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A literatura brasileira contemporânea, especialmente aquela produzida ou revisitada nas duas primeiras décadas do século XXI, tem desempenhado um papel fundamental naquilo que a teoria literária classifica como "literatura de testemunho". O lançamento da adaptação cinematográfica de Ainda Estou Aqui, dirigida por Walter Salles baseada na obra homônima de Marcelo Rubens Paiva (2015), não apenas reacende o interesse comercial pela obra, mas convoca uma reavaliação crítica sobre como o Brasil processa — ou falha em processar — seus traumas coletivos.
Diferentemente do best-seller anterior do autor, Feliz Ano Velho (1982), que capturava o zeitgeist da abertura política sob a ótica da contracultura e da juventude, Ainda Estou Aqui opera em uma frequência distinta: a da maturação da dor e a transmutação da memória individual em patrimônio histórico. Neste ensaio, propomos uma dissecção técnica da obra, não apenas como narrativa biográfica, mas como um artefato sociológico que desafia a amnésia institucional brasileira.
Para compreender a magnitude desta obra no catálogo do Post Literal, é imperativo analisar o deslocamento do foco narrativo. Se na literatura de 1980 o foco recaía sobre o desaparecido (a figura messiânica e trágica de Rubens Paiva), a literatura de 2015, amplificada pelo cinema de 2024, realiza um movimento de correção histórica ao iluminar a figura de Eunice Paiva. Este deslocamento não é meramente estilístico; é uma afirmação política sobre a resistência civil e a gestão do cotidiano em tempos de exceção.
2. A Fenomenologia da Ausência: Rubens Paiva como Espectro Narrativo
Sob a ótica da teoria literária, a figura de Rubens Paiva no livro funciona como um "significante flutuante". Sua presença é estabelecida não pela ação direta na diegese presente, mas pelo vácuo deixado. A narrativa técnica de Marcelo Rubens Paiva utiliza a ausência como matéria-prima. O autor constrói o que podemos chamar de "arquitetura do desaparecimento".
Ao analisar os documentos do DOI-CODI e os relatos justapostos à vivência doméstica, o texto transcende a biografia. Ele se torna um estudo de caso sobre a burocracia do terror. A linguagem utilizada por Paiva neste segmento abandona o coloquialismo que marcou sua estreia literária e adota um tom quase documental, seco, cirúrgico. Há uma intenção clara de mimetizar a frieza dos arquivos estatais para contrastá-la com o calor da vivência familiar, criando uma tensão narrativa que sustenta as primeiras centenas de páginas da obra.
O desaparecimento forçado, tipificado no Direito Internacional como crime contínuo, ganha na literatura uma dimensão de "luto suspenso". Freud, em Luto e Melancolia, distingue os dois estados. O luto é o processo de aceitação da perda; a melancolia é a incapacidade de processá-la. O Brasil, como nação, vive uma melancolia política em relação à Ditadura Militar. A obra de Paiva, contudo, sugere que Eunice realizou o trabalho de luto através da ação pragmática. Ela rompe com a melancolia nacional ao exigir a certidão de óbito, ao transformar a busca abstrata em fatos jurídicos concretos.
3. Eunice Paiva: A Desconstrução do Arquétipo da "Viúva da Ditadura"
Um dos pontos mais altos da análise crítica desta obra reside na construção da personagem de Eunice. A literatura nacional, historicamente, tendeu a retratar as mulheres do período ditatorial sob dois prismas reducionistas: a guerrilheira armada ou a mãe/esposa sofredora e passiva (a Mater Dolorosa).
Marcelo Rubens Paiva, e consequentemente a adaptação cinematográfica, subvertem essa dicotomia. Eunice é apresentada sob uma ótica de "heroísmo pragmático". A análise textual revela uma mulher que utiliza a intelectualidade e o Direito como armas de guerra. A decisão de retomar os estudos, tornar-se advogada e especializar-se em Direitos Indígenas não é um subplot (subtrama) de superação pessoal; é a tese central do livro.
A "reinvenção de si" de Eunice é uma metáfora para a necessidade de reinvenção democrática. O texto opera uma transição de gênero literário: começa como um thriller político sobre o desaparecimento do pai e termina como um romance de formação (Bildungsroman) tardio da mãe. Tecnicamente, isso exige do autor um domínio sobre o ritmo narrativo para que a transição não soe abrupta. A doença de Alzheimer, que acomete Eunice no final da vida, insere uma nova camada semiótica: o esquecimento individual de quem lutou contra o esquecimento coletivo. Essa ironia trágica é explorada com uma delicadeza que evita o melodrama, mantendo o rigor ético da narrativa.
4. A Intertextualidade e o Cânone da Memória
Para situar Ainda Estou Aqui no panteão da literatura nacional, é necessário estabelecer paralelos com outras obras seminais. O livro dialoga diretamente com K. - Relato de uma Busca, de Bernardo Kucinski. Em ambas as obras, temos a figura do narrador-investigador (o filho em Paiva, o pai em Kucinski) que luta contra a máquina estatal para obter uma resposta binária: vivo ou morto.
Entretanto, a distinção técnica reside na "voz". Enquanto Kucinski opta por uma narrativa que flerta com a ficção para preencher as lacunas do horror (o que a crítica chama de bioficção), Paiva ancora-se na materialidade dos fatos e na memória sensorial da casa. A casa da família, cenário primordial, atua como um personagem onisciente, testemunha das transformações.
