De uma estreia discreta a um fenômeno global que redefiniu as regras da animação japonesa, mergulhamos nas entranhas da obra de Gege Akutami para entender como a energia amaldiçoada conquistou o mundo.
Por Redação de Cultura Pop | Especial Long-Form
Em um cenário saturado onde heróis frequentemente gritam suas motivações e a amizade sempre triunfa sobre o mal, Jujutsu Kaisen emergiu não apenas como uma alternativa, mas como uma resposta visceral. Publicado originalmente na Weekly Shōnen Jump em 2018 e adaptado para anime pelo estúdio MAPPA em 2020, a obra de Gege Akutami rapidamente transcendeu o status de "sucesso da temporada" para se tornar um pilar cultural contemporâneo.
Diferente de seus predecessores, Jujutsu Kaisen não tem medo de olhar para o abismo. É uma narrativa construída sobre a inevitabilidade da morte, a complexidade da moral humana e um sistema de poder que pune tanto quanto recompensa. Nesta reportagem especial, dissecamos a sinopse, os perfis psicológicos dos personagens, a recepção crítica e os segredos de bastidores que tornaram esta obra um titã da indústria.
I. A Premissa
A história se passa em um Japão moderno onde os sentimentos negativos dos humanos — arrependimento, ódio, vergonha — não desaparecem no éter. Eles se acumulam, coagulam e dão origem às "Maldições" (Jurei), monstros grotescos que espreitam nas sombras, causando desaparecimentos inexplicáveis e mortes misteriosas.
No centro deste turbilhão está Yuji Itadori, um estudante do ensino médio com proezas físicas sobre-humanas, mas sem nenhum interesse no oculto. Sua vida muda irrevogavelmente na noite em que seus amigos do Clube de Ocultismo acidentalmente quebram o selo de um objeto amaldiçoado de classe especial: um dedo podre e mumificado.
Para salvar seus amigos de um massacre iminente, Itadori toma uma decisão impulsiva e insana: ele engole o objeto. O dedo pertencia a Ryomen Sukuna, o lendário "Rei das Maldições", uma entidade de maldade pura que aterrorizou a Era Heian mil anos atrás. Contrariando todas as expectativas biológicas e mágicas, Itadori não morre; ele se torna o hospedeiro de Sukuna, mantendo o controle sobre seu próprio corpo na maior parte do tempo.
Isso o coloca na mira da sociedade secreta dos Feiticeiros Jujutsu. Sob a tutela do enigmático e poderoso Satoru Gojo, Itadori entra para a Escola Técnica Superior de Jujutsu de Tóquio com uma sentença de morte suspensa: ele deve encontrar e consumir todos os 20 dedos de Sukuna para que, ao final, o Rei das Maldições possa ser exorcizado junto com ele. Assim começa uma jornada não para se tornar o maior herói, mas para escolher a forma como vai morrer.
II. Arcos Fundamentais
A narrativa de Jujutsu Kaisen é elogiada por seu ritmo frenético e falta de "gordura". Cada arco serve a um propósito brutal de desenvolvimento.
O Começo e a Troca de Escolas (Kyoto Goodwill Event)
Inicialmente, a série estabelece o trio principal — Itadori, Megumi Fushiguro e Nobara Kugisaki. O tom oscila entre a comédia escolar e o horror corporal. O arco do Evento de Intercâmbio com a Escola de Kyoto expande o mundo, apresentando as políticas internas conservadoras do mundo Jujutsu e introduzindo personagens secundários vitais como Aoi Todo e Maki Zenin. Aqui, a obra engana o espectador com a estrutura clássica de "torneio", apenas para subvertê-la com uma invasão de maldições que eleva as apostas drasticamente.
O Incidente de Shibuya: O Ponto de Virada
Se a primeira temporada construiu as fundações, o arco do Incidente de Shibuya (adaptado na 2ª temporada) as demoliu. Ocorrendo em 31 de outubro, o arco narra um ataque terrorista coordenado por maldições de nível especial e usuários de maldição, liderados pelo falso Suguru Geto (Kenjaku). O objetivo: selar Satoru Gojo. Shibuya é considerado por críticos e fãs como um dos melhores arcos da história do shonen. É uma guerra urbana caótica, brutal e sem misericórdia. A estrutura narrativa se fragmenta em múltiplos pontos de vista simultâneos, culminando em perdas devastadoras que alteram permanentemente o status quo da série. Não há retorno após Shibuya; a inocência dos estudantes é obliterada.
O Jogo do Abate (Culling Game)
Após o colapso da sociedade japonesa pós-Shibuya, o Japão se torna uma zona de exclusão. Começa o "Jogo do Abate", um battle royale orquestrado por Kenjaku para forçar a evolução da humanidade através da energia amaldiçoada. É um arco complexo, focado em batalhas técnicas e regras densas (semelhante a Hunter x Hunter), onde novas alianças são forjadas e a moralidade dos heróis é testada ao limite.
III. Dossiê de Personagens
A grande força de Gege Akutami reside na construção de seus personagens. Eles não são arquétipos planos; são indivíduos falhos, muitas vezes egoístas e psicologicamente densos.
Yuji Itadori (O Tigre do Oeste)
Veredito: O protagonista desconstruído. Diferente de Naruto ou Luffy, Itadori não tem um sonho grandioso. Seu objetivo é mórbido: garantir uma "morte correta" para si e para os outros. Sua trajetória é de sofrimento. Ele se vê como uma engrenagem em uma máquina maior, um "cog". A crítica elogia Itadori por sua humanidade; ele chora, ele quebra, ele sente o peso de cada vida que Sukuna tira usando suas mãos. Sua evolução não é apenas de poder, mas de aceitação de seu papel trágico. Ele é a antítese do escolhido: ele é um sacrifício ambulante.
