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| Reprodução / Filme: Preciosa |
O fenômeno cultural de Divertida Mente 2 (Pixar, 2024) cumpriu um papel pedagógico inegável: ofereceu um vocabulário visual acessível para nomear a Ansiedade e o Tédio. Contudo, para o público adulto e para a crítica especializada do Post Literal, essa representação, embora válida, opera numa chave de simplificação maniqueísta. O cinema de live-action contemporâneo, por sua vez, tem a responsabilidade — e a capacidade técnica — de retratar a saúde mental não como um painel de controle colorido, mas como uma estrutura complexa, muitas vezes cinzenta, silenciosa e estruturalmente devastadora.
Neste ensaio, propomos uma análise da "Estética do Colapso". Diferente do cinema do século XX, que muitas vezes fetichizava a loucura (o tropo do psycho killer ou do gênio atormentado), o cinema da década de 2020 busca retratar a patologia psíquica como um sintoma social. A depressão, o burnout e a dissociação não são mais falhas de caráter de um vilão, mas respostas fisiológicas de protagonistas esmagados pela hipermodernidade.
Tecnicamente, isso exige uma mudança na mise-en-scène. Diretores contemporâneos abandonaram os cortes frenéticos e a trilha sonora grandiloquente para abraçar o plano-sequência, o silêncio diegético e a atuação contida. O objetivo não é mais assustar o espectador com a loucura alheia, mas gerar uma identificação desconfortável com o sofrimento familiar.
2. O Estudo de Caso de "Aftersun": A Depressão no Fora de Campo
Embora não seja uma produção nacional, o filme Aftersun (Charlotte Wells, 2022) tornou-se a pedra angular para entender essa nova gramática visual e reverbera fortemente nas produções brasileiras recentes. A análise técnica da obra revela como o cinema pode retratar a depressão severa sem jamais verbalizá-la.
A diretora utiliza a granulação da imagem (simulando fitas MiniDV) e o "fora de campo" (aquilo que a câmera não mostra, mas sugere) para construir a psique do protagonista Calum. A depressão aqui não é performática; ela é um ruído de fundo. A cena em que o personagem chora, filmada de costas, ou os momentos em que ele simplesmente "desliga" diante da filha, são exemplos magistrais de como o roteiro confia na inteligência emocional do público.
Para o leitor do Post Literal, a lição crítica é: o cinema adulto trata a saúde mental através da ausência. A ausência de vitalidade, a ausência de futuro, a ausência de conexão. É uma antítese direta à representação da Pixar. Enquanto na animação as emoções brigam pelo controle, no drama adulto realista, a tragédia é que muitas vezes ninguém parece estar no comando.
3. O Burnout como Gênero Cinematográfico
Entrando na esfera das relações de trabalho, observamos o surgimento de filmes que tratam o esgotamento profissional (Burnout) com a tensão de um thriller. O ambiente corporativo ou a precarização do trabalho (a "uberização") tornaram-se os novos cenários de horror.
O cinema brasileiro recente, especialmente o documental e o de ficção independente, tem capturado essa angústia. A câmera na mão, trêmula, que persegue entregadores de aplicativo ou médicos plantonistas, cria uma sensação física de taquicardia no espectador. A crítica social aqui é inseparável da análise psicológica: a mente adoece porque o sistema exige uma produtividade desumana. Filmes como Arábia (Affonso Uchôa e João Dumans) já apontavam para essa dissolução do "eu" através do trabalho braçal e da estrada, mostrando uma melancolia operária que raramente ganha as telas do cinema comercial.
4. "Nise: O Coração da Loucura" e a Humanização do Inconsciente
Voltando o olhar especificamente para a produção nacional, é imperativo revisitar Nise: O Coração da Loucura (Roberto Berliner, 2015). Embora tenha uma década, o filme permanece como o documento definitivo sobre a virada psiquiátrica no Brasil. A sua relevância atual reside no contraponto que oferece ao modelo biomédico e farmacológico excessivo de 2025.
A análise técnica da atuação de Gloria Pires revela um minimalismo estudado. A Dra. Nise não é retratada como uma "santa", mas como uma cientista rígida que percebeu a falência da violência (lobotomia, eletrochoque) como método terapêutico. O filme utiliza a arte — as pinturas dos internos do Engenho de Dentro — como elemento narrativo central.
Para o crítico de cinema, o ponto alto é como o diretor filma as obras de arte produzidas pelos pacientes. A câmera trata as pinturas não como adereços, mas como janelas para o inconsciente, validando a tese junguiana de Nise da Silveira. O filme é uma defesa cinematográfica da Luta Antimanicomial, lembrando-nos que a saúde mental no Brasil é, antes de tudo, uma questão de Direitos Humanos e de cidadania, não apenas de biologia.
5. Documentários: A Realidade sem Filtros
No campo documental, o Brasil possui uma tradição fortíssima de retratar a marginalidade e a loucura. O clássico Estamira (Marcos Prado) continua a ser uma referência obrigatória, mas novas produções têm atualizado o debate para a era digital.
Hoje, a pauta documental deslocou-se para a "Saúde Mental Digital". Documentários que investigam o impacto dos algoritmos, da polarização política e do isolamento social na psique do brasileiro são a nova fronteira. A crítica deve observar como esses filmes montam suas narrativas: colagens de telas, depoimentos via Zoom, a fragmentação da imagem refletindo a fragmentação da atenção.
Sugere-se aqui uma análise de obras que dialogam com O Dilema das Redes, mas com um recorte tropical: como a desigualdade digital no Brasil agrava quadros de ansiedade e depressão? O documentário brasileiro atual está a fazer o trabalho que o telejornalismo muitas vezes não consegue: conectar a macroeconomia (desemprego, inflação) com a microfísica do sofrimento psíquico individual.
6. Conclusão: O Cinema como Máquina de Empatia
Roger Ebert, o lendário crítico, dizia que o cinema é "uma máquina de gerar empatia". Ao tratar de saúde mental, essa máquina opera na sua potência máxima. Filmes adultos sobre depressão, luto, esquizofrenia ou burnout não servem para "entreter" no sentido escapista; servem para treinar o nosso olhar para a dor do outro.
A recomendação é clara: consumam estas obras difíceis. Elas não oferecem o conforto de um final feliz ou de uma solução mágica, mas oferecem algo mais valioso: a validação da experiência humana em toda a sua complexidade dolorosa. Assistir a um filme sobre o colapso mental é, paradoxalmente, um ato de sanidade, pois nos retira da bolha de perfeição artificial das redes sociais e nos devolve ao chão firme, e por vezes áspero, da realidade.
