![]() |
| Foto: The Book Business |
Nos últimos anos, o mercado editorial global foi sacudido por uma série de anúncios polêmicos: as obras de autores consagrados como Roald Dahl (A Fantástica Fábrica de Chocolate), Ian Fleming (007) e Agatha Christie passariam por revisões póstumas. Termos considerados ofensivos, racistas, gordofóbicos ou sexistas seriam removidos ou alterados para se adequarem à sensibilidade do leitor contemporâneo.
Este movimento, longe de ser um caso isolado, sinaliza uma mudança de paradigma na gestão do patrimônio literário. A questão que se impõe ao crítico e ao leitor do Post Literal não é se essas palavras são ofensivas — muitas indubitavelmente o são —, mas qual é o custo civilizatório de "corrigir" o passado. Estamos a promover uma necessária inclusão social ou a operar um higienismo histórico perigoso, criando uma literatura "segura" e asséptica que esconde as cicatrizes da nossa própria evolução cultural?
Este ensaio propõe-se a dissecar a figura do Sensitivity Reader (Leitor Sensível) e a distinguir o cuidado editorial da censura corporativa, analisando onde termina a responsabilidade social e começa o revisionismo orwelliano.
2. O Leitor Sensível: Consultoria Técnica ou Polícia do Pensamento?
Para avançar no debate, é preciso definir tecnicamente o que é um "Leitor Sensível". Originalmente, trata-se de um profissional contratado para ler manuscritos inéditos e apontar representações imprecisas ou estereotipadas de grupos marginalizados. Neste contexto, a sua função é enriquecer a verossimilhança da obra. Se um autor branco escreve sobre a vivência indígena, um consultor indígena pode apontar erros factuais ou clichês preguiçosos. É uma ferramenta de qualidade editorial.
A controvérsia surge quando essa lógica é aplicada retroativamente a obras canônicas de autores falecidos. Aqui, o Leitor Sensível deixa de atuar como consultor do processo criativo (pois o criador já morreu) e passa a atuar como um agente de conformidade (compliance) da editora.
A motivação, muitas vezes vendida como puramente moral ("proteger as crianças"), possui um subtexto econômico inegável. Editoras detentoras de direitos autorais (os estates) temem que obras clássicas se tornem "invendáveis" ou "canceladas" pelas novas gerações. A reescrita, portanto, obedece a uma lógica capitalista: atualizar o produto para que ele continue a circular no mercado sem atritos, garantindo a rentabilidade do catálogo de fundo (backlist).
3. O Perigo do Anacronismo e o Apagamento da História
O cerne ético do problema reside no anacronismo. Julgar a literatura de 1920 com a régua moral de 2025 é um exercício fadado ao fracasso intelectual. A literatura é, por definição, um documento do seu tempo. Se um livro de Agatha Christie contém termos xenofóbicos contra personagens orientais, isso revela a mentalidade colonialista da Inglaterra da época.
Ao removermos esses termos, operamos uma falsificação histórica. Criamos uma versão "Disneyficada" do passado, onde o preconceito parece nunca ter existido. Para o historiador e para o crítico literário, manter o texto original não significa endossar o preconceito, mas preservar a prova do crime.
A literatura não serve apenas para nos confortar ou espelhar os nossos valores atuais; ela serve também para nos confrontar com a feiura da humanidade. Ler O Mercador de Veneza, de Shakespeare, é desconfortável devido ao antissemitismo latente, mas é esse desconforto que nos permite discutir a história da perseguição aos judeus. Se suavizarmos Shylock, perdemos a capacidade pedagógica da obra de nos ensinar sobre o ódio.
4. A Alternativa Editorial: Contextualização em vez de Alteração
Existe um caminho do meio? Sim, e ele é praticado por diversas editoras responsáveis. A solução ética para o dilema das obras ofensivas reside no aparato paratextual: prefácios, notas de rodapé e avisos de gatilho (content warnings).
Em vez de alterar a palavra escrita pelo autor, a editora adiciona uma camada de interpretação. Um prefácio robusto pode explicar ao leitor jovem: "Este livro foi escrito numa época em que o racismo era normalizado. As palavras usadas aqui ferem, e nós as mantemos para que você entenda como a linguagem foi usada como ferramenta de opressão."
Essa abordagem trata o leitor como um sujeito inteligente, capaz de pensamento crítico, e não como um consumidor frágil que precisa ser protegido da realidade. A reescrita silenciosa (alterar o texto sem avisar explicitamente onde e como) é uma forma de paternalismo intelectual. No Post Literal, defendemos que a educação se faz pelo debate do texto difícil, não pelo seu apagamento.
5. A Rampa Deslizante (Slippery Slope): Onde Paramos?
Se aceitarmos a premissa de que a arte deve ser "limpa" para não ofender sensibilidades contemporâneas, onde traçamos a linha divisória? Hoje removemos insultos raciais (corretamente apontados como violentos). Amanhã, removeremos cenas de fumo ou álcool porque incentivam vícios? Removeremos finais tristes porque geram ansiedade? Removeremos vilões muito cruéis?
A arte corre o risco de se tornar uma "pastilha elástica" cultural: doce, inofensiva e sem valor nutricional. O medo de ofender pode levar a uma literatura normativa, onde todos os personagens se comportam como modelos de virtude do século XXI. Isso mata o conflito, que é a alma da narrativa.
A "literatura segura" é uma contradição em termos. A boa literatura é perigosa. Ela deve ter a capacidade de nos chocar, de nos enojar, de nos fazer questionar. Um mundo onde Huckleberry Finn (Mark Twain) é censurado por retratar o racismo do sul dos EUA é um mundo que perdeu a capacidade de entender a própria dor.
6. Conclusão: A Diferença entre Monumento e Documento
Concluímos esta reflexão diferenciando a estátua em praça pública do livro na estante. Derrubar uma estátua de um escravocrata faz sentido, pois a estátua é uma homenagem, uma celebração no espaço cívico. O livro, contudo, não é necessariamente uma homenagem; é um registro, um testemunho, um documento de uma consciência (ou da falta dela).
Reescrever livros clássicos é um ato de arrogância do presente em relação ao passado. É como se disséssemos: "Nós, os iluminados de 2025, sabemos melhor o que Roald Dahl queria dizer do que ele mesmo".
Para o mercado brasileiro, que começa a importar essas discussões, a postura deve ser de vigilância. Devemos lutar por uma literatura contemporânea mais inclusiva, diversa e respeitosa — publicando novos autores negros, indígenas, LGBTQIA+ —, em vez de gastar energia tentando "consertar" os autores brancos mortos do século passado. Deixemos os mortos com os seus erros, para que os vivos possam aprender com eles, e não fingir que eles nunca aconteceram.

Nenhum comentário:
Postar um comentário