Megumi Fushiguro
Veredito: O potencial desperdiçado e a sombra do dever. Megumi é o deuteragonista estoico, mas sua frieza esconde um código moral seletivo: "Salvo quem eu quero salvar". Usuário da Técnica das Dez Sombras, ele carrega o peso do legado do clã Zenin e o interesse obsessivo de Sukuna. A tragédia de Megumi reside em sua baixa autoestima e na tendência ao autossacrifício. Sua jornada é aprender a ser egoísta o suficiente para vencer, uma lição que Satoru Gojo tenta incutir nele repetidamente.
Nobara Kugisaki
Veredito: A subversão da heroína feminina. Nobara é frequentemente citada como um dos pontos altos da obra. Ela rejeita o papel de "donzela" ou de "suporte emocional". Ela é agressiva, vaidosa e letal. Sua técnica de Boneca de Palha é visceral, causando dano à alma do oponente. Sua famosa frase, "Eu amo a mim mesma quando estou bonita e arrumada, e amo a mim mesma quando estou forte e lutando", resume sua recusa em escolher entre feminilidade e ferocidade. Sua participação em Shibuya é um dos momentos mais chocantes e definidores da série.
Satoru Gojo
Veredito: O fardo da onipotência. Gojo não é apenas um mentor; ele é o teto de poder da obra. Sua existência altera o equilíbrio do mundo. No entanto, Akutami escreve Gojo como uma figura trágica. Apesar de ser "O Mais Forte", ele falha em proteger o que realmente importa: a juventude de seus alunos e a vida de seu melhor amigo. Sua personalidade, que oscila entre o brincalhão e o divino, esconde uma solidão profunda. Ele é um deus vivendo entre mortais, tentando criar uma geração que não o deixe sozinho no topo.
Ryomen Sukuna
Veredito: O mal em estado puro. Sukuna é um dos vilões mais aclamados da última década. Ele não tem um passado triste para justificar suas ações, nem um plano nobre distorcido. Ele é um hedonista. Ele vive para o seu próprio prazer, que consiste em comer, lutar e matar. Sua relação com Itadori é de puro desprezo, e sua inteligência tática o torna aterrorizante. Ele não é um obstáculo a ser convertido; é uma catástrofe natural em forma humana.
Suguru Geto / Kenjaku
Veredito: O ideólogo. Enquanto Sukuna é o caos físico, Kenjaku (que habita o corpo de Geto) é o perigo intelectual. Ele representa a curiosidade científica sem ética, disposto a sacrificar milhões para ver "algo interessante". A tragédia do verdadeiro Suguru Geto — um herói que se corrompeu pelo peso de proteger ingratos — serve como o contraponto emocional mais doloroso para Satoru Gojo.
Yuta Okkotsu
Veredito: O reflexo do amor. Protagonista do filme prequela Jujutsu Kaisen 0, Yuta é o oposto de Itadori. Enquanto Itadori começa confiante e perde tudo, Yuta começa quebrado e encontra força. Seu poder vem do amor, que na série é descrito como "a maldição mais distorcida de todas". Sua reintrodução na série principal traz um ar de competência e melancolia que eleva o nível das batalhas.
O Fenômeno MAPPA
A adaptação do estúdio MAPPA é um marco técnico.
1ª Temporada (Dir. Sunghoo Park): Caracterizada por combates corpo a corpo pesados, realistas e uma estética polida. A coreografia de luta é visceral.
2ª Temporada (Dir. Shota Goshozono): Houve uma mudança artística drástica. A direção optou por um estilo mais fluido, experimental e expressionista, sacrificando detalhes estáticos em prol de uma animação dinâmica e ângulos de câmera impossíveis. Embora a produção tenha sofrido com prazos desumanos (gerando debates sobre as condições de trabalho na indústria), o resultado final em episódios como a batalha de Sukuna vs. Jogo foi aclamado como "cinema na TV".
Impacto Cultural
Jujutsu Kaisen frequentemente lidera as paradas de mangás mais vendidos da Oricon, competindo diretamente com One Piece. A abertura "Kaikai Kitan", da banda Eve, tornou-se um hino global. A série popularizou o conceito de "Expansão de Domínio" na cultura pop, com atletas e celebridades imitando os selos de mão dos personagens.
Cinema de Horror: Gege Akutami é um cinéfilo ávido. Referências a filmes como Hereditário, O Iluminado e Clube da Luta permeiam a obra.
Budismo Esotérico: O sistema de magia é profundamente enraizado no budismo. A "Expansão de Domínio" (Ryōiki Tenkai) refere-se à ideia de impor sua realidade interior ao mundo exterior. Os selos de mão são baseados em mudras reais.
Togashi e Kubo: Akutami nunca escondeu que Jujutsu é filho de Hunter x Hunter (pelo sistema de poder complexo) e Bleach (pela estética e conceito de espíritos).
A Identidade de Gege: O autor utiliza um avatar de um gato ciclope e mantém sua identidade e gênero em segredo, focando inteiramente na obra e evitando o culto à personalidade.
Jujutsu Kaisen é uma obra que captura a ansiedade do século XXI. Em um mundo onde as instituições falham (representadas pelos conservadores do alto escalão Jujutsu) e o desastre parece iminente, os personagens lutam não para salvar o mundo inteiro, mas para salvar o que está ao seu alcance.
Com uma linguagem visual agressiva, personagens que sangram e morrem, e uma recusa em dar respostas fáceis, a saga de Itadori já garantiu seu lugar no panteão dos clássicos. É uma história sobre a busca por sentido na morte, mas que, ironicamente, entrega uma das narrativas mais vibrantes e cheias de vida da atualidade.




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