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Resenha: Doze dias, de Tiago Feijó

Imagem: Arte digital /Divulgação

APRESENTAÇÃO

Um pai e um filho que não se veem há quinze anos, separados por uma indiferença mútua e persistente, rompida apenas uma vez a cada ano, quando o pai telefona ao filho para felicitá-lo pelo seu aniversário. Mas o acaso tratará de pôr fim a este frio afastamento. Certa manhã, o senhor Raul acorda com uma estranha dor que o impede de se levantar da cama; sozinho e abandonado, não lhe resta outra alternativa senão ligar para o filho e lhe pedir ajuda. Antônio viaja duzentos quilômetros com o intuito de levar o pai ao hospital e retornar à mesmice de sua vida, mas o desenrolar dos fatos o mantém por doze dias no hospital, como único acompanhante do doente, na saga em que se transformará a enfermidade inesperada daquele seu desditoso progenitor. Nas palavras do narrador, “doze dias encavalados neste único e enormíssimo dia”. Neste romance de desbravamento dos medos e das dores do outro, estes dois personagens, durante os doze dias que permanecerão juntos, terão a derradeira oportunidade de se conhecerem a si mesmos e de se perdoarem um ao outro, numa jornada em busca do tempo perdido. A desconstrução do enredo, que salta de capítulo em capítulo para dias aleatórios, salienta e expõe o labirinto afetivo do qual somos todos feitos. Ao fim deste torvelinho varado em doze dias, nem o perdão nem a vingança estarão acima do milagre da aceitação do outro.

RESENHA

Imagem: Tiago Feijó / Ed. Penalux / Reprodução

Antônio, professor de língua portuguesa, estava planejando seus dias e aulas quando recebeu um pedido inusitado do pai por telefone: a urgência e incapacidade de se locomover devido a uma forte dor abdominal provocada por uma hemorroida. Ele pensa, relutante, e deixa um bilhete avisando para a mãe sobre sua viagem em auxílio ao pai adoentado, o que traz à tona inúmeras lembranças de sua infância no interior, em uma casa repleta de anotações de seu crescimento e desenvolvimento. Ele, por horas, transita entre os cômodos, relembrando todo o ar de nostalgia provocado pela casa, sem se dar conta de que aquela decisão mudaria os rumos de sua vida e de seu relacionamento com seu pai para sempre.

Antônio dorme exausto na poltrona de um quarto hospitalar enquanto seu pai, senhor Raul, acorda atormentado pela dor e tenta sair da cama, removendo os equipamentos médicos. Determinado a levantar-se, Raul enfrenta dificuldades devido à sua fraqueza, mas consegue pôr-se de pé, apenas para perceber sua vulnerabilidade. Ele chama por Antônio, que acorda confuso e tenta ajudar o pai, mas rapidamente compreende a gravidade da situação. Apesar dos esforços de Raul para convencer o filho de que estão liberados do hospital, Antônio chama as enfermeiras. Três delas vêm em socorro, mas Raul resiste, implorando para não ser amarrado. Antônio, desolado e sem saber como ajudar, acaba afastando-se e liga para pedir ajuda, mas não consegue verbalizar sua angústia, que culmina em um choro incontido e desesperado. A narrativa deixa clara a impotência e o sofrimento de ambos, resultando na intervenção das enfermeiras para cuidar de Raul e a desesperança de Antônio, que fica desolado no corredor do hospital. Em primeira instância, podemos perceber que Antônio se encontra arrependido da viagem, até revelando sua surpresa e insatisfação com sua mãe ao telefone, uma vez que seu pai jamais mantivera contato por quinze anos, exceto, claro, pela casualidade de um telefonema nos aniversários.

Os dias passam e Antônio vê seu pai cada vez mais debilitado, sofrendo de um quadro de fístula perianal com um abscesso rompido, agravado por cirrose e diabetes, o que complica o procedimento cirúrgico e torna os planos de retornar à sua cidade cada vez mais distantes. Apesar de tudo, é nítida a preocupação do filho com o quadro clínico do pai. Quando o pai, senhor Raul, acorda, ele e Antônio têm uma conversa breve e fria, marcando a distância emocional entre os dois. O pai pergunta sobre a casa e se Antônio regou as plantas, enquanto Antônio, cumprindo suas tarefas, mostra-se distante e relutante em expressar afeto. O relato termina com os dois presos em um silêncio incômodo, com Antônio questionando sobre as coisas da casa do pai e o pai, sem responder, bebendo água para evitar qualquer diálogo.

Antônio e seu pai, Raul, passam uma noite desconfortável e abafada em uma sala de espera no hospital, enquanto aguardam pelo atendimento de Raul, que está em condição grave. Após uma noite cheia de idas ao banheiro e preocupações, Antônio acorda na manhã seguinte cansado e sem paciência, vagando pela praça em frente ao hospital e tentando ler sem sucesso. Ao retornar, descobre que o pai foi levado para exames. Antônio aguarda ansioso até que os enfermeiros chegam para transferir seu pai para a clínica cirúrgica. No novo quarto, encontram o senhor Francisco e sua esposa, Teresa, surpreendentemente recuperados e cheios de vida, causando sentimentos mistos em Antônio e seu pai. Enquanto para Antônio isso traz uma sensação de esperança, para Raul, a recuperação de Francisco parece um mau presságio. Pouco depois, Raul é chamado para a cirurgia e, após um aperto de mão com o filho, é levado. O doutor José Pedro fala com Antônio no corredor, mas Teresa, sentindo um pressentimento ruim, observa inquieta. Quando Antônio retorna, seu rosto revela que há más notícias, confirmando os temores de Teresa.
 
Enquanto reflete sobre o passado e a figura paterna, Raul reconhece que não foi um bom pai, mas pede novamente para Antônio regar as plantas, alegando que elas precisam viver. Antônio quase cede à proposta, mas se dá conta da manipulação. Raul sugere que, se necessário, chamaria a irmã de Antônio, Alice, para cuidar dele, o que irrita ainda mais Antônio, já que Alice não está presente. A história segue abordando temas profundos como negligência, ressentimento e a busca pela redenção, além de explorar as dinâmicas familiares complicadas em tempos de doença e sofrimento.

Raul então começa a se questionar sobre o motivo de nunca ter conseguido construir um amor duradouro e se entrega a lembranças dolorosas, especialmente de um caso com a amiga de Noemi, que levou ao fim de seu casamento. Agora, ele se vê dominado por um sentimento de arrependimento e saudade do que nunca viveu. Os momentos finais da partida de Francisco e Teresa são marcados por despedidas afetuosas e palavras de fé. Após a saída do casal, Raul e seu filho Antônio sentem um vazio profundo. Raul enfrenta um misto de agonia e raiva ao saber da visita de familiares no domingo, demonstrando seu rancor e resistência a qualquer forma de reconciliação ou compaixão. Este dilema moral e emocional é exacerbado pelo estado deteriorado de Raul, tanto físico quanto mental. Raul, em meio a delírios, acredita que Antônio quer se vingar por falhas passadas e insiste que ele traga sua irmã, Alice, para uma última visita. Ao tentar processar esses acontecimentos, Antônio é assaltado por sentimentos conflitantes de culpa e compaixão. No final, Raul confunde uma enfermeira com Alice e, mesmo delirante, continua suplicando por um copo d'água. A narrativa explora o tema do desespero humano frente à impotência e à inexorabilidade da morte.

Na improvisada UTI onde Antônio e seu pai, Raul, estão há quase três dias, a primeira luz do dia surge. Raul, atento ao que deixará após a morte, lamenta sua herança insignificante – bares, amigos, contas, amores perdidos, objetos triviais e memórias dolorosas. Ele questiona Antônio sobre o que deixará de lembrança, refletindo sobre seus erros e acertos. Em um gesto de vulnerabilidade, Raul revela uma grave deformidade física. Desesperado, pede a Antônio que lhe prometa não deixá-lo morrer no hospital, mas sim levá-lo de volta para seus locais de vida, como a praça, a rua ou o bar. Antônio, atordoado, faz a promessa, embora saiba que é impraticável cumpri-la.

A história segue girando em torno de um Natal melancólico vivido em uma cidade interiorana, onde as ruas estão cheias de pessoas comprando presentes, e as iluminadas decorações espalham uma ilusória sensação de felicidade e abundância. No entanto, o foco se volta para os irmãos Antônio e Alice e o bebê Bento, que estão em frente ao hospital onde o pai adoece gravemente na UTI. Alice faz a primeira visita ao pai, levando uma carta e sapatinhos de lã que nunca serão usados. Ela se emociona, mas mantém o choro silencioso para não incomodar o pai. Posteriormente, é a vez de Antônio, que inicialmente hesita, mas depois de entrar e ver seu pai, sente uma compaixão universal. Ele também deixa um talismã com o pai e se despede em silêncio. Ao retornarem e observarem a movimentação natalina e a chegada de uma jardineira decorada como trenó de Papai Noel, os irmãos se consolam, conscientes da proximidade da morte do pai. Alice sugere que voltem para casa. Antônio, após levar a irmã e o sobrinho para casa, decide passar a noite na casa da infância, refletindo sobre as sombras e os silêncios deixados pela ausência do pai, antes de cair em um sono exausto e profundo.

A história se finaliza com um enredo repleto de nostalgia. A atmosfera evocada pelo personagem-protagonista é de missão cumprida, saudade, tristeza e satisfação em concluir os últimos desejos do pai. A história criada por Feijó é um misto de emoções entre idas e vindas das memórias e lembranças de uma vida tortuosa vivida por uma família distante emocionalmente, com fortes tendências narcisistas do pai, o que o afastou de seus filhos. A iniciativa do pai em buscar uma redenção por meio do perdão dos filhos é uma válvula forte que revela que estamos sempre prontos para ir, mas sempre receosos sobre nosso legado, no caso, a ausência de afetividade familiar. Os momentos no hospital e as inúmeras visitas de amigos, parentes, filhos e netos são uma reflexão à parte, que transformam todo nosso emocional em um caminho vasto de sentimentalismo, trabalhando com proeza o sentimento de perdão evocado nas páginas. Um enredo poderoso e merecedor de diversos prêmios.

Resenha: Breve inventário de pequenas solidões, de Tiago Feijó

APRESENTAÇÃO

Depois de estrear na literatura com o livro de contos “Insolitudes” (2015), vencedor do Prêmio Ideal Clube de Literatura, e ter publicado na sequência dois romances, “Diário da casa arruinada” (2017) e “Doze dias” (2022), ambos também premiados, Tiago Feijó volta ao gênero de estreia com esta belíssima coletânea de textos curtos, pelos quais o autor busca estabelecer uma temática definida: a solidão, ou melhor, aquelas pequenas solidões às quais todos nós estamos sujeitos.  Das “insolitudes” para as solitudes, o autor mantém a mesma acuidade na escrita, o mesmo cuidado na composição primorosa das frases e dos diálogos, a mesma preocupação em permear sua prosa com achados poéticos e sutis reflexões. Pelos contos enfeixados neste novo livro, um tênue fio vai costurando as histórias, enredando o leitor em várias tramas e texturas, nas quais os personagens, sejam pessoas ou animais, são marcados por algum tipo de isolamento, de perda ou incomunicabilidade. Em outras palavras, por suas solidões, pequenas solidões. Seja o que for, uma coisa é certa: quem se aventurar nesta obra estará em ótima companhia.

