O que acontece quando o escritor precisa ser mais interessante que a obra?

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A literatura, enquanto instituição social e artística, atravessa uma mutação silenciosa, porém tectônica. Se no século XX a crítica literária, amparada por teóricos como Roland Barthes e Michel Foucault, celebrava a "Morte do Autor" — a ideia de que a biografia do escritor pouco importava diante da autonomia do texto —, o século XXI opera uma inversão radical desse paradigma. Vivemos a era da "Ressurreição Espetacular do Autor", mas não como intelectual público, e sim como produto de entretenimento.

O mercado editorial contemporâneo, refém das métricas das plataformas digitais (TikTok, Instagram, Twitter/X), instituiu um novo contrato tácito: para ser lido, o escritor precisa, antes de tudo, ser visto. A obra literária, outrora o fim último do trabalho criativo, converteu-se num souvenir da persona digital do autor. O livro deixa de ser um objeto autônomo para se tornar uma extensão do "estilo de vida" performado nos reels de 15 segundos.

Este ensaio propõe-se a investigar os custos estéticos e psíquicos dessa demanda. Quando a energia criativa é desviada da página para a tela do smartphone, o que estamos a perder em termos de densidade literária? Estaremos a caminhar para um cenário onde o carisma substitui o talento, e o engajamento substitui a crítica?

2. A Sociedade da Transparência e a Pornografia da Intimidade

Para compreender este fenómeno, é imperativo recorrer ao filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. Em A Sociedade da Transparência, Han argumenta que o mundo contemporâneo rejeita o mistério e a negatividade em prol de uma exposição total e positiva. Aplicado à literatura, isso gera um efeito devastador: o fim do escritor recluso.

Figuras míticas como J.D. Salinger (O Apanhador no Campo de Centeio) ou Thomas Pynchon, que protegiam a sua privacidade como forma de preservar a integridade da sua ficção, seriam hoje consideradas "inviáveis" pelos departamentos de marketing das grandes editoras. O silêncio, antes um sinal de respeito e profundidade, é hoje interpretado como irrelevância ou arrogância.

O autor atual é coagido a praticar o que podemos chamar de "pornografia da intimidade". Exige-se dele que partilhe o seu café da manhã, o seu processo de escrita (o making of constante), as suas angústias pessoais e até a sua vida doméstica. Essa transparência forçada transforma a subjetividade do escritor numa commodity. O leitor-consumidor não compra apenas a ficção; ele compra o acesso aos bastidores. Cria-se, assim, uma relação parassocial onde a validação da obra depende da simpatia que se nutre pelo seu criador.

3. O Capital Social como Moeda Literária

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A sociologia de Pierre Bourdieu, ao analisar o "Campo Literário", falava em capital cultural e capital simbólico. Hoje, precisamos adicionar uma nova variável à equação: o capital algorítmico.

Editores, agentes literários e curadores de festivais, pressionados por margens de lucro cada vez mais estreitas, tendem a apostar em autores que já trazem consigo uma base de seguidores pré-estabelecida. O "risco editorial" é mitigado pelos números do Instagram. Isso cria uma barreira de entrada perversa para escritores introvertidos, tecnofóbicos ou simplesmente avessos à exposição, independentemente da qualidade da sua prosa.

Observamos, portanto, uma gentrificação do espaço literário. Ocupam as prateleiras de destaque aqueles que dominam a linguagem da performance digital — a estética do vídeo curto, a retórica do clickbait, a polêmica do dia. O escritor transforma-se num gestor de comunidade (Community Manager) de si mesmo. A escrita do livro torna-se apenas uma das tarefas de um trabalho que é, majoritariamente, de autopromoção.

4. O Fenômeno BookTok: Potência e Armadilha

Não se pode ignorar o impacto do BookTok (a comunidade literária do TikTok) nesta dinâmica. Por um lado, a plataforma democratizou a recomendação literária, tirando o poder dos cadernos de cultura dos jornais tradicionais e entregando-o a leitores jovens e apaixonados. Isso gerou bestsellers improváveis e revitalizou o mercado.

Por outro lado, o algoritmo do TikTok favorece um tipo específico de literatura: a literatura de "tropes" (clichês narrativos) e de reações emocionais imediatas. Livros são vendidos com base em promessas sensacionalistas ("o livro que vai fazer você chorar", "o livro com o maior plot twist"). O autor, para se adaptar a este meio, começa a escrever já a pensar na "clipagem" da obra.

