A crise das livrarias de rua

Foto: Guia Folha

Na década de 1980, o sociólogo Ray Oldenburg cunhou um conceito fundamental para o urbanismo moderno em seu livro The Great Good Place: o "Terceiro Lugar" (The Third Place). Se o "Primeiro Lugar" é o nosso lar (espaço de intimidade) e o "Segundo Lugar" é o trabalho (espaço de produtividade), o "Terceiro Lugar" é o espaço neutro de convivência comunitária. São os cafés, as praças, os cinemas de rua e, fundamentalmente para o nosso debate, as livrarias.

São nestes locais que a democracia acontece de forma orgânica. Ali, conversamos com estranhos, debatemos ideias e experimentamos o sentimento de pertença. No entanto, ao caminharmos pelas ruas das capitais brasileiras em 2025, observamos a extinção silenciosa desses espaços. Grandes redes de livrarias fecharam as portas, cinemas de rua viraram igrejas ou farmácias, e o comércio local foi substituído por "Dark Kitchens" (cozinhas de entrega) fechadas para a rua.

Este ensaio investiga como a migração do consumo cultural para o ambiente digital (Amazon, estantes virtuais) está a transformar as nossas cidades em "desertos de convivência". A eficiência logística do e-commerce trouxe comodidade, mas cobrou um preço alto: a morte da serendipidade urbana.

2. A Algoritmização do Gosto e o Fim do Acaso

A livraria física oferece algo que nenhum algoritmo consegue emular com perfeição: o acaso. Quando você entra numa livraria para comprar um livro específico, frequentemente sai com outro que viu na mesa de destaques ou que um livreiro apaixonado lhe indicou. Esse "encontro não planejado" é a base da expansão cultural.

No ambiente online, a navegação é "tunelada". O algoritmo de recomendação ("Quem comprou X também comprou Y") opera por reforço de padrão. Ele mantém o leitor numa bolha de conforto, sugerindo sempre mais do mesmo. A livraria de rua, com a sua curadoria humana e idiossincrática, quebra essa bolha.

A crise das livrarias físicas não é apenas comercial; é uma crise epistêmica. Quando perdemos o espaço físico, perdemos a figura do livreiro-curador — o intermediário humano que entende de subjetividade, não apenas de metadados. A cidade sem livrarias torna-se um lugar onde a cultura circula apenas por cabos de fibra ótica, invisível e individualizada, sem ocupar o espaço público.

3. O Urbanismo do "Delivery": Ruas Mortas

Foto: Revista PROJETO

A socióloga Jane Jacobs, em Morte e Vida de Grandes Cidades, defendia que a segurança e a vitalidade de uma rua dependem dos "olhos da rua" — pessoas circulando, comércio aberto, vitrines iluminadas. A livraria de rua cumpre essa função social: ela ilumina a calçada, gera tráfego de pedestres e cria um ponto de paragem.

Quando substituímos a ida à livraria pelo clique no aplicativo de entrega, contribuímos para o fenômeno das "Ruas Mortas". A cidade deixa de ser um destino e passa a ser apenas um trajeto entre a casa e o trabalho. O tecido urbano esgarça-se.

O Post Literal convida o leitor a refletir: a economia de R$ 10,00 na compra online vale o empobrecimento da sua rua? O fechamento de uma livraria de bairro não é apenas a falência de um CNPJ; é o apagamento de um farol cultural que iluminava aquela comunidade.

4. A Livraria como Ato de Resistência Política

Diante da hegemonia das gigantes do e-commerce, as livrarias que sobrevivem (e as novas que surgem) mudaram de natureza. Elas deixaram de ser apenas "lojas de vender livros" — pois nessa batalha de preço elas já perderam — para se tornarem Centros Culturais de Resistência.

As livrarias de rua independentes (como a Gato Sem Rabo, Mandarina, Patuá, entre tantas outras pelo Brasil) vendem experiência e curadoria. Elas promovem clubes de leitura, lançamentos com autores, cafés filosóficos e debates políticos. Elas reivindicam o estatuto de "Terceiro Lugar".

Comprar um livro nestes espaços tornou-se um ato político de urbanismo. É uma forma de votar com a carteira, dizendo: "Eu quero que este lugar exista na minha cidade". É financiar a manutenção da esfera pública. A análise econômica mostra que o dinheiro gasto no comércio local tende a circular na própria comunidade, enquanto o dinheiro gasto na plataforma global é imediatamente extraído para paraísos fiscais ou sedes internacionais.

FOTO: OGlobo

5. O Futuro Híbrido: O "Phygital" na Cultura

Não se trata de negar a tecnologia. O futuro das livrarias e dos espaços culturais reside no hibridismo (o tal Phygital - físico + digital). As livrarias de sucesso usam as redes sociais para criar comunidade, mas usam o espaço físico para consolidar o afeto.

O desafio para gestores públicos e para a sociedade civil é criar mecanismos de proteção para esses lugares. Em países como a França, existem leis que protegem as livrarias independentes da concorrência predatória (Lei do Preço Único do Livro), entendendo-as como patrimônio cultural, não apenas como varejo.

No Brasil, o debate sobre a imunidade tributária e o fomento à leitura passa necessariamente pela preservação do espaço físico. Uma biblioteca ou livraria aberta numa esquina movimentada é o maior cartaz publicitário possível a favor da leitura.

6. Conclusão: A Cidade é um Livro Aberto

Concluímos esta série de ensaios reafirmando que a cultura precisa de "chão". A literatura é feita de palavras, mas a leitura é feita de corpos, de lugares, de cheiro de café e de papel.

Se deixarmos que o "Terceiro Lugar" desapareça, condenamo-nos à solidão dos nossos apartamentos e à frieza das nossas telas. A reconquista da cidade começa pela ocupação dos seus espaços de saber.

Que a próxima vez que você precisar de um livro, faça o caminho mais longo. Vá a pé. Entre na loja. Converse com o livreiro. O livro será o mesmo, mas a cidade ao seu redor — e a sua experiência de cidadania — será um pouco mais viva.

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