RESENHA

Tiago Feijó retorna ao seu gênero inicial com uma deslumbrante coletânea de textos breves. Com ela, o autor busca criar uma temática específica: a solidão, ou mais precisamente, aquelas pequenas solidões que afetam a todos nós. Migrando das "insolitudes" para as solitudes, Tiago mantém a mesma precisão na escrita, o esmero na composição das frases e diálogos, além da constante preocupação em imbuir sua prosa com toques poéticos e reflexões sutis. Ao longo dos contos reunidos neste novo livro, um delicado fio conecta as histórias, envolvendo o leitor em diversas tramas e texturas. Seja com pessoas ou animais, os personagens enfrentam algum tipo de isolamento, perda ou falta de comunicação, manifestando suas pequenas solidões. O certo é que quem decidir explorar esta obra encontrará excelente companhia.

O conto o destino de Beethoven narra a trajetória de um pássaro conhecido cientificamente como Thraupis Ornata e popularmente como sanhaçu-rei, desde o seu nascimento na Serra do Quebra Cangalha até seu infame destino. O pássaro nasce em um ninho artesanal em uma árvore embaúba e, aos dezoito dias, lança-se para seu primeiro voo ainda com penas acinzentadas. Em busca de alimento, ele acaba caindo em uma armadilha ao tentar comer um mamão e é capturado por humanos junto com outros pássaros.

O conto solenemente narra a inquietação de Dona Quitéria, uma observadora permanente da vizinhança, ao perceber o sumiço de seu vizinho, Sr. Orvílio, e seus trinta cachorros. Inicialmente, ela estranha o silêncio absoluto vindo da casa dele, ao contrário do habitual barulho dos cães e do homem que costumava falar sozinho. Com a ajuda da vizinhança, especialmente da moça Matilda e de uma mulher chique que fornecia ração mensalmente, Dona Quitéria investiga, mas não encontra sinais do Sr. Orvílio ou de seus cães.

O conto Ele é só um menino narra um episódio da vida do protagonista, um entregador de pizzas. No começo, ele chega ao apartamento 83, onde um homem apressado pega a pizza e desaparece para buscar o pagamento. Pressionado pela demora, o entregador relutantemente entra no apartamento, que está repleto de sinais de desordem e uso de drogas. A atmosfera é tensa, com música de Mick Jagger tocando ao fundo. Enquanto o entregador aguarda, um menino mascarado de Batman e armado com um sabre de luz de brinquedo aparece e ignora-o, imerso em suas brincadeiras. O narrador reflete sobre sua vida difícil: um irmão morto em um tiroteio, uma mãe doente em casa e um trabalho mal remunerado. Ele recorda a infância com seu irmão e os problemas que enfrentaram, incluindo o envolvimento do irmão com drogas.

O condenado narra a história de um homem que, após causar um trágico acidente de carro onde duas meninas gêmeas morreram, resolve se isolar em uma velha propriedade rural. Ele chega ao sítio em uma caminhonete, tranca a porteira e estaciona seu veículo em frente à casa, que foi do seu pai. Ao olhar ao redor, ele parece absorver a natureza ao seu redor, como se estivesse se despedindo do mundo.

O conto nossos mortos descreve uma cena doméstica de uma mãe e sua filha preparando e compartilhando o almoço de domingo. A narrativa começa com a mãe cozinhando, verificando a maciez da carne assada e sentindo-se tentada pelo cheiro do tempero. A filha, enquanto isso, arruma a mesa com uma leveza quase poética, criando um ambiente de expectativa e lembrança. A filha inicia uma conversa sobre o pai falecido, lembrando como ele gostava da comida feita pela mãe e os rituais que ele tinha ao comer. A lembrança inclui o modo peculiar como ele preparava seu prato com feijão e farinha, evocando uma memória vívida e carinhosa de um hábito familiar.

O conto Dueto narra a tumultuada e trágica experiência de duas mulheres intercalada entre duas histórias de abandono, violência, e redenção através do amor e da compaixão por animais. Na primeira parte, acompanhamos uma mãe que, em uma noite de desespero, escapa de casa com os filhos e a cadela Nequinha. Papai, furioso, alega que a responsabilidade de levar a cadela é dela, chamando-a de cadela “nojenta.” Ainda presa na dor e no caos emocional, a mãe joga Nequinha para fora do carro em uma estrada solitária. A filha observa, dilacerada pela crueldade do ato e pela compreensão tardia do significado do nome Nequinha, dado pelo pai em um momento de desprezo. Na segunda parte, uma mulher dirige pela estrada e quase atropela um animal pequeno e assustado, que descobre ser uma cadelinha. Ela recolhe a cadela e decide adotá-la, chamando-a Preciosa. O leitor é levado a vivenciar o crescimento da relação entre as duas, desde seu primeiro encontro até a formação de um vínculo profundo. No entanto, Preciosa adoece gravemente de cinomose, uma doença devastadora. O conto descreve a luta desesperada da mulher para salvar a cadela, uma batalha que se mostra infrutífera. Quando Preciosa morre, a mulher, determinada a fazer sentido do sofrimento e do amor que recebeu, começa a resgatar cães abandonados, um para cada dia da luta de Preciosa, como uma forma de dizer "eu te amo" na língua dos cachorros.

Um Instante Infinito de Paz é uma narrativa que começa numa noite calma, onde um pai e sua filha compartilham um momento tranquilo até que ele percebe que ela está com febre alta. Desatento, ele dá dipirona à menina seguindo as instruções da ex-mulher. O pai prepara a filha para dormir, ligando a TV num desenho animado enquanto seus pensamentos vagam por preocupações cotidianas, incluindo a vontade de fumar e a dívida do cartão de crédito. O cenário muda drasticamente quando a menina começa a ter uma convulsão. O pai fica inicialmente paralisado pelo choque e desespero, mas, em seguida, tenta agir rapidamente. Confuso, ele luta para segurar a filha e levá-la ao hospital. A situação é de extrema urgência; enquanto correm, ele enfrenta dificuldades em abrir portas e ligar o carro, mas a adrenalina o impulsiona a seguir em frente.

O Telefonema conta a história de um homem solitário refletindo sobre a difícil tarefa de telefonar para seu irmão com quem não tem contato há anos. A narrativa revela que a família desmoronou após o pai adoecer e morrer, e o irmão mais velho abandonar a casa após um intenso conflito com a mãe por causa de um novo homem que ela trouxe para viver com eles.

O conto "A anônima Maria Auxiliadora de Jesus narra a história de Maria Auxiliadora de Jesus, desde seu nascimento no sertão brasileiro até sua vida adulta. Maria nasceu com dificuldades e foi salva por uma velha parteira. Cresceu em uma família pobre e numerosa, sendo uma criança distinta, introspectiva e imersa em contemplações da natureza. Desde cedo, Maria mostrou-se diferente, admirada pelos irmãos e pais por suas habilidades e comportamentos diversos. Seus primeiros contatos com a escola foram precários e difíceis, mas a professora Benedita Formosa foi quem a introduziu ao mundo das letras. Aprender a ler e escrever abriu novos horizontes para Maria, que descobriu a magia das palavras e sua capacidade de atravessar o tempo e o espaço.

Balada do Impossível, amor através das páginas relata a intensa conexão entre uma personagem de um romance antigo e um leitor. A protagonista, cuja narrativa é contada em primeira pessoa, descreve como foi primeiramente observada por esse leitor. Ele a lê ansiosamente, revelando os detalhes de sua aparência e caráter. A protagonista sente o desejo do leitor e, com o tempo, esta atração se transforma em uma paixão profunda e desesperada.

"Breve Inventário de Pequenas Solidões" é uma obra que reafirma Tiago Feijó como um dos grandes mestres na arte de entrelaçar narrativa e emoção. Cada conto presente na coletânea é um testemunho tocante das solitárias nuances do cotidiano, capturado com uma habilidade literária impressionante. Uma obra que cativará amantes de bons contos e boas doses de reflexão.

Resenha: Libras e surdos: Políticas, linguagem e inclusão, org. Cecília Moura & Desirée De Vit Begrow

APRESENTAÇÃO

Este livro discute sobre o surdo, o universo que o circunda, seus direitos, sua diversidade ou multiplicidade linguística, suas características, as interseccionalidades que o atravessam, os emblemas e os desafios que o constituem e demarcam seu lugar social. Dessa forma, os capítulos abordam aquisição de linguagem, Libras, inclusão, a experiência das famílias e outros temas essenciais para entender melhor esse universo. Organizado por Cecilia Moura e Desirée De Vit Begrow, grandes especialistas na área, a obra é imprescindível para profissionais que estão em interação com surdos, em especial fonoaudiólogos, e também estudantes em formação em saúde e educação. 

Autores: Adriana Di DonatoAlexandre Dantas Ohkawa, Cecilia Moura, Cilmara Levy, Desirée De Vit Begrow, José Carlos de OliveiraKathryn HarrisonLiliane Toscano de BritoMarcio HollosiMariana Isaac CamposNanci Araújo BentoNubia Garcia ViannaPriscila Amorim SilvaRicardo NakasatoRonice Müller de QuadrosSandra Patrícia de Faria-NascimentoSandra Campos e Shirley Vilhalva

RESENHA

O livro organizado por Cecília Moura e Desirée De Vit Begrow  aborda a importância de respeitar e entender o Surdo como um grupo minoritário com direito a uma cultura própria e ser respeitado em sua diferença. Os capítulos discutem questões como políticas linguísticas, aquisição de linguagem, identidade, cultura e comunidade Surda, acessibilidade na saúde, interseccionalidades, entre outros temas relevantes. Os autores destacam a importância de garantir os direitos linguísticos e a inclusão dos Surdos na sociedade, além de promover a formação adequada de profissionais que interagem com essa comunidade. O livro visa ampliar o olhar sobre a pessoa Surda e contribuir para uma sociedade mais inclusiva e respeitosa.

A obra segue abordando a aquisição de linguagem e o contexto linguístico da criança surda na Fonoaudiologia, enfatizando a importância de considerar as especificidades linguísticas do indivíduo surdo. Discute-se a concepção teórica que sustenta a relação do fonoaudiólogo com o sujeito surdo, destacando a Fonoaudiologia Bilíngue para Surdos. São apresentados casos reais que evidenciam as relações entre familiares e crianças surdas, ressaltando a importância da relação dialógica na aquisição da linguagem. São discutidos também os desafios e incertezas em relação ao bilinguismo para surdos, destacando a importância de considerar a LS e o português como línguas igualmente válidas, abordando a aquisição da linguagem e o contexto linguístico da criança surda. Destaca a importância da interação com interlocutores para adquirir a linguagem, combatendo a ideia de que a percepção é o único fator importante nesse processo. Também ressalta a importância do uso da Libras como primeira língua de aquisição do surdo, enfatizando a necessidade de mudanças na forma como o sujeito surdo é encarado e compreendido. Aponta para a necessidade de fortalecer o comprometimento com o sujeito surdo e sua família, enfrentando desafios como a falta de compromisso político e o preconceito da sociedade em relação às minorias.