O perigo reside na algoritmização da criação. Se o autor sabe que cenas de alto impacto emocional ou diálogos "lacradores" geram compartilhamento, ele pode, consciente ou inconscientemente, moldar a sua narrativa para satisfazer o algoritmo, sacrificando a nuance, a ambiguidade e a complexidade — elementos que, historicamente, constituem a grande literatura. A obra deixa de ser um desafio intelectual para se tornar um produto de conforto cognitivo, desenhado para viralizar.

5. O Burnout Criativo e a Fragmentação do "Eu"

A exigência da performance contínua cobra um preço alto: a exaustão mental do criador. O ato da escrita literária exige, por definição, um estado de imersão profunda (Deep Work), solidão e desconexão. É um processo de mergulho vertical. Em contrapartida, a gestão de redes sociais exige horizontalidade, rapidez e conexão constante.

O escritor moderno vive, portanto, numa esquizofrenia produtiva. Ele precisa alternar, várias vezes ao dia, entre a profundidade do romancista e a superficialidade do influenciador. A neurociência explica que essa troca constante de contexto (context switching) fragmenta a atenção e corrói a capacidade cognitiva necessária para estruturar narrativas complexas.

O resultado é o Burnout Criativo. Não é apenas o cansaço do trabalho, mas a sensação de fraude. Muitos autores relatam que passam mais tempo a produzir conteúdo sobre escrever do que efetivamente a escrever. A literatura torna-se o subproduto de uma máquina de content marketing. Quando a energia vital é drenada pela manutenção da persona digital, o que sobra para o texto é o bagaço do intelecto. O risco é termos livros escritos por pessoas exaustas, para leitores distraídos.

6. Autoficção: Espelho Artístico ou Narcisismo de Algoritmo?

A pressão pela exposição pessoal também reverbera na escolha dos gêneros literários. A ascensão vertiginosa da autoficção (narrativas onde o autor se coloca como personagem, misturando biografia e invenção) não é coincidência. Embora seja um gênero nobre e histórico — de Proust a Knausgård —, no contexto atual, ela corre o risco de ser capturada pela lógica da selfie.

Numa cultura obcecada pelo "real" (ou pela encenação do real, como nos reality shows), o mercado incentiva autores a canibalizarem a própria vida. A literatura deixa de ser um exercício de imaginação (criar o outro) para ser um exercício de confirmação (afirmar o eu).

A crítica literária precisa estar atenta: estamos a premiar a qualidade estética da autoficção ou apenas o voyeurismo que ela proporciona? Quando o autor se torna o único assunto possível da sua obra, a literatura perde a sua função primordial de alterar a perspectiva, de nos fazer calçar os sapatos de quem é radicalmente diferente de nós. O "Eu" hipertrofiado sufoca o "Outro".

7. A Resistência do Silêncio: O Paradoxo Elena Ferrante

Diante deste cenário distópico, o caso de Elena Ferrante surge como um farol de resistência. A autora italiana (cuja identidade real permanece não confirmada) tornou-se um fenômeno global vendendo milhões de exemplares sem nunca ter feito uma live, sem ter conta no Instagram e sem dar entrevistas presenciais.

O "Efeito Ferrante" prova uma tese reconfortante: o texto ainda é soberano. Quando a obra possui uma força gravitacional própria, ela dispensa a muleta da personalidade do autor. Ironicamente, a ausência de Ferrante gerou mais fascínio do que a superexposição de seus contemporâneos. Ao negar-se ao espetáculo, ela devolveu ao leitor o direito de imaginar — não apenas os personagens, mas a própria autora.

Este exemplo demonstra que o anonimato (ou a discrição) não é uma sentença de morte comercial, mas uma estratégia de preservação da magia literária. O silêncio de Ferrante obriga o mercado e a crítica a focarem-se na única coisa que deveria importar: a arquitetura da sua prosa e a profundidade das suas tramas.

8. Conclusão: Pelo Direito à Opacidade

Concluímos esta reflexão evocando o conceito de "Direito à Opacidade", do filósofo martinicano Édouard Glissant. Contra a ditadura da transparência total, que tudo ilumina e tudo achata, a literatura deve reivindicar o seu direito ao escuro, ao secreto, ao não-dito.

Para o futuro da literatura nacional e mundial, é vital que autores e leitores repactuem o seu contrato. O leitor precisa entender que o escritor não é seu amigo imaginário, nem seu coach, nem seu entretenimento diário nas redes. O escritor é um artífice da palavra, e o seu trabalho acontece no silêncio.

Ao Post Literal cabe o papel de curadoria crítica: valorizar obras que se sustentam de pé, sem a necessidade da escora do carisma digital. Precisamos ler menos "pessoas" e mais "livros". Talvez, ao desligarmos os holofotes sobre os autores, consigamos finalmente enxergar o brilho do que eles escreveram.

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