A sociologia do streamming

Foto: Fast Company

1. Introdução: O Algoritmo da Favela

Há sessenta anos, Glauber Rocha publicava o manifesto "A Estética da Fome", argumentando que a miséria do povo latino-americano não deveria ser tratada como folclore, mas como uma verdade trágica e revolucionária. Corta para 2025. Ao abrirmos a página inicial da Netflix, Prime Video ou Globoplay, somos inundados por produções que retratam a periferia brasileira. Contudo, algo fundamental mudou: a fome deixou de ser uma denúncia política para se tornar um subgênero de entretenimento de ação.

Este ensaio propõe uma análise técnica sobre o que chamaremos de "Favela Movie de Exportação". Com o advento do streaming global, a produção audiovisual brasileira encontrou um nicho lucrativo no mercado internacional: a violência urbana estilizada.

O problema não é retratar a favela — a representação é vital —, mas como ela é retratada. Observamos uma padronização estética preocupante: o uso excessivo de filtros amarelos (para denotar calor e tensão), a montagem frenética, o uso de drones para planos aéreos espetaculares dos morros e uma trilha sonora de funk ou rap higienizada. A miséria, captada em resolução 4K HDR, tornou-se visualmente deslumbrante. Estamos diante da "Cosmética da Violência", onde a desigualdade social serve apenas como cenário exótico para narrativas de policiais e bandidos.

2. A "Pornografia da Miséria" e o Olhar do Gringo

O termo "Pornografia da Miséria" (ou Poverty Porn) é utilizado pela crítica para descrever obras que exploram a condição de pobreza para gerar excitação ou simpatia superficial, sem aprofundar as causas estruturais daquela realidade.

No ecossistema do streaming, isso manifesta-se na construção de roteiros que parecem desenhados para confirmar os preconceitos do público estrangeiro. O Brasil é vendido como o país do caos, da droga e da sexualidade desenfreada. Quando uma série brasileira faz sucesso na Europa ou nos EUA focando exclusivamente no narcotráfico, precisamos perguntar: estamos exportando cultura ou reforçando estereótipos coloniais?

Tecnicamente, os roteiros seguem uma fórmula de "Jornada do Herói" distorcida, onde a única saída possível para o jovem periférico é o crime ou o futebol. Essa repetição ad infinitum cria um imaginário global onde a favela é um território de guerra perpétua, ignorando a potência criativa, o empreendedorismo, a solidariedade e a vida cotidiana da maioria dos moradores que não estão envolvidos com o tráfico.

3. A Fetichização da Arma e a Masculinidade Tóxica

A análise semiótica dessas produções revela uma obsessão fálica pela arma de fogo. Os cartazes de divulgação quase invariavelmente mostram personagens empunhando pistolas ou fuzis. A violência, longe de ser tratada como um trauma social (como em Cidade de Deus, que inaugurou o gênero com complexidade), é tratada como espetáculo coreografado.

O streaming, movido por métricas de retenção, sabe que cenas de tiroteio seguram a audiência. O custo disso é a perpetuação de uma masculinidade tóxica. Os protagonistas masculinos são definidos pela sua capacidade de matar ou morrer. As personagens femininas, por sua vez, são frequentemente reduzidas a arquétipos de sofrimento (a mãe que chora) ou de objeto sexual (a "mulher do bandido").

Para o Post Literal, a crítica reside na falta de nuances. Onde está o afeto? Onde está o tédio? Onde está o trabalho formal? A simplificação narrativa transforma seres humanos complexos em NPCs (personagens não-jogáveis) de um jogo de tiro em primeira pessoa.

4. A Resistência: O Cinema de "Invenção de Cotidiano"

Felizmente, existe um movimento de contra-ataque, muitas vezes vindo do cinema independente e que, aos poucos, perfura a bolha do streaming. Filmes como Marte Um (Gabriel Martins) ou No Coração do Mundo representam uma ruptura com a "Cosmética da Violência".

Nestes filmes, a periferia é filmada de dentro para fora, e não de cima (drone) para baixo. A pauta não é a droga, mas o sonho de ser astrofísico, a dinâmica familiar, o churrasco na laje, as angústias da classe trabalhadora. Tecnicamente, a fotografia abandona o filtro amarelo sujo e abraça as cores reais, a luz natural.

A crítica deve exaltar essas produções que reivindicam o "Direito à Banalidade". O direito do personagem periférico de ter dramas existenciais universais — amores não correspondidos, crises de fé, conflitos geracionais — que não sejam atravessados por uma bala perdida. Isso é humanizar o sujeito.

5. A Responsabilidade das Plataformas e a Cota de Tela

A discussão sociológica desemboca numa questão de política cultural: a regulação do VOD (Video on Demand). Enquanto as plataformas internacionais operarem sem obrigações claras de fomento à diversidade temática, a tendência do algoritmo será sempre o "mais do mesmo" (o thriller de favela).

É papel do jornalismo cultural cobrar que a "Cota de Tela" para produções nacionais não seja preenchida apenas com variações do mesmo tema violento. Precisamos de comédias românticas negras, ficção científica indígena, dramas de tribunal periféricos. A diversidade não é apenas ter atores negros no elenco; é ter negros na sala de roteiro e na direção, decidindo qual história será contada.

Quando a narrativa é controlada por quem vive o território, a estética muda. A "miséria" deixa de ser produto de exportação e a "potência" passa a ser o foco. O Post Literal defende que o verdadeiro sucesso do audiovisual brasileiro será quando um filme sobre a favela não precisar ter um único tiro para ser considerado "realista".

6. Conclusão: O Que Estamos Assistindo?

Concluímos este ensaio com uma provocação ao leitor: ao dar o play na próxima superprodução sobre o tráfico, faça um exercício de distanciamento crítico. Pergunte-se: "Quem está lucrando com essa imagem?".

A estética em 4K, o som Dolby Atmos e a edição frenética podem seduzir os sentidos, mas não devem anestesiar a consciência crítica. A favela não é um zoológico humano para entretenimento da classe média global. O cinema e o streaming têm o poder de construir imaginários; que usem esse poder para construir pontes de empatia, e não muros de medo.

A revolução, talvez, não será televisionada, mas será "streamada". Resta saber se o algoritmo permitirá que ela seja assistida.

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