Os capítulos abordam a importância do intérprete de Libras na intermediação de relações entre pessoas surdas e ouvintes em contextos de educação e saúde. Destaca a luta pela oficialização da Libras, a regulamentação da profissão do tradutor e intérprete de Libras, bem como a formação desses profissionais. Na área da saúde, ressalta as dificuldades vivenciadas por surdos e a importância da presença de intérpretes para garantir o acesso adequado aos serviços de saúde. Já na educação, destaca a necessidade de uma formação específica para os intérpretes que atuam nesse contexto. A reflexão sobre a importância das parcerias entre profissionais da saúde, intérpretes, usuários surdos e familiares, bem como a necessidade de um ambiente propício para o desenvolvimento educacional e social dos surdos, são pontos fundamentais abordados no texto. A busca por uma educação inclusiva e acessível para os surdos é destacada como um desafio que exige constante aprimoramento e especialização dos intérpretes de Libras.


A obra ainda aborda a questão da inclusão do surdo na contemporaneidade, destacando a importância da compreensão de conceitos básicos como diversidade, igualdade e equidade. Discute-se a diferença entre inclusão e integração, evidenciando a necessidade de políticas públicas efetivas para promover uma inclusão verdadeira e não perversa. O capítulo também analisa os desafios enfrentados pelo sujeito surdo na sociedade atual, com reflexões sobre a relação entre avanço tecnológico, identidade surda e a necessidade de quebrar tabus. A obra de Han, "Sociedade do cansaço", é citada para enfatizar a importância de fortalecer o mecanismo de defesa contra o "mesmo do mesmo" e buscar mudanças. Em relação à surdez, destaca-se a importância da educação, saúde e sociedade para todos, bem como a necessidade de criar "anticorpos mentais" para lidar com os desafios impostos pela sociedade contemporânea.

A obra ainda fala sobre uma crise de identidade mundial e um cansaço gerado pelo desempenho imposto pela sociedade atual. Destaca ainda a solidão do esgotamento devido à cobrança de desempenho e analisa a busca pela felicidade nas redes sociais. Reflete sobre a naturalidade de aprender uma nova língua, como a Libras, e propõe uma mudança de estilo na sociedade contemporânea, utilizando o conhecimento como aliado e buscando transformar informações em sabedoria.

Este livro é uma leitura essencial para todos aqueles que desejam entender melhor o universo dos surdos, suas necessidades, desafios e conquistas. Com uma abordagem cuidadosa e respeitosa, os autores nos conduzem através de reflexões profundas sobre a importância da inclusão, da valorização da cultura surda e da promoção dos direitos linguísticos dessa comunidade. A obra destaca a importância de profissionais capacitados e sensíveis, que valorizem a diversidade e lutem pelo respeito e pela igualdade de oportunidades para os surdos. Em suma, este livro é um verdadeiro tesouro de conhecimento e sensibilidade, capaz de abrir nossos olhos para a importância de respeitar e valorizar a diversidade linguística e cultural dos surdos. Uma leitura enriquecedora e inspiradora, que nos convida a agir em prol de uma sociedade mais inclusiva e igualitária para todos.

Resenha: Não existe linguagem neutra: gênero na sociedade e na gramática do português brasileiro, de Raquel Freitag


APRESENTAÇÃO

Está nos jornais, virou conversa de bar e até tema de discursos inflamados de parlamentares: a tal da linguagem neutra ganhou as ruas e há trincheiras a favor e contra. Mas o que é exatamente linguagem neutra? Existe gênero gramatical neutro? E linguagem inclusiva? A escola deve ensinar marcas não binárias? Quais são essas marcas no português? Em um livro fascinante, Raquel Freitag mostra que o português brasileiro está passando por um momento de menor estabilidade, com a regra de uma hegemonia, o masculino genérico, sendo ameaçada. E discute, ainda, como a ambiguidade do adjetivo “neutra” do título do livro permite que diferentes grupos evoquem a sua perspectiva, alinhada ao seu modo de ver e conceber o mundo.

RESENHA

O livro de Raquel Freitag discute a questão da linguagem neutra em relação aos gêneros das pessoas, abordando diferentes formas de expressão como "todos e todas", "todes", "todos, todas e todes", "tod@", "todx", "tods". Mostra como a linguagem reflete e perpetua hierarquias sociais e promove discriminação e preconceito. Destaca a importância da Sociolinguística no estudo das relações entre língua e sociedade, e a influência da ideologia nas escolhas linguísticas. A autora ainda argumenta que não existe neutralidade na linguagem, pois as pessoas expressam quem são e a que grupo pertencem. O texto também explora a presença da discussão sobre linguagem neutra na academia e na sociedade, abordando a importância da diversidade de perspectivas e da popularização da ciência. Por fim, apresenta os capítulos de um livro que reflete sobre a diversidade linguística e os debates em torno da linguagem inclusiva.

A autora discorre sobre a preocupação de parlamentares brasileiros com projetos de lei relacionados à preservação da norma culta da língua portuguesa e à proibição do uso de linguagem neutra, em meio à pandemia de covid-19. Discute a falta de consciência das regras da língua e a percepção da mudança linguística, abordando a necessidade de compreender como o gênero se conforma na sociedade e na língua. Também menciona iniciativas legislativas em outros países relacionadas ao uso de marcas não binárias na linguagem. A percepção das regras da língua é fundamental para a constituição da identidade linguística das pessoas. A consciência sociolinguística envolve conhecer as diferentes maneiras de falar e como isso varia em diferentes contextos sociais. As pessoas têm conhecimentos específicos sobre a estrutura da língua e também sobre aspectos sociais, como variação linguística. A percepção das regras da língua pode ser implícita (observando e inferindo) ou explícita (por meio de correção ou instrução formal). A consciência sociolinguística popular e o prescritivismo influenciam a forma como as pessoas percebem e codificam as regras da língua. E é importante considerar o que as pessoas comuns pensam sobre a língua, pois isso influencia as práticas linguísticas da sociedade.

A autora aborda a questão da linguagem neutra, que não existe de fato, e como a gramática e as normas linguísticas são influenciadas pela sociedade e pelas mudanças sociais. Os especialistas e não especialistas têm visões diferentes sobre as regras da linguagem, o que pode levar a interpretações equivocadas e conflitos. A norma-padrão da língua é uma construção social e histórica, e as mudanças na linguagem podem refletir mudanças na sociedade. Novas formas de referência de gênero na língua são discutidas como uma forma de dar visibilidade a grupos minorizados. A relação entre linguagem e sociedade é abordada como um aspecto importante a ser considerado na análise dos processos de mudança linguística.

Freitag argumenta que a conformação do gênero começa desde a gestação, com a definição do sexo do bebê influenciando em todas as escolhas e expectativas futuras. No entanto, as questões de gênero vão além do binarismo masculino e feminino, exigindo a separação entre sexo biológico e gênero social. Movimentos como o feminismo de terceira e quarta onda buscam expandir as noções de gênero, permitindo identidades diversas e fluidas. A luta contra o sexismo e a hierarquia heterocisnormativa se reflete na linguagem, com debates sobre a inclusão e a representação precisa de gênero na sociedade. A autora aborda as diferenças atribuídas ao gênero social para explicar comportamentos linguísticos de homens e mulheres, apresentando diferentes perspectivas teóricas sobre a relação entre linguagem e gênero. Discute-se a linguagem das mulheres como um "sexoleto", com características como vocabulário específico, adjetivos vazios e uma entonação interrogativa. Explora-se também a dominância masculina na linguagem, destacando diferenças na interação entre homens e mulheres. Além disso, são apresentadas abordagens que analisam a fala feminina não como uma questão de opressão, mas como estratégias linguísticas próprias das mulheres, demonstrando características como colaboração e cooperação na comunicação. Por fim, discute-se a construção discursiva e dinâmica de gênero, considerando a identidade de gênero como uma construção social.

Raquel Freitag aborda a questão do gênero gramatical na língua portuguesa e em outras línguas, mostrando como a necessidade de atribuir um gênero gramatical a palavras não está necessariamente ligada ao sexo ou ao gênero das pessoas ou objetos referidos. Ele também discute as diferentes manifestações do gênero gramatical em diferentes línguas e dentro da mesma língua, bem como a relação entre gênero gramatical e gênero referencial, sexual, civil e identitário. O texto aponta para a necessidade de reconfiguração das regras gramaticais em relação ao gênero, especialmente no que se refere à inclusão de pessoas que não se identificam com o binário de gênero masculino e feminino. Ele destaca a importância da mudança nas gramáticas como reflexo das mudanças na sociedade em relação ao gênero.

A obra de Raquel Freitag apresenta uma abordagem profunda e abrangente sobre a linguagem neutra e a relação entre língua e sociedade. Ao explorar diferentes formas de expressão e discutir a influência da ideologia na escolha linguística, a autora destaca a importância da Sociolinguística no entendimento das relações de poder e discriminação presentes na linguagem. Além disso, a autora promove a conscientização sobre a necessidade de reconhecer e respeitar a diversidade de identidades de gênero, estimulando reflexões sobre a forma como a linguagem pode reproduzir e reforçar estereótipos prejudiciais.

Por meio de uma análise cuidadosa e aprofundada, Freitag evidencia como a linguagem reflete e influencia as estruturas sociais, ressaltando a importância de congregar diferentes perspectivas e vozes na discussão sobre linguagem inclusiva. Sua obra não apenas denuncia as formas de discriminação presentes na linguagem, mas também sugere caminhos e possibilidades para a construção de um discurso mais equitativo e respeitoso com as diversas identidades de gênero. Dessa forma, o livro de Raquel Freitag se destaca não apenas como uma contribuição relevante para os estudos linguísticos, mas também como um manifesto pela diversidade e pela igualdade de direitos linguísticos e sociais.

José Olympio relança "Lampião", obra de estreia de Rachel de Queiroz

Rachel de Queiroz, já uma romancista consagrada, decidiu aventurar-se na dramaturgia. Enfrentando o desafio de frente, ela abordou a história de vida de Virgulino Ferreira da Silva - o bandido que liderava a mais famosa gangue de cangaceiros do Nordeste brasileiro - com o peso dramático e a urgência social que sempre foram sua paixão como escritora. Lampião rapidamente se tornou uma figura única no imaginário popular; seus trajes de cowboy típicos dos jagunços (homens armados) dos anos 1920, juntamente com suas poses imponentes projetadas através de fotografias e até mesmo seus óculos de aros finos, considerados raros para pessoas comuns naquela época, faziam parte dessa persona mítica que ele encarnava apesar de ser cego em um olho.


Ao revisitar suas referências mais próximas, Rachel de Queiroz desconstruiu seu retrato corajoso e ocasionalmente frágil do icônico Lampião. Seu personagem principal desafia o governador da região sertaneja a ceder poder, mas também se sente atento diante dos perigos iminentes, buscando proteção espiritual em seu Padrinho Padre Cícero - uma figura religiosa muito prestigiada no Nordeste brasileiro. A peça de Queiroz apresenta Corisco como um bandido talentoso que permanece leal à causa de Lampião e Maria Bonita (introduzida inicialmente como Maria Déia), que abandona marido e filhos para ser esposa do Rei do Cangaço acompanhando-o inclusive na guerra armamentista.

