outra vez encenada. Na possibilidade, que é exclusiva à cena teatral, da apropriação do tempo. Na possibilidade da reprodução daquele momento único, de delírio dionisíaco, que caracteriza a tragédia em sua origem. No resgate da “palavra originária” encontramos, enfim, o elo de ligação entre “Tragodie” e “Trauerspiel.

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