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[RESENHA #602] O corpo de Laura, de Laura Redfern Navarro

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Foto: Colagem Digital // Post Literal // Laura Redfern Navarro 

O corpo de Laura é uma obra poética e lúdica da poeta e jornalista Laura Redfern Navarro, publicado pela Mocho Edições. A obra é uma síntese analítica do corpo e da vida da personagem ficcional Laura Palmer, da séria Twin Peaks, à quem esta obra se dedica. A obra de Navarro, dividida em cinco partes [Flutuante, inter[rompida], Fúria, da linguagem e o corpo de Laura] e aborda questões ligadas ao corpo, sexualidade, vida e vivência por meio de poemas que procuram, de certa forma, analisar criticamente a vida de Palmer, a obra se soma à riqueza de detalhes e sonoridade, bem como com descrições palpáveis por meio de ilustrações repletas de simbolismos pertencentes às reflexões de Navarro.

A análise da autora vislumbra pela riqueza de detalhes escondida nas entrelinhas provocadas pelas reflexões que elucidam a cada estrofe. De um poema para outro, sobretudo na primeira parte da obra, flutuante, a autora nos convida a conhecer os anseios de uma mulher por meio do cotidiano. A descrição inicia-se por meio da figura de uma garota de sete anos que busca ser livre, porém, toda sua aventura provoca na mãe anseios que geram frustração interna na garota, que até aquele momento, por certo da idade, desconhece. Seguimos a inércia dos acontecimentos quando, por um motivo ou outro, de forma velada. Ocorre-nos aqui, o horror de ser mulher e de todo protagonismo da personagem, ela experimenta pela primeira vez a menstruação e os olhares velados de idealizações sexuais não condizentes com sua idade. Neste ponto, um nó surge na garganta:

Com onze anos vesti uma legging colada ao corpo era mais fácil se movimentar pelo espaço com uma legging colada ao corpo II naquele dia minha mãe, espantosa pediu: filha por favor não sai de casa com [essa roupa] [...] - um homem velho e engraçado começou a me observar brincando eu sorri ele pediu para tirar fotos fiquei mais feliz ainda [ele sabia e se orgulhava do meu segredo] tanto quanto eu mesma. (p. 26 in Flutuante) [grifos meus]

A sequência de abusos segue tangível:

me dá um b e i j o de boa noite II por que você tá me b e i j a n d o desse jeito? (p.27 in Flutuante)

Laura usa recursos linguísticos poderosos para tratar as nuances da perda da inocência na vida da mulher e de toda cadeia de abusos presente durante o amadurecimento. A obra apresenta experimentações problemáticas e reflexivas acerca da visão machista e estereotipada masculina sob o corpo da mulher. Nasce aqui um reflexo que aguça o leitor por meio do sentimento de culpa: a quem devemos culpar quando alguém não se sente mais feliz por ser da forma como é? Que forma o corpo deveria ter para não se tornar alvo de morada de invasores? De que tamanho são os problemas que não vemos ou fingimos não ver? Quais portas e portais devemos fechar quando falamos de sexualidade e infância? ou vida e mulher?.

O poema, intrusão, o mais poderoso (na minha opinião) dentre todas as descrições poéticas de Navarro, inicia-se o pesadelo. Laura usa uma linguagem figurativa para expor o abuso velado feito no meio da noite, a sequência da tormenta por meio do sentimento de culpa que acomete as vítimas e a sequência de dúvidas sobre o porquê de tudo ocorrer, há aqui, um vilão velado que se faz homem e mulher:

Satã se deita na minha cama sem eu saber ele se deita ao meu lado; não sei como é seu rosto sei que é alto/magro maior do que eu às vezes Satã é uma mulher não lembro como é seu rosto mas sei quem ele é não é tão assustador mas tenho medo. (p. 33 - in. intrusão)

Em síntese, podemos afirmar que Laura não é uma mulher, mas todas. As descrições e criações poéticas em torno do corpo da mulher, das vivências e de seus pensamentos sobre si mesmas são uma forma de demonstrar a categoria arbitrária que se forma na incerteza por meio da vivência e da experiência como um todo, unilateral.

Laura descreve com a maestria de quem veio para ficar, sua prosa e estilo desmontam uma série de questionamentos impositivos acerca da realidade. Seus capítulos, que se conectam como o corpo em sua estrutura, destrincham horizontes não percorridos de reflexões paulatinamente contemporâneas.

A obra é um grito de guerra e de luta feminina por meio de contextos e elucidações categoricamente pertencentes a era atual. Uma escrita prolífica e única. Uma obra para se ler e reler em todos os momentos. Assim como esquecemos do corpo, poderemos esquecer este livro, para enfim, relembr-alo e relê-lo infinitas vezes, como num processo de autodescoberta constante e latente.

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