Em 1954, Lampião estreou nos palcos. Houve duas produções notáveis: uma em São Paulo, no Teatro Leopoldo Fróes, dirigida por Sérgio Cardoso (que também interpretou Lampião), com Araçary de Oliveira como Maria Bonita; e outra no Rio de Janeiro, no Theatro Municipal, dirigida por Bibi Ferreira e com Elísio de Albuquerque no papel principal.

Este volume especial traz o projeto gráfico da primeira edição de Lampião, lançada em 1953 pela Livraria José Olympio Editora. Na capa, Lampião e Maria Bonita são ilustrados por Tomás Santa Rosa, icônico artista gráfico responsável por projetos editados por José Olympio na década de 1950. O antigo estilo de impressão é replicado usando fontes móveis no mês que vem. Portanto, esta nova edição de Lampião celebra o texto meticulosamente elaborado por Rachel de Queiroz que retornou a um público mais amplo na hora certa.

O universo assustadoramente palpável das IAs em 'Alena existe', de Roger Dörl

APRESENTAÇÃO

A vida no Masterverso oferece tudo que se possa imaginar, e o mundo unificado pela evolução tecnológica alcançou finalmente a paz. Vivendo no conforto e segurança da sua casa, Alena não tem razões para ser atormentada por pesadelos ou alimentar questionamentos perturbadores sobre a realidade. Uma série de eventos estranhos, porém, está prestes a lançá-la em uma jornada sem volta, em que ela será defrontada com o que há de melhor e pior em si mesma e na humanidade. Alena existe acrescenta à ficção científica uma boa dose de aventura, mistério e fantasia, ao mesmo tempo em que traz uma profunda reflexão sobre a realidade em que vivemos e os rumos que vamos tomando junto às novas tecnologias.

RESENHA

"Alena Existe", livro de estreia de Roger Dörl, publicado pela Ases da Literatura, apresenta um cenário ao mesmo tempo familiar e desconhecido. Familiar, pois estamos de certa forma familiarizados com os tópicos da evolução digital; desconhecido, pois ainda somos leigos sobre o impacto que a inteligência artificial pode causar no mundo físico, as consequências e as mudanças radicais que podem transformar o universo como o conhecemos. O enredo de Dörl nos convida a pensar além: e se as máquinas pudessem agir por vontade própria? O que o mundo enfrentaria? Esta é a premissa básica de um enredo eletrizante onde o mundo retratado revela como a realidade virtual substituiu quase inteiramente o que chamamos de “mundo real”. Os personagens interagem com mais frequência através de um universo alternativo conhecido como Masterverso do que com suas vidas concretas reais. A história contada no livro é a de Alena, uma moça apaixonada por aventuras e que tem como passatempo principal o montanhismo. Contudo, ela fica preocupada ao perceber que as interações do mundo real estão se tornando cada vez mais escassas dentro do Masterverso.Dessa forma, ela passa seus dias envolvidos em simulações de montanha, sempre acompanhada por tutores e psicólogos responsáveis ​​pela avaliação de suas emoções como alegria, insatisfação ou raiva nesse mundo. Um dia, uma estranha ocorrência ocorre quando um erro de simulação dentro do Masterverso faz contato com um mundo completamente desconhecido. 

Anton continuou, explicando que a investigação seria feita, mas que era difícil acreditar na história de Alena sem evidências concretas [...] Decidida a não desistir, Alena pegou seu celular e ligou para um amigo hacker, pedindo sua ajuda para encontrar evidências do que tinha vivido na noite anterior. Ela sabia que a verdade estava lá fora, e estava determinada a encontrá-la, custe o que custasse.

Com o tempo, o mundo foi se transformando de tal forma, que, o contato físico entre as pessoas era considerado desnecessário, fazendo com que a natalidade e as relações sociais fossem drasticamente reduzidas, provocando uma queda significativa durante a transição da vida física para transição do VR na sociedade, nas relações afetivas, no controle de natalidade, dentre outros aspectos. O livro também reflete na falsa ideia de contato entre as pessoas que se identificam apenas com avatares no meio virtual, o que ocasiona em uma série de laços sem afeto ou vínculos significativos. Uma prova da ausência de contato e laços emocionais é a própria vida de Alena, que, em primeira instância, ainda que não se considerasse, era extremamente solitária, sobretudo, por sua rotina latente no universo do masterverso.

O enredo intrincado de "Alena Existe" aborda questões cruciais do mundo contemporâneo, como as implicações sociais e psicológicas da realidade virtual e inteligência artificial. O que nos leva à uma teia de intrigas e investigações acerca da funcionalidade do universo digital criado pelas realidades virtuais; bem como as relações artificiais e limitadas criadas em um universo regrado à belezas deslumbrantes, locais indescritíveis e emocional à flor da pele. Alena não é apenas uma figurante central, ela é a responsável por investigar jogadores da rede de intriga dentro de uma realidade extremamente delicada enquanto aproveita os poucos momentos enquanto não se é descoberta.

A ideia principal e mais problemática do enredo são as vidas vividas quase, que, exclusivamente através do universo das IAs, o que ocasiona em uma tensão entre o real e o imaginário dentre belezas exuberantes e poderes fantásticos, sempre, claro, acompanhados de um tutor que os auxilie neste processo 'doloroso' envolvendo as questões e emoções humanas. E é neste universo vasto entre o virtual e o real, que se desenvolve um crime que ocorre no mundo tangível e Alena se vê no centro das investigações, uma aventura cheia de surpresas se inicia, levando a uma profunda reflexão sobre a existência humana e as responsabilidades que temos diante das novas tecnologias.

"Alena Existe" é uma obra surpreendente que nos faz refletir sobre a nossa própria relação com a tecnologia e o impacto que ela pode ter em nossas vidas. O autor, Roger Dörl, cria um enredo envolvente que mistura realidade e ficção de forma brilhante, abordando questões atuais e nos conduzindo por uma jornada emocionante e tensa. A personagem de Alena é complexa, nos fazendo questionar sobre o que é real e o que é virtual, e nos levando a refletir sobre as consequências de nossas escolhas e a importância do contato humano e das relações reais. Sem dúvida, "Alena Existe" é um livro que merece destaque e que vai conquistar os leitores que buscam uma leitura instigante e provocadora.

Resenha: Um jeito de recomeçar, de Filipe Salomão

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Caroline, após perder os pais em uma tragédia, decide se reerguer e encontrar consolo viajando para uma pousada, onde busca se reconectar consigo mesma. Durante sua estadia, ela conhece Berta, Estela, Chico, Augusto, Vavá e Conrado, e embarca em uma jornada de descoberta pessoal enquanto se envolve em um romance.

RESENHA

Carol, antes Caroline, perde seus pais em um caso de assassinato seguido de suicídio. Após a tragédia, ela decide se chamar apenas Carol e se vê confrontada com a necessidade de recomeçar do zero, abandonando a vida de luxo e aparências.  Carol, decide fugir de sua vida passada e busca recomeçar em uma pousada isolada na praia. Ao chegar, é recebida pelo dono da pousada, Seu Vavá, que a hospeda e a apresenta aos outros hóspedes e funcionários. Ela se aproxima de Chico, um pescador local, e aprende a pescar com ele. Conhece também Gustavo, um hóspede que foge de problemas familiares. Durante sua estadia, Carol reflete sobre seu passado e tenta se reconectar consigo mesma. A pousada se torna um refúgio para ela, onde encontra acolhimento e novas perspectivas. Ao conhecer os diferentes personagens, Carol começa a se abrir e a transformar sua visão sobre sua vida.

Após um dia de sol na praia, acaba em uma aula de surfe improvisada. O professor, Augusto, ensina passo a passo os fundamentos do surfe, mostrando-se habilidoso e apaixonado pelo mar. Augusto oferece a aula e, de forma inesperada, um surpreendente Carol com um beijo como pagamento simbólico. Ela acaba se envolvendo com Chico, um pescador local, e seu filho Augusto durante sua estadia na pousada de dona Berta. Chico revela a Carol que sua esposa, Heloisa, o abandonou há 10 anos, deixando-o com o filho. Ele ainda tem esperanças de que ela volte um dia, mesmo sabendo que ela foi embora com um turista da região. Carol se solidariza com Chico e tenta confortá-lo, mas percebe que, apesar da aparente harmonia entre pai e filho, as relações naquela família eram complicadas.

Foto: Arte digital

Durante o dia, Carol pesca com Chico e Augusto, mas acaba se divertindo mais com a limpeza do peixe na cozinha da pousada. Dona Berta prepara um almoço com os peixes pescados por eles, e todos se reúnem para comer juntos, quase como uma família. No entanto, a presença de Conrado e Estela, outros hóspedes da pousada, traz uma tensão ao ambiente. Apesar dos momentos de desconforto, Carol se sente feliz por encontrar seu quarto perfeitamente arrumado após a bagunça que deixou, e reflete sobre a felicidade e observando a dinâmica contraditória do mundo. 

A tensão começa a se desenvolver mais fortemente quando Carol é convidada por Augusto para participar de um luau, onde acaba se envolvendo em uma situação desconfortável com um rapaz que tenta abusar dela sexualmente. Augusto a defende e a salva, revelando seus sentimentos por ela. Mesmo assim, com o passar dos dias, ela começa a se sentir deslocada e começa a compreender de alguma forma os sentimentos de solidão que ela enfrentava com frequência, fazendo-a compreender que, deve se atentar para evitar a solidão na qual ela mesma se colocava. 

A narrativa segue com Carol e Conrado, no qual ela questiona o relacionamento dele com sua esposa, acusando-o de não ser capaz de satisfazê-la. Carol se propõe a ser a amante de Conrado, destacando as diferenças entre uma mulher e uma amante. Ela  então cria um clima de tensão ao confrontar Conrado sobre sua vida pessoal e sexual, insinuando que ele não é capaz de dar prazer à esposa e que ela poderia ser uma opção mais satisfatória.  

Foto: Arte digitasl

Carol acaba se tornando vítima de sua sensualidade envolvendo Augusto e Conrado, gerando uma discussão e confronto com Estela, que a acusa de manipular ambos. Chico, por sua vez, intervém pedindo à Carol que se afaste de seu filho, temendo que ela traga mais problemas do que soluções. O enredo segue uma trama de mistérios que ocasiona na morte de um personagem com um aliado impensado. 

No geral, "um jeito de recomeçar" é uma leitura que aborda questões universais como superação, perdão, amor e redescoberta pessoal. A obra nos convida a refletir sobre nossas próprias trajetórias e a importância de buscar a verdadeira felicidade e autenticidade com boas doses de romance e luto que se entrelaçam na dissolução de um caso latente de depressão. Um enredo imprevisível e interessante.

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Traiu ou não traiu? Uma análise do enredo de Dom Casmurro, de Machado de Assis

Foto: Centro educacional Leonardo Da Vinci



Publicado em 1899 pela Livraria Garnier, Dom Casmurro é um dos livros mais aclamados da escrita de Machado de Assis. Escrito originalmente para ser lançado como livro completo - diferentemente das demais obras do autor que eram divididas em capítulos -, completa a trilogia realista composta também por Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba.

