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| Foto: Observatório do terceiro setor |
Na Grécia Antiga, a Polis era o espaço da visibilidade, onde o cidadão se realizava através do encontro com o outro. No Brasil de 2025, a Urbe tornou-se o espaço da segregação, onde o encontro é evitado a todo custo. A pergunta "a quem pertencem as ruas?" revela uma fratura exposta no nosso contrato social.
Juridicamente, a rua é um bem público de uso comum. Sociologicamente, contudo, a rua foi privatizada pela lógica do consumo. O "cidadão" foi substituído pelo "consumidor". Nesse cenário, aquele que não consome — o pedinte, o sem-teto, o morador de rua — perde o seu estatuto de cidadão. Ele torna-se uma falha no sistema, um "erro" na paisagem que precisa ser corrigido ou deletado.
Este ensaio investiga a institucionalização da barbárie urbana. Não estamos falando de acasos ou de crise econômica apenas; estamos falando de um projeto deliberado de aniquilação espacial. A política urbana contemporânea opera sob a lógica de que a limpeza da cidade exige a limpeza das pessoas que "sujam" a estética do progresso.
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| Foto: UNDP |
2. Aporofobia: Nomeando a Patologia Social
Para dar estofo técnico à discussão, é imperativo introduzir o conceito da filósofa espanhola Adela Cortina: Aporofobia. Diferente da xenofobia (medo do estrangeiro), a aporofobia é o medo, a aversão e a rejeição ao pobre.
O turista estrangeiro é bem-vindo; o refugiado pobre é repelido. Essa distinção prova que o problema não é o "outro", mas o "outro sem recursos". Nas grandes capitais brasileiras, a aporofobia deixou de ser apenas um sentimento individual para se tornar política de Estado. Ela manifesta-se nas "ações de zeladoria" que recolhem cobertores em noites de frio, nos jatos d'água sob marquises e na criminalização da esmola.
A rua, que deveria ser o local de acolhimento das contradições da sociedade, torna-se um espelho que se recusa a refletir a miséria que ela mesma produz. O transeunte apressa o passo, desvia o olhar. A invisibilidade social do morador de rua é o primeiro estágio da sua aniquilação física. Antes de morrerem de frio ou de fome, eles morrem pela indiferença do olhar público que os reifica (transforma em coisa).
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| Foto: Canção nova |
3. Arquitetura Hostil: A Brutalidade do Concreto
A face mais cínica dessa política é a Arquitetura Hostil (ou Design Defensivo). Trata-se do uso do desenho urbano para impedir o uso do espaço público por "indesejáveis".
Não é um acidente de design; é uma estratégia militar aplicada ao mobiliário urbano. Vemos bancos de praça com divisórias de ferro (para impedir que alguém deite), pedras pontiagudas chumbadas sob viadutos, espetos em muretas e sistemas de irrigação que molham calçadas em horários aleatórios.
O Padre Júlio Lancellotti, ao quebrar as pedras a marretadas em São Paulo, não estava apenas cometendo um ato de desobediência civil; estava denunciando a perversidade da engenharia. A arquitetura hostil diz, sem usar palavras: "Você não pertence a este lugar. Você não tem o direito de descansar. Desapareça". É a materialização do ódio de classe em ferro e cimento. O urbanismo, que deveria servir para integrar, é usado como arma de dispersão.
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| Jornal IDH |
4. A Lógica do Higienismo: Revitalizar para Quem?
Historicamente, o Brasil carrega a herança do "Higienismo Social". Desde a reforma de Pereira Passos no Rio de Janeiro (o "Bota-Abaixo" do início do século XX) até as atuais operações na Cracolândia em São Paulo, a lógica é a mesma: a "revitalização" do centro urbano exige a expulsão dos corpos "degenerados".
A palavra "revitalização" tornou-se um eufemismo perigoso para Gentrificação. O mercado imobiliário vende a ideia de um "Novo Centro", limpo, seguro e gourmetizado. Para que esse cenário exista, a população de rua precisa ser empurrada para as margens invisíveis.
A política de aniquilação não busca resolver o problema da falta de moradia; busca resolver o problema da visibilidade da falta de moradia. O objetivo não é que o sem-teto tenha um teto, mas que ele saia da frente da vitrine da nova loja de cafés especiais. É uma política estética, não social. Trata-se de "limpar a área", como se seres humanos fossem entulho.
5. Necropolítica Urbana: Deixar Morrer
Achille Mbembe cunhou o termo Necropolítica para descrever o poder do Estado de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Nas ruas brasileiras, a necropolítica opera pela omissão calculada.
Quando o Estado fecha albergues, reduz verbas para assistência social e permite a violência policial contra a população de rua, ele está exercendo o seu poder de morte. A morte do morador de rua por hipotermia não é um "acidente natural"; é um assassinato administrativo.
A aniquilação também é simbólica. A falta de documentos, a impossibilidade de tomar banho, a dificuldade de acesso à água potável — tudo isso retira a humanidade do sujeito. Ele passa a ser visto como um "zumbi" (termo frequentemente usado de forma pejorativa para dependentes químicos), uma não-pessoa cuja eliminação não gera luto coletivo. A sociedade chora o incêndio de uma estátua, mas ignora o incêndio de um barraco.
6. O Direito à Cidade e a Resistência
Henri Lefebvre, em O Direito à Cidade, argumentava que a cidade é uma obra (uma construção coletiva), não um produto. Reivindicar as ruas é reivindicar o direito de participar dessa obra.
O enfrentamento a essa política de aniquilação passa pela ressignificação do espaço público. As ocupações de prédios ociosos por movimentos de moradia, as cozinhas solidárias e a atuação de coletivos que distribuem quentinhas são atos de resistência política. Eles afirmam que a cidade é feita de pessoas, não de lucros.
Para o Post Literal, a conclusão é clara: uma cidade que não acolhe os seus vulneráveis é uma cidade falida, não importa quão altos sejam os seus arranha-céus ou quão "inteligentes" sejam os seus semáforos. A verdadeira inteligência urbana é a solidariedade.
7. Conclusão: A Rua é o Termômetro da Democracia
Concluímos este ensaio afirmando que a forma como tratamos quem vive na rua define quem somos como sociedade. As pedras sob os viadutos são monumentos à nossa barbárie.
Enquanto a política pública for pautada pela aporofobia e pelo higienismo, as nossas ruas serão trincheiras de uma guerra silenciosa. Pertencer à cidade não pode ser um privilégio de quem tem CEP fixo. A rua pertence a quem nela vive, transita e resiste. Se a rua não é de todos, ela não é de ninguém; é apenas um corredor de passagem num condomínio fechado a céu aberto chamado Brasil.




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