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Resenha: Limpa, de Alia Trabucco Zerán

Foto: Arte digital

 APRESENTAÇÃO

Neste romance baseado em um crime real e construído de forma circular — ele começa no ponto em que termina —, Estela está presa em uma sala de interrogatório policial para esclarecer a morte de uma menina a seus inquiridores. Anônimos, eles estão separados da protagonista por um vidro opaco, tal como ela era apartada da cozinha por uma porta translúcida no quarto dos fundos da casa onde vivia como empregada doméstica e babá.


RESENHA


Em Limpa, Alia Trabucco Zerán explora o terror psicológico por meio da história de Estela Garcia. A protagonista narra, inicialmente ao telefone, uma tentativa desesperada de se libertar de um local desconhecido. Durante sua reflexão, ela relembra as mortes que causou em sua vida, incluindo a de animais. Estela discute a inevitabilidade da morte e as motivações por trás de cada ser vivo encontrar seu fim. No desenrolar da trama, revela-se um pedido de ajuda para uma garota que Estela possivelmente auxiliou em sua morte, ao sugerir uma ideia que a levou a seu fim trágico.


E há uns quantos, como a menina, que precisam apenas de uma ideia. Uma ideia perigosa, afiada, nascida num momento de fraqueza (p. 11)


A história começa com Estela respondendo a um anúncio de emprego que solicitava uma empregada em tempo integral e com boa aparência. Em seu primeiro dia de trabalho, ela foi recebida pelo casal de patrões, com ênfase na esposa grávida que examinou minuciosamente sua aparência. Enquanto a esposa estava atenta aos detalhes, o marido parecia indiferente e até se mostrou nu diante da empregada em um momento inesperado. Apesar de sua falta de experiência com crianças, Estela foi contratada e recebeu instruções detalhadas sobre suas responsabilidades naquela casa aparentemente luxuosa. Enquanto explorava a residência, Estela teve um pensamento perturbador sobre a natureza da casa, o que a deixou desconfortável.


Durante a entrevista, a Estela não foi mostrada ao "quarto dos fundos", mas viu-o pela primeira vez no seu primeiro dia de trabalho. O quarto era simples, com uma cama, mesa de cabeceira, cómoda e televisão. Ela sentiu uma estranha sensação ao entrar no quarto, como se estivesse a observar a sua própria transformação. Ela trabalhou para um casal, com a senhora Mara e o Dr. Juan Cristóbal Jensen. Mara era distante e fria, enquanto o Dr. Jensen era obcecado pelo tempo e pelo seu estatuto de doutor. Ela foi inicialmente tratada pelo nome da empregada anterior e sentiu-se como uma estranha naquela casa.


Estela descreve o nascimento da menina Julia e o momento em que ela cuida da criança pela primeira vez. Mara, dona da casa, estava exausta e pediu à Estela, para cuidar da criança. Estela se sente desconcertada com a fragilidade de Julia e a novidade de cuidar de um recém-nascido. Ela limpa, veste e acalma a criança, refletindo sobre a vida e o silêncio. Ela então se sente perdida e paralisada ao vigiar Julia dormir, sem conseguir distinguir o carinho do desespero.


Numa manhã, ao iniciar o dia, uma nova empregada doméstica toma um duche e se veste para o trabalho. Ao chegar à cozinha, encontra um recado na porta da geladeira, indicando alguns itens a comprar no supermercado. Ao sair para fazer as compras, ela se depara com uma mulher idosa semelhante a si mesma, o que a perturba. Durante o percurso, ela se sente seguida e começa a ter sensações estranhas, perdendo a noção da realidade. A experiência a deixa desconfortável e confusa, levando-a a se questionar sobre sua identidade e realidade.


A menina rapidamente cresceu e começou a falar, dizendo a sua primeira palavra, "bá-bá", que era como a babá era chamada. Mara, a senhora, tentou desviar a atenção dela de uma tragédia na televisão, mas a menina continuou a insistir, causando desconforto. A senhora acabou mentindo para o marido, dizendo que a primeira palavra da menina foi "mamã".


Durante a noite, Estela presencia uma cena explicitamente sexual entre os patrões enquanto vai buscar água na cozinha durante a noite. Ao ser descoberta, ela foge para o quarto, sentindo-se perturbada e com sede. A cena a deixa agitada, e ela se masturba para tentar acalmar o desconforto causado pelo que presenciou. Os dias passam e Estela é confrontada com sua realidade e ética após flagrar a patroa traindo o marido e gerando um atrito para ambas, este episódio culminou na quase desistência de Estela ao trabalho, mas ela havia prometido ajudar sua mãe com o salário, então ela engoliu o orgulho e permaneceu na residência do casal. 