A história é narrada pelo personagem principal, Bento Santiago, que cria um paradoxo ao escrever sobre sua juventude em velhice (54 anos). Ele comenta suas experiências na casa do Engenho Novo onde morava e as aventuras vividas lá. Também fala sobre a época de sua vida no seminário e como conheceu seu melhor amigo Ezequiel. Além disso, ele menciona o amor incondicional por Capitu que era mais humilde vizinho dele... No entanto esse foi também o motivo da raiva futura sentida por ela!

A quebra da monotonia nos contos de adultério de Machado de Assis é representada pelo fato do narrador ser Bentinho (Bento Santiago), cuja motivação é advém do sentimento nocivo e ciumento.

Na infância, Bento Santiago frequentou um seminário devido a uma promessa feita por sua mãe viúva. Embora não tivesse decidido para o assunto, ele aceitou seu destino e aprendeu na esperança de se tornar um clérigo no futuro. Foi lá que conheceu Ezequiel de Sousa Escobar, filho de um advogado curitibano com quem fez amizade e juntos decidiram abandonar o seminário.

Após ser libertado e influenciado pela presença de Ezequiel, Bentinho se forma em Direito em São Paulo, e sua relação com Capitu só se intensifica. Como resultado, os dois eventualmente se casam. Enquanto isso, Ezequiel torna-se um comerciante excepcional e casa-se com uma amiga de Capitu: Sancha; juntos têm uma filha a quem carinhosamente chamam de Capitolina (nome verdadeiro de Capitu). Na mesma época em que isso acontece, Capitu e Bentinho também têm um filho que deram o nome de Ezequiel.

As famílias dos amigos moravam próximas e tudo ia bem. No entanto, em 1871, Escobar morreu afogado tragicamente, apesar de ser um excelente nadador. Durante o funeral, Bentinho percebeu a profundidade com que Capitu olhava para o falecido: "Houve um momento em que os olhos de Capitu se fixaram no morto como os de uma viúva [...], assim como as ondas quebram na praia tentando engolir o que aquela manhã nadador."

É a partir desse momento que Bentinho começa a desconfiar da infidelidade da esposa. A única lágrima que cai dos “olhos ciganos” de Capitu no funeral parece culpada, arrependida e apaixonada.

A trama principal do romance se torna clara. Bento apresenta ciúmes incontroláveis ​​conforme seu filho (Ezequiel) cresce e traços cada vez mais semelhantes ao amigo falecido acidentalmente a aparecer nele.

Nesse instante, o avanço alcançou seu ápice: Ele chegou à conclusão de que Capitu havia traído-o com seu melhor amigo, sendo Ezequiel a prova disso. Como consequência, ele mandou ambos para a Europa e lá perdeu suas vidas alguns anos depois.

Ao término de sua existência, Bentinho é visto como uma pessoa amargurada e isolada. Devido ao fato de preferir escrever durante suas viagens ferroviárias a interagir com os demais passageiros, ele passou a ser chamado de Dom Casmurro, nome que viria acompanhado da conversa pouco animada descrita acima. Aos poucos seus vizinhos e amigos o conheceram por este pseudônimo enquanto residiam no Engenho Novo na Rua Matacavalos antiga.

Uma análise da obra

Uma vez que o autor e a história já são conhecidos, é sensato realizar uma análise crítica da obra apresentada. Dom Casmurro é considerado a principal obra realista de Machado de Assis em conjunto com outras duas histórias semelhantes. A linguagem utilizada por Machado é culta dentro das normas do português (considerada muito elevada para grande parte da população) e contém elementos metalinguísticos, intertextuais, pessimismo e ironia. Para os leitores ávidos, este se trata de um livro silencioso para ser lido por vontade própria porque sua narrativa flui divertidamente com excelente estruturação na construção dos personagens. Entretanto há aqueles que apenas lêem livros obrigatórios escolarmente referendam este trabalho como sendo algo sublime mas suavizado quando comparando-se ao estilo Eça; no entanto sabemos que o gosto varia entre as pessoas individualmente desta forma não se pode generalizar tal assertiva sobre obras literárias refletindo meras opiniões pessoais.


Bento Santiago, personagem principal, também é o narrador da história. Esse fato fica evidente logo no primeiro capítulo deste livro.

“Recentemente, em uma viagem noturna da cidade ao Engenho Novo, encontrei num trem da Central, um jovem deste bairro que reconheço de vista e de chapéu.”

Na narrativa de "Dom Casmurro", o Narrador Personagem é quem relata todos os acontecimentos, pois faz parte da história. Com isso, vemos as situações por meio do ponto de vista de Bentinho e suas interações com personagens marcantes como Capitu e Ezequiel.

O tema principal de Dom Casmurro é baseado no sentimento incontrolável de ciúme experimentado por Bentinho em relação à sua esposa. Tal sensação acaba se tornando o foco central da narrativa, como podemos observar na passagem: "Finalmente chegou a hora do enterro e partida. Sancha queria despedir-se do marido e aquela cena devastadora entristeceu todos os presentes. Muitos homens choraram também, assim como todas as mulheres. Somente Capitu parecia conseguir conter suas próprias emoções enquanto apoiava a viúva e tentava tirá-la dali abruptamente para fora daquele ambiente agitado. Tudo estava confuso ao redor mas mesmo assim Capitu fixou seu olhar sobre o cadáver durante alguns momentos tão intensamente apaixonados que não surpreenderia ninguém se algumas lágrimas furtivas caíram pela face dela...”

Outro tema significativo é a suposta traição, característica atribuída ao desenvolvimento humano.

Conforme já mencionado, o Realismo Machadiano é o movimento literário predominante na obra Dom Casmurro. Podemos notar a abordagem pessimista e irônica que Assis utiliza por meio do personagem narrador Bentinho em determinadas passagens:

Não consulte dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que lhe dão, mas sim na forma como foi apresentado como um rótulo para alguém silencioso e introvertido. O título Dom surgiu ironicamente, deixando-me com ar de nobre. Tudo porque eu estava cochilando! Eu não poderia encontrar um título melhor para minha história – se não houver outro até o final do livro, então este será suficiente. Meu poeta ferroviário sabe que não guardo rancor dele. E com apenas um pequeno esforço de sua parte para criar seu próprio título, ele pode até acreditar que este trabalho será verdadeiramente sua própria criação algum dia, em breve. Existem livros que levam apenas os nomes de seus autores; alguns dificilmente conseguem tal conquista.”

"A definição de que José Dias deles havia dado, 'olhos de cigana oblíqua e dissimulada', me veio à mente. Eu não sabia o significado exato de obliqua, mas entendia o sentido por trás da palavra dissipulada, então decido verificar se essa descrição também poderia ser aplicável."

Ao longo do livro, é oferecida a presença de intertextualidade que faz referência tanto à obra de Schopenhauer quanto à peça Otelo, escrita por Shakespeare. O personagem Bentinho não busca esclarecer suas dúvidas sobre as atitudes do protagonista Capitu e se deixar levar pelo ciúme puro. Isso ilustra como a imaginação pode desencadear sentimentos mundanos associados à inferioridade masculina.

No capítulo 72, a intertextualidade com a tragédia de Shakespeare; Otelo é retomado para introduzir uma reforma dramática na trama. No entanto, Assis optou pelo caminho tradicional em sua continuação do drama realista.

Dom Casmurro não se arrisca a ser transparente, e às vezes sua ansiedade beira uma crise de nervos, chegando até mesmo a ter impulsos agressivos em relação a Capitu.

O livro apresenta excelentes trabalhos em cada elemento, mas é a irresponsabilidade do final deixado por Machado de Assis que confere encanto e perfeição à obra que acabou culminando em uma série de análises acadêmicas, filmes e livros variados atribuídos aos sentimentos de seus personagens, se tornando o livro mais conhecido ao redor do globo e um dos mais editados do mundo.

Conclusão

Depois de ler Dom Casmurro e conhecer a metodologia de Machado de Assis, bem como sua história pessoal, podemos perceber certas conexões entre as razões para descrever elementos de maneiras particulares. Apesar de não ter nascido rico e ter testemunhado a transição do Brasil de império para república durante seu sistema político, ele viveu uma época complicada. Embora possa parecer distante agora, percebo claramente como a realidade não alterou o seu ponto de foco.

Com que frequência vemos problemas como desonestidade, traição e sentimentos hediondos que levam a atos terríveis na televisão todos os dias? E quantas vezes ficamos decepcionados com alguém que amamos – sejam nossos filhos ou pais, marido ou esposa, irmãos – quer sejam conhecidos por nós ou não? Os relacionamentos são construídos sobre uma base de desconfiança que não pode ser negada, pois é uma parte inata da natureza humana. A sociedade em 1899 era exatamente a mesma que temos agora! Machado de Assis retratou a descrição da humanidade com tanta maestria que os pilares da nossa moral permanecem precisamente inalterados!

Ao ser o narrador da história, o protagonista é capaz de nos apresentar sua própria perspectiva e permite que nossa imaginação flua livremente; assim como ele mesmo experimentou esse processo. Como humanos, temos a capacidade empática de compartilhar sentimentos semelhantes aos outros, pois já surgiram por situações semelhantes em nossas vidas.

No capítulo CXIII, encontramos um exemplo dessa situação particular em que o narrador começa a suspeitar de Capitu. Esta última se recusa acompanhar seu marido ao teatro alegando estar doente. Bentinho acaba por ir sozinho e retorna para casa no final do primeiro ato somente para encontrar Escobar no corredor de sua residência... A forma como esse episódio é descrita pelo autor transpira ironia gelada deixando espaço à interpretação pessoal dos leitores sobre possível conexão entre mal -estar sentido pela esposa com visita surpresa do amigo. É natural que tomemos partido de Bentinho já que este possui voz na história; não temos ideia de alguma motivação ou perspectivas ligadas aos personagens secundários citados (Capitu, Ezequiel ou Sancha). Não podemos esperar surpresas brechas informativas também!

Ao longo dos anos, a mente de Bentinho foi envenenada por alguém que não possuía boas intenções - um indivíduo chamado José Dias. Este rapaz ciumento teve sua vida e o protagonista Capitu infernizado pelo manipulador, responsável por semear discórdia no coração do herói nem tão renomado assim.

Eu o chamo de herói porque, ao contrário dos reis romanos mencionados no início do livro - aqueles que eram conhecidos como assassinos de suas esposas -, ele apenas invejou sua esposa e filho para a Europa antes de morrer sozinho. Pelo menos Bento Santiago foi diferente de Vilela (do conto A Cartomante), que assassinou sua esposa e melhor amigo enquanto Camilo mantinha um caso com ela.

Frequentemente, a obra literária de Machado de Assis aborda conflitos amorosos complexos, atitudes adúlteras e mortes. Também são retratados sentimentos egocêntricos e o desejo de isolamento social...Possivelmente porque esses temas refletem experiências que muitas pessoas enfrentam diariamente. É identificar em cada um de nós personagens como Bentinho, Brás Cubas e Quincas Borba pois somos seres humanos com vivências semelhantes profundas descritas na obra possível do autor brasileiro renomado..

