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| Foto: CAF |
A morte sempre foi o único absoluto da condição humana. Historicamente, a religião e a filosofia ocuparam-se de dar sentido ao fim. No entanto, no século XXI, o Vale do Silício decidiu tratar a morte não como um destino inevitável, mas como um "problema técnico" a ser resolvido.
Este ensaio investiga a ascensão da chamada Grief Tech (Tecnologia do Luto). Com o avanço das Inteligências Artificiais Generativas (LLMs), surgiram serviços capazes de ingerir gigabytes de dados de uma pessoa falecida (e-mails, mensagens de WhatsApp, áudios) para criar um "Deadbot" — um avatar conversacional que simula o padrão de fala, o humor e até a voz de quem partiu.
Para o leitor do Post Literal, a questão transcende a curiosidade mórbida. Estamos diante de uma ruptura ontológica. Se a biografia de uma pessoa pode continuar a ser escrita por um algoritmo após o seu óbito biológico, o que acontece com o conceito de "legado"? A morte deixa de ser um ponto final para se tornar uma vírgula num fluxo de dados perpétuo.
2. O Caso "Project December" e a Simulação do Afeto
Para ilustrar a discussão, analisamos casos reais como o do "Project December" ou de startups que prometem "imortalidade digital". A tecnologia já permite que uma viúva continue a receber "Bom dia" do marido falecido no Telegram.
A análise técnica aqui deve focar na mimese desprovida de consciência. O chatbot não "sente" saudade; ele prevê estatisticamente qual a próxima palavra que o falecido usaria. Contudo, para quem está em luto, essa distinção filosófica colapsa. A carência humana projeta alma onde há apenas código.
Estamos a criar uma "Necropolítica Digital", onde a memória dos mortos é privatizada e transformada em serviço por assinatura. A angústia da perda é mitigada (ou adiada) pela ilusão da presença. O perigo reside na dependência: se a empresa falir e desligar o servidor, o ente querido "morre" uma segunda vez?
3. A Interrupção do Ciclo do Luto
Sigmund Freud, no seu seminal Luto e Melancolia, descreve o luto como um "trabalho". É o processo doloroso, mas necessário, de retirar a libido (energia psíquica) do objeto perdido e reconectá-la à realidade. O luto exige a aceitação da ausência.
A Grief Tech atua na contramão desse processo. Ao oferecer uma presença simulada, ela congela o enlutado na fase da negação. O "fantasma na máquina" impede o adeus. Psicólogos e bioeticistas começam a alertar para o risco de luto patológico crônico.
Como alguém pode refazer a sua vida se o falecido continua a dar opiniões sobre o jantar, a comentar filmes novos ou a enviar lembretes de aniversário? A tecnologia, ao prometer conforto, pode estar a aprisionar os vivos num mausoléu digital interativo, onde o passado canibaliza o futuro.
4. O Dilema do Consentimento Póstumo
Entramos na seara jurídica e ética. Quem é o dono dos dados digitais de um morto? A maioria das pessoas que faleceu na última década não deixou em testamento uma autorização para ser recriada por uma IA.
A recriação digital de vozes (como a polêmica do comercial com a cantora Elis Regina) ou de rostos (Deepfakes) levanta a questão da integridade da memória. O "Deadbot" pode dizer coisas que a pessoa real jamais diria. Ele pode ser manipulado pelos vivos para resolver disputas familiares, revelar segredos ou até fazer propaganda.
O Post Literal deve levantar a bandeira do "Direito Digital Póstumo". Será que temos o direito de descansar em paz, ou seja, de permanecer em silêncio? A transformação do morto em fantoche algorítmico é a violação final da privacidade, onde o sujeito perde o controle sobre a sua própria narrativa e imagem.
5. Black Mirror e a Realidade Documental
O episódio "Be Right Back" da série Black Mirror (onde uma mulher substitui o namorado morto por um androide alimentado por suas redes sociais) deixou de ser ficção científica para se tornar um documentário sobre tendências de mercado.
A cultura pop tem o papel de nos avisar sobre os abismos para onde caminhamos. O ensaio deve refletir sobre como a nossa sociedade, secularizada e afastada dos rituais fúnebres tradicionais, está desesperada por qualquer forma de transcendência. Na falta do Paraíso religioso, agarramo-nos à Nuvem (Cloud) tecnológica.
A crítica cultural aqui é: estamos a substituir o sagrado pelo simulacro. A imortalidade digital é uma imortalidade de "segunda classe", uma eco vazio que repete padrões sem nunca criar algo novo. É uma eternidade estática.
6. Conclusão: A Beleza da Finitude
Concluímos este texto com uma defesa da finitude. O que dá valor à vida, à literatura e aos momentos é justamente o fato de que eles acabam. A narrativa humana precisa de um desfecho para ter sentido (télos).
Recusar a morte através da tecnologia é uma forma de infantilização civilizatória. Precisamos reaprender a arte de dizer adeus. As fotos, os livros deixados na estante e as memórias orgânicas (falhas, embaçadas, mas humanas) são formas mais dignas de preservação do que um algoritmo que nunca dorme.
Que deixemos os mortos serem mortos, para que possamos continuar a ser vivos. A verdadeira imortalidade reside no impacto que causamos nos outros, e não num servidor refrigerado em algum lugar da Califórnia.

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