A crítica literária contemporânea, ao analisar estas obras, utiliza o conceito de "pós-memória" (cunhado por Marianne Hirsch). A pós-memória refere-se à experiência daqueles que cresceram dominados por narrativas que precederam seu nascimento ou consciência, cujas próprias histórias são deslocadas pelas histórias de trauma da geração anterior. Marcelo Rubens Paiva escreve a partir desse lugar de pós-memória, tentando organizar o caos herdado. O sucesso crítico da obra reside na capacidade de transformar essa angústia privada em um documento de validade pública universal.
5. Da Página à Tela: A Semiótica da Adaptação de Walter Salles
A segunda metade desta análise dedica-se à transposição da obra literária para a linguagem cinematográfica, um processo que a teoria da adaptação chama de "transsubstanciação midiática". O filme de Walter Salles não deve ser lido apenas como uma "versão ilustrada" do livro, mas como uma obra autônoma que dialoga com o texto-fonte.
Tecnicamente, o roteiro (assinado por Murilo Hauser e Heitor Lorega) opera cortes cirúrgicos. A literatura de Paiva é digressiva, permitindo-se visitar o passado e o futuro, refletindo sobre a política atual. O cinema, exigindo uma linearidade temporal mais rígida e uma economia visual, foca na atmosfera. A escolha de Salles por uma fotografia que valoriza a granulação e a paleta de cores dos anos 70 não é mero fetiche vintage; é uma ferramenta narrativa para imergir o espectador na claustrofobia da época.
A atuação de Fernanda Torres como Eunice Paiva oferece um campo vasto para análise crítica. A construção da personagem se dá pelo "não-dito". No livro, temos acesso aos pensamentos de Marcelo sobre a mãe; no filme, temos apenas a exterioridade das ações de Eunice. Salles aposta na inteligência do espectador para decifrar o silêncio. O momento da fotografia — o sorriso forçado exigido pelos militares — torna-se, na linguagem visual, o epítome da violência psicológica, traduzindo parágrafos inteiros de descrição literária em um único frame.
6. A Relevância Política no Cenário Atual: O Livro como Antídoto
Por que discutir essa obra agora, nas páginas do Post Literal? A resposta reside na conjuntura sociopolítica brasileira. Vivemos um momento de disputa de narrativas históricas, onde o revisionismo tenta suavizar ou negar os crimes da ditadura. A literatura documental atua, portanto, como uma "vacina cognitiva".
Ao trazer à tona a minúcia técnica do sequestro, da tortura e do ocultamento de cadáver, o livro de Paiva desmantela a retórica de que a ditadura foi branda ou necessária. A análise jornalística deve pontuar que a reedição do livro e o sucesso do filme são sintomas de uma sociedade que ainda busca fechar suas feridas. Não se trata apenas de "relembrar o passado", mas de impedir que o passado contamine o futuro sob a forma de autoritarismo redivivo.
O mercado editorial tem respondido a essa demanda. Observamos um aumento na publicação de obras de não-ficção que tratam de regimes autoritários. Ainda Estou Aqui serve como ponta de lança para esse movimento, provando que há demanda comercial para temas densos, desde que tratados com excelência literária e honestidade intelectual.
7. Aspectos Técnicos da Escrita de Paiva: Uma Análise Estilística
Aprofundando-se na técnica de escrita, é notável a evolução de Marcelo Rubens Paiva. Seus primeiros livros eram marcados por uma urgência juvenil, frases curtas, gírias e um ritmo frenético. Em Ainda Estou Aqui, a sintaxe torna-se mais complexa. O autor utiliza períodos mais longos, subordinados, que refletem a complexidade do pensamento maduro e a dificuldade de organizar memórias traumáticas.
O uso de documentos oficiais inseridos no corpo do texto rompe a fluidez da leitura propositalmente. Esse recurso, conhecido como "estética do arquivo", serve para lembrar o leitor de que, por trás da narrativa familiar, existe um processo jurídico frio. Essa justaposição entre a linguagem do afeto e a linguagem da burocracia cria o que chamamos de "atrito textual", forçando o leitor a confrontar as duas realidades simultaneamente.
8. Conclusão: A Permanência da Obra e o Legado para a Nova Geração
Concluímos esta análise reafirmando que Ainda Estou Aqui transcende a categoria de biografia ou livro-reportagem. É um tratado sobre a dignidade. Para os leitores do Post Literal, interessados em literatura nacional e crítica social, a obra é obrigatória não apenas pelo seu valor estético, mas pelo seu valor cívico.
A "literatura de cura" (healing fiction), tão em voga no mercado internacional, geralmente foca no bem-estar individual. A obra de Paiva propõe uma cura coletiva. Ela sugere que a única maneira de curar uma nação doente de seu passado é expondo a ferida à luz do sol (ou à luz da verdade).
O desafio para os novos escritores e leitores, inspirados por esta obra, é continuar o trabalho de escavação. Quantas histórias como a de Eunice Paiva permanecem não contadas? O cinema e a literatura provaram ser aliados indispensáveis na manutenção da democracia. Ao final, a frase "Ainda Estou Aqui" deixa de ser apenas a afirmação de uma sobrevivente do Alzheimer ou da ditadura, e passa a ser o grito de uma literatura nacional que se recusa a ser silenciada ou esquecida.



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