Esse é exatamente o cerne de Dom Casmurro. Uma emoção humana que o corrompeu profundamente.

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Maldito invento dum baronete: Uma breve história do jogo do bicho, de Luiz Antônio Simas

Foto: Arte digital / Post Litera

APRESENTAÇÃO

Luiz Antonio Simas já se tornou um clássico da historiografia carioca. Seu olhar se volta preferencialmente para os espaços mínimos, miudinhos, que constituem a dimensão mais humana da História. Neste Maldito invento dum baronete, Simas investiga as origens e o desenvolvimento do Jogo do Bicho, não pela óptica usual, aquela que privilegia a contravenção ou o crime — mas numa perspectiva inovadora, que compreende o Jogo como elemento fundamental da cultura popular, integrada ao complexo metafísico que envolve o Samba, o Futebol, as Religiões de Terreiro, os modos de ser e fazer da nossa inestimável herança afro-indígena.
Alberto Mussa

Arte: Morula Editorial

Intelectual ousado, pesquisador sagaz, observador participante, pensador dos mitos, ritos, práticas e idiossincrasias cariocas, Luiz Antonio Simas nos traz com esta publicação reflexões sobre uma das obras mais significativas da vida da mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: o jogo do bicho. Estamos falando de uma obra que busca no passado elementos para continuar se debruçando sobre a ex-capital da República, livre das amarras das normas, dos jargões e das hipocrisias acadêmicas, mas encantado pelas dobras, frestas e esquinas.
Felipe Magalhães

RESENHA

Luiz Antonio Simas é um renomado historiador carioca, cujo olhar privilegia os espaços mínimos que compõem a dimensão mais humana da História. Em sua obra "Maldito invento dum baronete", Simas investiga as origens e o desenvolvimento do jogo do bicho de forma inovadora, integrando-o à cultura popular e à herança afro-indígena que caracterizam o Rio de Janeiro. Com uma abordagem ousada e sagaz, o autor nos convida a refletir sobre as múltiplas facetas desse jogo, que vai além da contravenção e do crime, tornando-se um elemento fundamental da identidade carioca. Em vinte e cinco capítulos envolventes, Simas nos leva por uma jornada histórica fascinante, desafiando as normas acadêmicas e revelando as complexidades das ruas, vielas e esquinas da cidade. É uma obra que certamente encantará e provocará reflexões sobre a cultura, a história e a essência da Cidade Maravilhosa.

O autor apresenta reflexões sobre o jogo do bicho, uma das obras mais significativas do Rio de Janeiro, em um olhar ousado e sagaz. Ele aborda a história sem amarras acadêmicas, explorando as idiossincrasias cariocas. Como historiador das ruas, ele desafia as normas acadêmicas e se encanta com as dobras e esquinas da ex-capital da República, livre das hipocrisias. O livro não se limita a contar a história do jogo do bicho, mas busca elementos do passado para continuar explorando a cidade, desafiando as salas de aula e se aproximando do trabalho dos bicheiros. A obra convida o leitor a escolher entre grupo, centena ou milhar, desejando boa sorte.

O livro explora as razões que levaram o jogo do bicho a ser proibido, destacando o contexto social e histórico do Rio de Janeiro do final do século XIX. Ao longo de vinte e cinco capítulos, a obra aborda as múltiplas facetas do jogo do bicho através dos animais que formam os grupos da loteria. O objetivo não é esgotar o tema, mas sim provocar reflexões e apresentar um material acessível, não acadêmico, para diversos públicos interessados. O autor destaca a importância histórica do jogo do bicho na formação da cidade do Rio de Janeiro, ressaltando que é impossível contar a história da cidade sem mencioná-lo.

O livro se divide em capítulos que explanam de forma categórica e minuciosa os animais relacionados ao jogo do bicho. Cada nova representação vem acompanhada da história do universo do jogo do bicho em paralelo à história do Rio de Janeiro e o desenvolvimento das jogadas numa esfera político-social como parte da construção da identidade de um povo.

Avestruz

No ano de 1892, o governo do presidente Floriano Peixoto tentou adiar o carnaval no Rio de Janeiro devido à insalubridade da cidade, mas a população não aceitou e acabou celebrando a festa tanto em junho quanto em fevereiro. A elite republicana buscava modernizar a cidade, reprimindo os pobres e removendo cortiços. Além disso, tentavam apagar as referências culturais africanas, como a capoeira. Em meio a essas tensões, o Jardim Zoológico de Vila Isabel foi reinaugurado com novidades, causando impacto na cidade. O episódio representou uma mudança significativa na história do Rio de Janeiro.

Águia

No universo simbólico, a águia é vista como um ícone de força e grandeza. Utilizada por diversos impérios, desde os antigos persas até a "Grande Armée" de Napoleão Bonaparte, a águia é associada à guerra, conquistas e audácia. O Barão de Drummond foi comparado a uma águia majestosa, símbolo de pessoas inteligentes e ousadas. A genealogia da família Drummond é marcada por reviravoltas, desde a Hungria até Portugal e, finalmente, ao Brasil, onde se estabeleceram em Minas Gerais.

O poeta Carlos Drummond de Andrade descreve a vida do Barão em detalhes, destacando suas contribuições para a cidade do Rio de Janeiro, como a criação da Vila Isabel. A narrativa popular do jogo do bicho, inventado pelo Barão para salvar o zoológico em dificuldades financeiras, contrasta com a perspectiva do historiador Felipe Magalhães, que destaca o lado empreendedor e capitalista do Barão. A criação do jogo do bicho foi uma estratégia para atrair visitantes para a Vila Isabel e impulsionar os negócios imobiliários no bairro.

O Barão de Drummond tentou alcançar o sucesso como uma águia no céu da sorte, mas acabou associado a um dos jogos mais populares do Brasil. A história do Barão revela as complexidades e contradições de sua época, misturando mito e realidade em torno de sua figura.

Burro

No contexto do jogo do bicho criado no zoológico do Barão de Drummond, a perspicácia de alguém levou a popularização do jogo ao vender os bilhetes fora do parque. Isso resultou em um crescimento descontrolado do negócio, com bilhetes sendo vendidos em diversos locais da cidade. O jogo do bicho, por sua vez, alimentou o amor das pessoas pelas loterias, consolidando-se como uma tradição enraizada na cultura local.

Borboleta

No colégio, aprendemos que as borboletas passam por quatro etapas em suas vidas: ovo, lagarta, crisálida e adulta. A transição da lagarta para a borboleta é completamente diferente, seguindo o processo de metamorfose completa conforme ensinado pelos professores de biologia. A metamorfose das borboletas exemplifica como um animal pode se transformar significativamente em diferentes fases da vida, de forma semelhante ao jogo do bicho.

A diversão originalmente planejada para capitalizar o zoológico de Vila Isabel e contribuir para o desenvolvimento de um bairro elitista, seguindo padrões europeus, promovendo especulação imobiliária e fluxo de capital na cidade moderna. Esta iniciativa, em parceria com o poder público que permitiu ao Barão de Drummond explorar o jogo legalmente em seu parque, foi um grande sucesso. No entanto, o jogo começou a se expandir quando os bilhetes passaram a ser vendidos além dos limites do jardim, resultando na saída da borboleta do casulo, pronta para voar.

As razões para a popularidade do jogo são diversas, desde a simplicidade até o apelo emocional gerado pelos animais, que criou um vínculo mais forte com a população do que as tradicionais loterias numeradas. Não se pode ignorar o fato de que o Rio de Janeiro sempre teve afinidade com jogos e loterias, mesmo antes do surgimento do jogo do bicho.

Cachorro

Durante grande parte da história da República, os cachorros de rua sem raça definida e sem registro de propriedade não eram bem-vindos na cidade do Rio de Janeiro por parte da população que aspirava a uma vida mais europeia. Eram perseguidos e recolhidos pela temida carrocinha da Inspetoria de Higiene e, muitas vezes, sacrificados. A carrocinha até inspirou uma música infantil que lamentava sua ação.

Nesse contexto de luta entre disciplina e desordem, civilização e barbárie, raças puras e vira-latas, a proibição do jogo do bicho se concretizou. Em 1895, menos de três anos após o início do jogo no zoológico de Vila Isabel, o Decreto nº 113 proibiu os sorteios. O jogo, que era inicialmente uma diversão da elite carioca, foi visto como um vício que precisava ser eliminado.

A proibição dos sorteios no zoológico levou a uma série de medidas legislativas que visavam reprimir o jogo do bicho, incluindo penas de prisão para quem promovesse rifas ou loterias sem autorização. A repressão ao jogo do bicho fazia parte de um contexto mais amplo de modernização na América Latina, que visava conter práticas populares em nome dos "bons costumes". O jogo do bicho foi progressivamente restringido por leis que definiam o que era lícito e ilícito, proibiam loterias com símbolos e figuras e estabeleciam penas de prisão para os envolvidos em jogos de azar. A legislação para reprimir o jogo do bicho estava em vigor desde a proibição dos sorteios no z.

Cabra

A agilidade das cabras é impressionante, sendo as únicas ruminantes capazes de subir em árvores. Curiosas e serelepes, possuem notável facilidade para escapar de cercados onde estão confinadas. Se forem limitadas por cercas que possam ser puladas, certamente irão se libertar e explorar o mundo. O confinamento do jogo do bicho aos limites do zoológico de Vila Isabel foi breve. A proibição do jogo no local em 1895 não impediu que o jogo escapasse para as ruas da cidade. A venda dos bilhetes na rua do Ouvidor indicou o que viria a acontecer em breve. A popularidade do jogo se espalhou rapidamente pelas ruas, por motivos diversos que vão além de apenas ganhar dinheiro com facilidade. A adesão imediata da população ao jogo foi retratada por Machado de Assis e Olavo Bilac, em 1895.

Carneiro

Os carneiros selvagens vivem em grupos, escapando dos predadores e buscando se manter aquecidos durante o mau tempo. Em cada grupo, um macho maduro assume a liderança, utilizando sua força se necessário. Sempre alertas aos predadores, podem fugir para locais altos ou lutar contra as ameaças, mostrando força suficiente para lançar lobos adultos dos penhascos. Essas características dos carneiros selvagens podem ser comparadas com diversos personagens envolvidos no jogo do bicho, que buscam escapar das intempéries de participar de uma loteria ilegal.

A dificuldade em efetuar prisões de envolvidos no jogo do bicho era evidente, como mostrado em um relato de 1900. Mesmo com a suspeita de participação na atividade, a ausência de provas concretas dificultava a manutenção das prisões. Isso gerava disputas pelo controle das apostas, muitas vezes resultando em confrontos e conflitos pelo domínio dos territórios de apostas.

Camelo

Nas culturas ocidentais, o camelo é visto como um animal exótico e estranho, mas para as culturas da península arábica e dos povos berberes do norte da África, ele é considerado bonito, forte e resistente. Capaz de sobreviver em condições difíceis, aguentando o que a maioria dos animais não conseguiria. Assim como o camelo, a vida de Natalino José do Nascimento, conhecido como Natal, foi marcada por condições difíceis e pela capacidade de resistir às adversidades. Nascido em Queluz, São Paulo, em 1905, em um país recém-liberto da escravidão, Natal enfrentou desafios desde cedo.