Estela em um momento de divagação, reflete sobre uma história sobre a figueira do pátio das traseiras e como a morte iminente da árvore se relaciona com a morte que está prestes a acontecer na família, ela reflete sobre a inevitabilidade da morte e como os sinais de que algo está prestes a acontecer estão sempre presentes na atmosfera da casa. Ao limpar os figos caídos da árvore, se deparando com a realidade da morte e a certeza de que a vida tem um ciclo que inclui o princípio, o meio e o fim. 


Estela recebe a visita inesperada de sua prima Sonia, que anuncia a morte repentina de sua mãe. Sonia explica que um homem desconhecido, colega de trabalho da mãe, havia cuidado do enterro. Estela não sentiu nada com a notícia, apenas ficou atordoada. Sonia pediu ajuda financeira e partiu. Depois da morte da mãe, Estela entrou em um silêncio profundo, sem intenção de comunicar. Mesmo realizando tarefas diárias, ela deixou de falar e se isolou, percebendo que as palavras têm uma ordem necessária enquanto o silêncio permite todas as palavras ao mesmo tempo. Com o tempo, seu silêncio se tornou poderoso, até que uma tragédia aconteceu: a menina afogou-se, mesmo sabendo nadar. 


Estela divaga por um momento relembrando de um episódio que aconteceu quando Juan retornou de seu turno de trabalho e lhe falou até às sete da manhã. O senhor, visivelmente perturbado, abre-se sobre um encontro com uma mulher em um hotel, que acaba revelando um caso de infidelidade, enquanto permanece narrando o episódio de falecimento de uma paciente de sete anos durante os meses finais do curso de medicina, aos quais, manteve em segredo por mais de vinte anos.  Nesse dia, o senhor ficou na cama com febre e tosse, fechando-se no quarto para ver as notícias. Pediu um consomê no almoço e a empregada, Estela, tentava não olhar para ele. Enquanto isso, uma vendedora ambulante gritava na rua. À noite, Estela ouviu um assalto em andamento na casa, com os ladrões revirando tudo em busca de dinheiro e joias. A polícia chega algumas horas depois de um assalto à casa. O senhor da casa não revela todos os detalhes do roubo, mas a senhora fala por eles. Durante as semanas seguintes, o senhor fica obcecado com a ideia de se proteger, chegando mesmo a comprar uma pistola. Enquanto fazia uma limpeza, a empregada encontra a pistola escondida e decide guardá-la consigo. Ela reflete sobre a certeza da morte e a sensação de poder que a arma lhe dá, guardando-a debaixo do colchão no quarto dos fundos.


Guardei a pistola dentro do lenço e quando ia pô-la no lugar onde devia ficar escondida, arrependi-me. E levei-a comigo, foi isso. Levei a pistola para o quarto dos fundos e guardei-a debaixo do colchão. Não fosse um dia, ou uma tarde, ter vontade de responder a essas duas perguntas: como e quando


Após um evento traumático na casa, Estela é demitida e recebe um cheque de um mês como compensação pelo mês trabalhado, até encontrar um novo trabalho. Em seu último dia de trabalho, Estela observa da cozinha, enquanto prepara um último chá antes de partir, o corpo da filha do casal, Júlia, boiando sob a piscina - ela estava morta.


Fiquei a olhar para ela, à espera de que acordasse. Não acordaria. As memórias gravadas na sua mente desapareceriam com ela e eu também, porque eu era uma dessas memórias. Não sei o que senti. Nem tem importância. Mas interroguei-me se por acaso sentiria falta das suas canções, das suas corridas no corredor, do seu constante desespero.


A história se finaliza com Estela saindo pela porta da frente e acordando em um local desconhecido tentando contato através do telefone de forma desesperada em busca de auxílio.


Limpa, de Alia Trabucco Zerán, é um mergulho profundo no terror psicológico através da história de Estela Garcia. A narrativa intricada e envolvente da autora nos leva a questionar a natureza da vida, da morte e das relações interpessoais de forma intensa e emocionante. Os personagens são complexos e cheios de camadas, tornando a história ainda mais cativante. A escrita de Zerán é envolvente e impactante, levando o leitor a refletir sobre temas profundos e perturbadores. Uma obra que certamente ficará na mente do leitor por muito tempo após a leitura.

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