Após um acidente que o deixou aleijado, Natal encontrou no jogo do bicho uma oportunidade de sobreviver. Inicialmente como apontador de um conhecido bicheiro, ele logo se destacou e se tornou gerente de uma banca de apostas. Com o tempo, Natal se tornou um dos principais contraventores do Rio de Janeiro, enfrentando prisões e processos judiciais, incluindo um famoso caso de legítima defesa.

Cobra

A grande maioria das cobras não possuem veneno. No entanto, entre aquelas que possuem, algumas são extremamente perigosas para os seres humanos, como as cascavéis e as cobras corais. Apesar do risco que representam, muitas serpentes produzem veneno que é essencial para a indústria farmacêutica, especialmente na criação de antídotos e analgésicos. O veneno e o remédio, em essência, são provenientes do mesmo processo.

Em uma edição de 3 de abril de 1960, um leitor do jornal "Correio da Manhã" chamou Aniceto Moscoso, banqueiro do jogo do bicho, de "cobra venenosa". No entanto, Moscoso recebeu o título de Cidadão Carioca da Câmara de Vereadores, mesmo sendo português. As primeiras referências sobre ele nos jornais remontam à década de 1930, quando era visto como uma figura perigosa envolvida em atividades criminosas ligadas ao jogo do bicho. A partir da década de 1940, Moscoso parece ter se tornando uma figura mais institucionalizada, mantendo negócios legais enquanto ainda estava envolvido no jogo do bicho. Ele e outro banqueiro, Natal, disputavam quem pagava mais enterros na região, em um gesto que simbolizava poder e prestígio. Moscoso foi um dos primeiros a trabalhar ativamente na limpeza de sua imagem, utilizando estratégias de controle e benefícios para manter sua influência, assim como o veneno e o remédio se entrelaçam na mesma cobra.

Coelho

Segundo a tradição popular, quem tem muitos filhos é comparado a um coelho, devido à sua reprodução constante. A coelha fica fértil durante todo o ano devido à ovulação induzida pelo acasalamento, o que faz os machos se manterem sexualmente ativos. Por isso, sonhar com filhos, gravidez ou temas semelhantes é considerado um sinal de boa sorte no jogo do bicho.

A interpretação dos sonhos como presságios ou sinais divinos não é algo novo e está presente em diversas culturas ao longo da história. Exemplos incluem José no Antigo Testamento decifrando os sonhos do Faraó e os estóicos gregos classificando os sonhos como divinos, malignos ou oriundos da alma humana. Os ciganos também atribuem grande importância aos sonhos, e eram bastante presentes na época em que o jogo do bicho surgiu.

Os jornais especializados em jogo do bicho no início do século XX não apenas anunciavam resultados, mas também ofereciam prognósticos baseados em interpretações de sonhos. Alguns palpiteiros, como Sonâmbulo e Emydgio Abitayô, ligavam os sonhos às entidades espirituais para orientar os apostadores em suas jogadas. A relação entre os sonhos e o jogo do bicho é intrigante e levanta a questão sobre a existência de uma tipologia dos sonhos que indique resultados potenciais.

Cavalo

O turfe, esporte que envolve corridas de cavalo contemporâneas, tem suas raízes na Inglaterra do século XVII, embora duelos entre cavaleiros já fossem praticados em diversas culturas antigas. Com a popularização do puro sangue inglês, fruto de cruzamentos entre cavalos árabes e europeus, as corridas se popularizaram, tornando-se um esporte praticado por nobres que, ao longo do século XIX, foi se tornando mais acessível ao público em geral.

No Brasil, a paixão pelo turfe chegou no final do século XIX, com a fundação do Derby Club do Rio de Janeiro em 1885. Com o passar do tempo, o turfe se desenvolveu na cidade, com a transferência do Derby Club para a Zona Sul e a inauguração do Hipódromo da Gávea, que posteriormente se uniria ao Jóquei Club, formando o Jóquei Clube Brasileiro. A posse de cavalos de raça tornou-se um símbolo de distinção social, inclusive para os banqueiros do jogo do bicho, que adoravam os animais. Essa relação entre poder, ostentação e amor pelos cavalos é evidenciada na letra de um samba da Beija-Flor de Nilópolis, que exalta o cavalo mangalarga marchador como um vencedor e guerreiro.

Elefante

A interpretação dos sonhos no jogo do bicho vai além da literalidade. A inversão dos significados dos sonhos pode ser mais eficaz para apostas bem-sucedidas. Os sinais e tradições populares também são levados em consideração na hora de escolher o animal para apostar. Os arquétipos dos animais influenciam nas interpretações de sonhos, tornando o jogo do bicho uma atividade cheia de simbologia e tradição.

Alguns especialistas sugerem que o medo dos elefantes em relação às abelhas pode ter sido desenvolvido devido a experiências de picadas dolorosas. Portanto, a explicação para esse comportamento está relacionada ao pragmatismo e à autopreservação dos elefantes.

Galo

Nascido no Rio de Janeiro, o jogo do bicho se espalhou pelo Brasil, misturando elementos cariocas com as referências locais de cada região onde a loteria dos animais se estabeleceu. Um exemplo disso é a relação do galo com o futebol na Paraíba, onde o jogo do bicho é popular. 

No dia 7 de setembro de 1925, em Campina Grande, um clube de futebol foi fundado e recebeu o nome de Treze Futebol Clube, em referência ao grupo do galo no jogo do bicho. O clube se tornou conhecido como o Galo da Borborema. E assim, sendo o rival do Treze, o Campinense adotou como mascote uma raposa, o predador do galo.

O Clube Atlético Mineiro, de Minas Gerais, também é conhecido como Galo, não por causa do jogo do bicho, mas por conta de um galo alvinegro que era imbatível nas rinhas da cidade. A rivalidade com o Cruzeiro fez com que o clube não utilizasse a camisa de número 13, relacionada ao galo no jogo do bicho. Por sua vez, o Cruzeiro adotou a raposa como símbolo em homenagem à astúcia de seu presidente Mário Grosso, que se destacava pelas contratações inteligentes e pela habilidade de superar o rival Atlético-MG. A escolha também teve relação com o fato de as raposas se alimentarem de galinhas, fazendo alusão ao Galo, seu rival.

Gato

Nos cruzamentos do Brasil, é comum que os orixás, divindades originárias da África Ocidental, tenham associações com determinados animais, os quais estão presentes em diversos mitos e rituais dos candomblés. O caracol está ligado a Oxalá, o elefante a Oxóssi, o búfalo aparece nos mitos de Iansã, o leão simboliza a realeza de Xangô, o galo é frequente nos mitos de Ossain, a cobra está vinculada a Oxumarê e Euá, o coelho é de Ibeji, os pássaros canoros são de Logunedé, os peixes pertencem a Iemanjá, e o cachorro é associado a Ogum. Mas qual animal tem conexão com Exu? O gato, esperto, astuto, carinhoso de forma dissimulada, com hábitos peculiares e temperamento imprevisível.

Na linha da umbanda, existe um Exu conhecido como Gato Preto, que em certas versões é descrito como um praticante de alta magia na Irlanda que tem reencarnado por pelo menos 800 anos. Diz-se que ele fez um pacto com um gato para obter a imortalidade das sete vidas, sendo considerado uma entidade ligada à sorte. Dona Maria Padilha, uma poderosa pombagira, muitas vezes é retratada ao lado de um gato em algumas linhas de umbanda, auxiliando em trabalhos de limpeza, alegria e cura.

Um dos casos mais famosos envolvendo Exu e o jogo do bicho foi com o pai de santo Djalma de Lalu, que recebeu um palpite de Exu através de seu erê Pinguilim. Após um sonho revelador, Djalma decidiu apostar em uma milhar seca do macaco e ganhou um prêmio significativo, suficiente para expandir seu terreiro e construir uma vila de casas chamada Vila São Lalu. A festa em homenagem a Exu foi tão grandiosa que os banqueiros da região fizeram um acordo com Djalma e até ameaçaram cortar qualquer bicho em que ele apostasse. A Vila São Lalu ainda está de pé nos dias de hoje.

Jacaré

Campos dos Goytacazes é uma cidade atravessada pelo rio Paraíba do Sul. Segundo os mais velhos, quem navega por ali precisa estar atento ao Ururau Pançudo, um enorme jacaré de papo amarelo. Diz a lenda local que o Ururau era na verdade um jovem apaixonado por uma jovem rica, que foi assassinado e jogado nas águas do rio pelos capatazes do pai dela. Desde então, o rapaz se transformou em um espírito que vive entre o rio Paraíba e a Lagoa de Cima há mais de 200 anos.

Essa lenda do jacaré gigante deixou uma marca na infância do jornalista José do Patrocínio, nascido em Campos dos Goytacazes. Patrocínio, que foi um abolicionista, parlamentar e farmacêutico, ficou conhecido por trazer o primeiro carro ao Rio de Janeiro em 1897. No entanto, ao emprestar o carro para o poeta Olavo Bilac, ocorreu o primeiro acidente automobilístico da história do Brasil.

Patrocínio faleceu sem concluir seu projeto do dirigível, mas sua morte foi cercada de mistérios e superstições, especialmente no que diz respeito ao jogo do bicho. Anos após sua morte, o escritor Lima Barreto retratou em um conto a história de uma jovem que sonha com o número da sepultura da avó e, seguindo o conselho de uma cozinheira, acaba ganhando uma grande quantia em dinheiro no jogo do bicho.

Leão

Em 1976, a Beija-Flor de Nilópolis, localizada em um pequeno município da Baixada Fluminense, conquistou o título de campeã do carnaval das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro com o enredo "Sonhar com rei dá leão". Foi a primeira vez que a agremiação venceu, quebrando a longa hegemonia das chamadas "quatro grandes" do carnaval: Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano. O enredo da Beija-Flor, que contava uma história sobre o jogo do bicho e as relações entre sonhos e palpites, homenageava Natal, um famoso bicheiro com forte ligação com uma escola de samba. Natal, que faleceu recentemente, foi por muito tempo o líder da Portela.

Um detalhe curioso do desfile foi a presença de uma zebra, animal que não faz parte do jogo do bicho. A escolha se deu pela expressão popular "deu zebra", que se tornou sinônimo de resultados surpreendentes no futebol. A Beija-Flor surpreendeu ao conquistar o título, quebrando o favoritismo das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro.

Macaco

O santo padroeiro da cidade do Rio de Janeiro é São Sebastião. Em honra a ele, um chimpanzé nascido no zoológico da cidade em 16 de janeiro de 1963, batizado como Tião, ficou conhecido como "O Macaco Tião". Tião nasceu no novo zoológico, na Quinta da Boa Vista, que substituiu o antigo parque de Vila Isabel. Ele se tornou o habitante mais famoso do local.

Tião era descrito por seus biógrafos como um chimpanzé amigável, acostumado a passear livremente pelo zoológico na infância. Ao crescer e ser colocado em uma jaula, tornou-se mal-humorado, divertindo-se ao desafiar e brincar com os visitantes, principalmente autoridades. Seus ataques chegaram a chamar a atenção da mídia. O macaco Tião até se tornou um candidato a prefeito nas eleições municipais de 1988, em um protesto humorístico que ganhou popularidade. Apesar de receber cerca de 400 mil votos, todos anulados, ele foi o terceiro candidato mais votado do Rio de Janeiro na época. No dia da morte de Tião, a milhar 0067 foi sorteada como prêmio, associada ao bicho macaco, destacando ainda mais a fama do Macaco Tião entre os cariocas.

Porco

O que um jogador experiente na metafísica do jogo do bicho faz se sonhar com uma cobra acuada? É bem possível que aposte no porco.  O jornal "O Bicho" - um periódico que circulou no Rio de Janeiro entre 1910 e 1914 - anunciava na primeira página ser um "jornal útil e agradável, dedicado aos amantes de todos os esportes". Apesar disso, o foco principal era o jogo do bicho, abordando tanto a vertente mística quanto a racional.

O jornal também fornecia tabelas de bichos premiados, informava há quanto tempo determinado bicho não saía e sugeria palpites baseados em probabilidades. A tradição das "puxadas" do jogo, que consiste em observar que combinações de bichos são mais comuns ao longo dos sorteios, já era presente naquela época. Se um jogador sonhasse com uma cobra acuada, talvez devesse considerar apostar no porco, segundo as tradições do jogo. E se sonhasse com uma porca morta, seria melhor evitar o jogo por alguns dias, pois seria azar na certa.

Pavão

O pavão, apesar do seu temperamento tranquilo e gregário, é comumente associado a pessoas vaidosas e exibicionistas devido às suas penas ornamentais. Essa relação foi evidenciada pela representação dos chefões do jogo do bicho, feita pelo jornal "O Globo" em 1993, como pavões ornamentados, em vésperas de carnaval. O carnaval de 1993 foi marcado pela exibição pública dos bicheiros, desfilando na frente das escolas e sendo admirados por artistas e políticos. No entanto, poucos meses depois, muitos desses líderes foram condenados por diversas atividades criminosas, revelando a verdade por trás das aparências exuberantes.

Capitão Guimarães, em uma entrevista posterior, reconheceu o erro de buscar os holofotes, expondo o jogo do bicho e a cúpula do crime. Assim como o pavão que abre a cauda para impressionar, a busca por destaque os expôs aos perigos da justiça.

Peru

Orlando Drummond foi um renomado ator e dublador brasileiro, conhecido por dar vida a diversos personagens icônicos como Scooby Doo, Popeye, o Vingador e o Gato Guerreiro. Além de seu talento na dublagem, Drummond também brilhou como o Seu Peru na Escolinha do Professor Raimundo, programa humorístico de Chico Anysio. Ele vivia em Vila Isabel, bairro ligado à origem do jogo do bicho, refletindo sua ligação com o local. Drummond faleceu aos impressionantes 101 anos em julho de 2021. Curiosamente, no mesmo dia, no sorteio do jogo do bicho, a milhar 0980 - peru foi o número sorteado. É incerto quantas pessoas acertaram esse palpite, mas histórias curiosas de como as pessoas interpretam sinais místicos para escolher seus números são comuns.

Uma dessas práticas envolve simpatias com moedas e palpites, como enterrar moedas e pedir para estranhos mencionarem um animal ao serem entregues. Além disso, sonhar com um peru na ceia de Natal pode ser considerado sorte, mas na ceia de Ano Novo é tido como azar, de acordo com crenças populares.

Touro

Boi e touro são nomes que se referem ao mesmo animal, o macho da espécie Bos taurus. A diferença entre eles está na capacidade reprodutiva. Enquanto o boi é castrado, o touro é o reprodutor. Um dos tipos de touro mais famosos é o touro de Lídia, conhecido por sua valentia e agressividade.  A imprensa esportiva do Rio de Janeiro comparou o bicheiro Castor de Andrade a um "touro bravo" durante um jogo de futebol em 1966. Castor, filho do banqueiro do jogo do bicho Eusébio de Andrade, era presidente do Bangu e interferiu no jogo armado com um revólver calibre 45.

A polêmica em torno de Castor resultou em mudanças nas regras do campeonato. No final, o Bangu saiu vitorioso e Castor comemorou invadindo o campo. Sua história como "bicheiro romântico" chegou ao fim em 1994, quando sua fortaleza foi descoberta, revelando conexões com crimes graves. Castor foi preso, mas desfrutou de regalias na prisão antes de falecer em 1997. A disputa pelo seu espólio gerou mais violência e mortes na década seguinte, revelando os aspectos sombrios do mundo do jogo do bicho e dos bicheiros.

Tigre

O tigre, um felino de grande porte, é classificado por biólogos como um superpredador, ficando atrás apenas de algumas espécies de ursos na hierarquia dos principais carnívoros do planeta. Capaz de consumir até 10 kg de carne de uma só vez, os superpredadores estão no topo da cadeia alimentar. Durante a ditadura civil-militar brasileira, o termo "tigrada" era usado para descrever os setores subordinados das forças armadas e polícias que atuavam na repressão do regime. Eles realizavam as tarefas cotidianas de interrogatórios, torturas, assassinatos e desaparecimentos de corpos, operacionalizando a repressão no dia a dia.

Com a abertura política na década de 1970, os agentes da repressão que compunham a "tigrada" passaram a buscar poder em outros espaços, principalmente ligados ao crime organizado. Jornalistas como Aloy Jupiara e Chico Otávio abordaram essa relação no livro "Os porões da contravenção", essencial para entender as mudanças no jogo do bicho e na cidade do Rio de Janeiro. A consolidação de uma cúpula no jogo do bicho ocorreu em meio a consensos e conflitos, resultando em uma reorganização do território do jogo. Com o declínio da rentabilidade do jogo do bicho devido à expansão das loterias estatais, a cúpula precisou diversificar suas atividades, incluindo contrabando, lavagem de dinheiro e comércio ilegal.

Urso

Fulano é um grande traidor! Antigamente, o termo "amigo urso" era usado para descrever alguém assim. Esse tipo de pessoa aparenta ser prestativa e amigável, mas acaba traindo a confiança. A origem da expressão vem de uma fábula francesa em que um urso acidentalmente mata um homem ao tentar matar uma mosca que pousou em seu nariz. Um samba famoso dos anos 50 também faz referência a essa história.

Em um crime que mudou a história do jogo do bicho, a morte de Euclides Pannar, conhecido como China Cabeça Branca, levantou questionamentos sobre quem seria o verdadeiro "amigo urso". Ele teria sido assassinado por denunciar manipulações no jogo, de acordo com a investigação do Ministério Público. Anos depois, outro ex-policial ligado ao esquadrão da morte foi morto por querer entrar no negócio do jogo do bicho.

Veado

A origem da correspondência feita no Brasil entre homens homossexuais é debatida. Alguns afirmam que o termo não tem ligação com o veado, o animal, mas sim com a expressão "desviado" ou "transviado" - homens que teriam se desviado de uma suposta normalidade. Essa explicação remonta aos anos 1960, durante a ditadura civil-militar, que propagava preconceito e não aceitava a diversidade de orientações sexuais. Estudiosos admitiram que chamar um homem gay de "viado" teria realmente relação com o veado, o animal. A linguista Stela Danna, da Universidade de São Paulo, aponta a década de 1940 como o surgimento do termo, especialmente devido ao sucesso do filme Bambi, de Walt Disney, que mostrava veados depositando o esperma uns nos outros durante o período de reprodução.

A mobilização contra a homofobia parece estar surtindo efeito, com clubes e jogadores tomando posições contra a discriminação. Na Copa do Mundo, o zagueiro Bremer foi o primeiro atleta da seleção brasileira a usar o número 24. Em 2022, em celebração ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, clubes como Fluminense, Flamengo e Vasco realizaram ações simbólicas em apoio à causa.

O tabu em torno do número 24 reflete um longo histórico de preconceito e estigmatização, mas a luta contra a homofobia continua avançando, com mais indivíduos e instituições se posicionando a favor da diversidade e do respeito.

Vaca

As vacas ruminam cerca de 8 horas por dia, mastigando aproximadamente 50 vezes por minuto, totalizando incríveis 40 mil movimentos mandibulares diários. Além disso, possuem um olfato aguçado e uma visão razoável em condições normais, permitindo enxergar quatro vezes melhor que os humanos em baixa luminosidade. Ruminar consiste no ato de remoer os alimentos que retornam do estômago à boca, ou seja, mastigar novamente. Em sentido figurado, significa meditar, pensar novamente, refletir sobre algo. No contexto do jogo do bicho, a ruminação é crucial e demanda capacidade de enxergar em cenários de pouca luminosidade, como as vacas fazem com maestria.

A história do jogo do bicho está intrinsecamente ligada aos dilemas e complexidades da transição do Rio de Janeiro da Monarquia para a República, e às relações entre loteria, sociedade e estado. Este breve livro é inspirado nas reflexões de autores como Felipe Magalhães e Ami Chazkel, que abrem caminhos para uma reflexão essencial sobre o jogo. O jogo do bicho se tornou rapidamente uma prática popular, sendo a loteria dos menos favorecidos em uma época em que atividades populares eram reprimidas. Criminalizar tais atividades era uma tendência higienista das elites que projetavam as cidades latino-americanas seguindo modelos europeus.

Ao estudar o jogo do bicho, é fundamental evitar a romantização acrítica ou a demonização dos aspectos culturais envolvidos. Este livro traz vinte e cinco histórias entrelaçadas que exploram dramas urbanos, superstições, contravenções, arte e fé, revelando a complexidade da encruzilhada que é o Rio de Janeiro.

O livro "Maldito invento dum baronete" de Luiz Antonio Simas é uma obra que convida o leitor a mergulhar nas origens e no desenvolvimento do jogo do bicho no Rio de Janeiro de uma forma inovadora e desprovida das amarras acadêmicas usuais. Explorando as múltiplas facetas do jogo através dos animais que compõem a loteria, o autor nos conduz por uma jornada histórica envolvente e repleta de reflexões sobre a cultura popular, a cidade e suas entranhas. Com uma abordagem ousada, sagaz e participativa, Simas nos presenteia com uma obra que desafia as normas acadêmicas e nos convida a refletir sobre as dobras, frestas e esquinas da cidade do Rio de Janeiro, enriquecendo nossa compreensão da história e da cultura carioca. Uma leitura cativante e instigante que certamente irá encantar e provocar reflexões em diferentes públicos interessados na rica herança afro-indígena e nas idiossincrasias cariocas.

O AUTOR

LUIZ ANTONIO SIMAS é carioca, escritor, compositor, professor de História e pesquisador das culturas de rua do Brasil. É autor de mais de 20 livros, entre eles “Pedrinhas miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros” (Mórula, 2013), “O corpo encantado das ruas” (Civilização Brasileira, 2019), “Maracanã: quando a cidade era terreiro” (Mórula, 2021), “Umbandas” (Civilização Brasileira, 2021) e “Santos de casa” (Bazar do tempo, 2022). É vencedor do prêmio Jabuti 2016 de melhor livro do ano de não-ficção com o “Dicionário da história social do samba” (Civilização Brasileira, 2015), que escreveu em parceria com Nei Lopes.

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